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Última utopia parte II

Onda perfeita e tubular, a grande  utopia do surf em qualquer lugar do mundo. Foto: Aleko Stergiou.

Em tese, um artigo deveria, pela sua natureza, encerrar-se em si mesmo à medida que os argumentos e as considerações a respeito de um determinado assunto sejam, embora de modo condensado, suficientemente claros.

 

Todavia, há momentos em que, por força ou circunstância, somos levados a retomar certos assuntos, ora para desenvolver um ponto ou outro que, por ventura, necessite de um aprofundamento, ora porque o debate suscitado por um determinado artigo instigue a formulação de novas reflexões.

 

Esse parece ser o caso de um texto escrito por mim para a Waves, cujo título é “A última utopia do século XX”.

 

A ocasião, discorri sobre a tensão que há entre as imposições, simbólicas e materiais, características do capitalismo avançado – tais como a competição, a idolatria do indivíduo e a segmentação mercantil – e o aspecto aurático, imaculado que o surf possui no nosso imaginário.

 

O termo utopia, originalmente cunhado por Thomas Moe no ínicio do século XV e cujo significado é o não-lugar – foi evocado por mim para nomear esse processo, justamente, porque ele, segundo acredito, representa esse sentimento de alheamento que o surf provoca em quem o pratica.

 

Afinal, a arrebentação, cheia ou não, imprime em nós que pegamos onda um efeito mágico capaz de purificar-nos da correria cotidiana, das apurrinhações do trabalho e, em alguns casos, dos impasses próprios da nossa vida afetiva.

 

Não é estranho, contudo, que tais efeitos sejam vistos, na maioria dos casos, como sinônimos de emancipação e liberdade. Afirmar que o desejo por esse sentimento já é, por si só, sintoma de uma forma de sociabilidade própria do capitalismo parece, para muitos, uma heresia. Ora, vejamos o problema mais de perto.

 

Não creio que haja algo mais próximo do mundo das “prateleiras” do que acreditarmos que uma das faces da felicidade se encontra na qualidade dos estímulos sensoriais.

 

O prazer pelo “drop” íngreme, pela sensação provocada pela prancha que desliza sobre a parede de água translúcida ou do repuxo sentido pela violência de uma batida contra lip refletem algo muito próximo do prazer que temos ao comermos um prato bem temperado, ao assistirmos um filme repleto de efeitos especiais ou de ouvirmos uma música no volume máximo.

 

Tudo isso, por estranho que pareça, é sintoma de um mesmo mecanismo de regulação dos nossos sentidos, produzidos pelo mundo mercantil.

 

Acreditar que haja no surf um sentido, por si só, de resistência contra o mundo real é ignorar o vínculo que esse esporte possui como o mundo real.

 

O fato é que o crescimento do surf com seus novos adeptos não pode ser credenciado, unicamente, as “garras” afiadas da indústria do surf. As propagandas não são, no caso, o estímulo para a prática do esporte.

 

Pelo contrário, se examinarmos a natureza dessas propagandas veremos que elas são feitas para convertidos, e, não, para quem desconhece os códigos e valores dessa tribo. No entanto, é possível que haja um número muito maior de pessoas que pegam ondas, alheias ao nosso pequeno universo, do que indivíduos capazes de elencar, numa rápida piscadela, quais são os dez melhores lugares para surfar esquerdas no Brasil ou os cinco últimos campeões da ASP.

 

Utopia, certamente, é um termo bastante desagradável para quem se agarra, com unhas e dentes,à crença de que o seu esporte preferido é, na verdade, uma a espécie de torre de marfin, limpa e intangível à miséria da vida ordinária.

 

O problema é que somente a palavra Utopia cuja acepção remete para aquilo que desejamos ver materializado, poderia torna possível o seguinte paradoxo: eu desprezo a indústria do surf, a competição, as propagandas em cores berrantes com as quais as marcas apresentam a sua nova coleção para as lojas especializadas, mas gosto muitíssimo da qualidade desses produtos, tais como das roupas de borracha e das bermudas que secam dois segundos depois de eu sair do mar.

 

Ora, o avanço técnico das mercadorias não pode ser desvinculado da concorrência entre as marcas na busca por novos compradores. Entender que há uma separação desses dois elementos que compõem as mercadorias produzidas pela industria do surf é acreditar que o verso de uma folha de papel não seja, na verdade, as costa de sua face.

 

A questão, por esse prisma, não se dá por encerrada. Mais eficiente do que negar a relação entre o mundo moderno e o surf, creio ser necessário estreitar essa relação para que possamos nos servir do traço utópico de nosso esporte para modificar algo do mundo real.

 

Foi justamente isso que pretendi dizer com a necessidade de criarmos novas carreiras no surf, quando da publicação do meu último texto. Isso porque o surf, enquanto esporte, compreende, ainda que de modo utópico, um desejo de integração e respeito com a natureza.

 

O sentimento de completude que temos no line-up contrasta e muito com o modo predatório com o qual o Capitalismo se desenvolveu nos últimos séculos.

 

Responsável pela dizimação de inúmeras populações indígenas, pelo desmatamento de grande parte da mata nativa, pela imposição de um modo de vida que parece, hoje, imperativo para todos nós e, sobretudo, pela destruição de uma super-potência como a União Soviética, o Capitalismo, nos moldes em que ele se apresenta parece não ter adversário à altura.

 

Não sejamos hipócritas ou ingênuos para acreditarmos que um único indivíduo é capaz de resistir ao modo de organização do mundo da mercadoria simplesmente porque ele não come comida industrializada, recicla o seu lixo e não joga papel pela janela do seu carro.

 

Afinal, somente podemos comprar comida orgânica por que ela é produzida e vendida nos super-mercados. E, se reciclamos o nosso lixo, é porque há usinas que vendem esse material para uma indústria que o reutiliza ora para reduzir o seu custo, ora para dizer para o mundo que ela é uma empresa consciente.

 

Uma andorinha não faz verão. Se não há adversário para o Capitalismo, é verdade que a única coisa que ele respeita é o valor do dinheiro. Seria, portanto, tão maléfico e horrendo propor que a indústria do surf amplie a sua área de atuação para além do circuito da nossa tribo e traga para junto de si algo que já é do mundo surf; isto é, o desejo de harmonia e o sentimento de preservação imanente a qualquer pessoa que pega onda?

 

Ao invés privilegiar, de modo prioritário, a incorporação em seus produtos dos valores da competição, ela poderia dedicar-se à construção de um circuito de consumidores conscientes que se tornariam, de fato, fiéis às marcas em virtude do compromisso que elas tivessem com a nossa utopia.

 

Possivelmente, essa mudança de foco ampliaria, consideravelmente, a inserção dessas empresas no mercado, a sua interface com o mundo e, consequentemente, a demanda por profissionais eficientes e comprometidos com a causa. Poderia haver, de um modo mais orgânico e eficiente, parcerias com os setores públicos e a sociedade civil organizada a fim de educar a população para a necessidade de preservarmos a natureza, a nós próprios e ao outro, que, pacientemente, espera, ao nosso lado, a série arrebentar.

 

O surf pode e deve modificar as relações mercantis, principalmente, naquilo que tange o campo simbólico dos valores. Todavia, isso passa por uma transformação material, em uma palavra: pela reformulação do modo como desejamos nos representar diante de um universo muito mais amplo do aquele que acreditamos pertencer.

 

Eu gostaria de ressaltar que não se trata de deixar o surf ou os surfistas em paz. O que proponho é o contrário: não deixemos o mundo em paz. Essa é a razão de eu acreditar no poder transformador da última utopia do século XX.

 

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A última utopia do século XX

 

João Carlos Guedes é professor da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP.