Leitura de onda

Ulu de gorjeta

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Esquerdas de Uluwatu povoam a imaginação dos surfistas há décadas. Foto: Aleko Stergiou.

Algumas histórias são tão ricas que podem ser contadas em pedaços. Uma viagem de 30 e poucos dias para a Indonésia, por exemplo: mesmo os passaportes carimbados mais carimbados voltam mais ricos.

Contei, num texto recente para a coluna Surfe Deluxe, que escrevo na revista Fluir, a escala de Asu, em Sumatra, segunda parte dessa instigante viagem a um paraíso de sensações extremas, onde ninguém escapa ileso.

A primeira parte, que narrei certa vez para a leitura de dois ou três curiosos nos primórdios do blog, recupero agora. É a minha chegada a Bali, terra cercada de mistérios quase indecifráveis, muitas ondas e alguns imprevistos.

Depois de 37 horas, com olhos negros e fuso horário torto, desembarquei com o amigo Rodrigo Schmidt numa nuvem de incenso, de odor doce. Dentro de uma bolha de vidro, fumantes repunham o tabaco perdido nas horas de voo. Muitos australianos, vários europeus, uma penca de japoneses, alguns brasileiros. Isto é Bali.

Também é Bali a enorme placa, estampada na cara da fila da imigração, um contundente aviso: pena de morte para tráfico de drogas. Isso não é um aviso para mim. Pelo menos era o que eu imaginava.

Uma hora numa fila de imigração com mais de 100 cabeças não era nada. Afinal, Airport Left era logo ali. E Uluwatu estava mais perto que a Prainha do Leblon.

Entregamos os passaportes ao guarda que nos abriria as portas do paraíso. Cara feia daqui, sorriso irônico meia-boca dali e o safado manda:

– Tip? Tip? Tip?

“Tip – noun – 1. a small present of money given directly to someone for performing a service or menial task; gratuity: He gave the waiter a dollar as a tip.”

Na língua oficial de Camões, gorjeta. Na nossa, gruja, jabaculê, changa, lambidela, molhadela, xixica.

Pô, eu é que vivo no país do tip. Olhei para o Rodrigo com a cara de quem não tava entendendo nada. E tinha entendido tudo. Peguei o passaporte e segui adiante.

Mais um obstáculo vencido, era hora de pegar as bagagens. Malas e pranchas? Extraviadas. Caraca! Eu só pensava em Uluwatu. No idílico Ulu 32, nas ondas de orelha de caderno – iguais às de lá -, nos inúmeros sonhos de tubo sem fim.

No táxi, conheci o sorriso fácil do balinês. Povo pobre, afeito à alegria. A impressão não mudou no Hotel Dewbarata, em Kuta, onde ficaríamos por três dias. Ali e em todo lugar, espalhavam-se belas oferendas da cultura hindu, e o cheiro de incenso permeava cada esquina. Bali tem mesmo uma atmosfera diferente.

Mas Uluwatu ainda estava mais longe que eu pensava.

Um funcionário da Qantas ligou avisando que as pranchas tinham ficado retidas na imigração. Agora, meu problema não era mais com a companhia aérea, e sim com os indonésios. Não seria nada demais se alguns minutos antes da ligação eu não tivesse ouvido a história de uma australiana presa depois de supostamente plantarem pó na bagagem dela. Achacada, teria pago US$ 50 mil e voltado pobre para casa.

Pô, não tenho droga nem US$ 50 mil. Seria a cadeia meu destino? Longe da família e sem Ulu? Achei o cônsul do Brasil em Bali, que me falou, por telefone: “Não vá ao aeroporto sozinho. Posso te acompanhar daqui a duas horas. Me aguarde”.

Esperei, tenso. Chegamos lá e, com uma carteirada de diplomata, minhas pranchas estavam liberadas, diante de guardas de imigração surpresos. Entraram numa sala, demoraram um tempo e voltaram com minhas pranchas liberadas.

Eu estava seco por ondas. Saí de lá para finalmente molhar meu corpo em Uluwatu. Aquelas esquerdas de sonho, que sempre estiveram nos meus melhores sonhos, estavam ali, a alguns degraus de distância. Era como se eu estivesse prestes a dividir o line-up com os pioneiros do Ulu 32, mesmo sabendo que naquele momento eu desembarcava num pico saturado pelo crowd mundial. Entendi ali, descendo para o pico, a importância da descoberta daqueles caras.

Um fim de tarde com um metro de onda e curiosamente sem muito crowd rendeu tubos e, claro, o velho sorriso de volta ao rosto. Três dias depois de desembarcar, eu chegara finalmente à Indonésia. De prancha, corpo e alma lavados.

Tulio Brandão é colunista do site Waves, da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.

 

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".