Fiquei mais emocionado do que convém a um jornalista. Vou fazer força, mas não sei se conseguirei expressar, nestas letras miúdas, o tamanho do feito de Gabriel.
Às vezes, a gente mergulha fundo demais nas histórias. Coisas da vida.
Não fui ao North Shore. Assisti às baterias decisivas num bar da Zona Sul do Rio, lotado de amigos de meia idade, todos surfistas, enlouquecidos com o surfe do garoto de Maresias. Olhei para o lado e percebi que, ali, no meio de abraços e urros de emoção, havia um sonho realizado. Todos esperavam, desde moleques, pelo dia 19 de dezembro de 2014. Todos.
Lembrei-me, no meio daquela convulsão coletiva, de Vitinho. De Arduíno, Irencir e de seus amigos do Arpoador. De Fabinho e de Teco. De Neco, Peterson, Renan e de Jojó. Lembrei-me de Pepê. De Cauli, Picuruta, Dadá, Pedro Müller, Fred, irmãos do Tombo, Taiu, e Tinguinha. De Rico, Friedmann, Pacheco e de Tendas. De Burle, Eraldo, Resende, Couto e Maya. De Silvana, Jacqueline e de Andrea.
Lembrei-me de Mineiro e de sua determinação. Lembrei-me dos craques da Brazilian Storm. Lembrei-me dos loucos do Brazilian Nuts.
Lembrei-me de Bocão. Lembrei-me de Valério.
Lembrei-me de muitos outros surfistas que não serei capaz de nomear na coluna, mas que contribuíram igualmente com cada tijolo do enorme castelo finalmente erguido diante de nossos olhos. Todos valem a homenagem.
Os últimos dias foram tensos. Medina estava em todo os lugares. Aqui e no North Shore. A caminho do trabalho, ele aparecia no anúncio do relógio de rua. Estava no discurso de uma amiga, arquiteta, que se apaixonou repentinamente pelo esporte e pelo modo como o garoto de Maresias se impõe sobre seus adversários.
Estava, ainda, em todos os noticiários da tevê aberta brasileira e fechada. Nas páginas do New York Times. Num sonho do filho de uma conhecida que mora no interior. Na cabeça de milhões de brasileiros que esperavam pelo nascimento de um novo herói, legítimo, sem o plástico que pasteuriza alguns esportes.
Tantos holofotes, tanta pressão.
Lembro-me vagamente, graças aos filtros da memória, de como eu era um garoto inocente e imaturo aos 20 anos. E lá estava ele, com a mesma idade, diante da ansiedade descontrolada de um país continental, de multidões, num traiçoeiro e definitivo round 3 da última etapa do ano, em Pipeline. Se fosse eliminado ali, deixaria as portas escancaradas para seus adversários Kelly Slater e Mick Fanning.
O desenho era dramático: organizadores pressionados pela falta de ondas boas, um swell medíocre de apenas 24 horas, o coral totalmente coberto pela areia, a mídia de todo o mundo (especialmente a do Brasil) com os pés na praia. O brasileiro teria que vencer o havaiano Dusty Payne, até então líder da Tríplice Coroa, em seus próprios domínios.
Na água, no meio de um mar difícil, imprevisível, em que adversários vinham fazendo médias baixíssimas, Gabriel, sem dizer uma palavra, deu um recado definitivo ao mundo: eu vim para vencer.
O brasileiro atropelou impiedosamente Payne, com a maior média da fase e um surfe preciso e técnico. Deixou o oponente sentado no outside, em combinação, para espanto e pavor de seus dois adversários e de seus críticos.
Seus oponentes e desafetos silenciaram de vez ao perceber, na fase 3 e durante todo o campeonato, que Gabriel vencia também surfando para Backdoor. As armadilhas daquela onda eram a esperança de seus adversários. O brasileiro neutralizou-as, ou mais que isso, usou-as a seu favor. Suas maiores notas, inclusive o 10 da final, foram conquistadas de costas para a onda.
Antes de ser campeão, Gabriel ainda venceu o round 4 nos segundos finais, deixando em segundo o conterrâneo Filipe Toledo. Vale, aqui, uma nota dez para o espírito profissional de Filipe, que meteu a faca nos dentes para enfrentar o amigo brasileiro, mesmo com tanto em jogo. Gabriel certamente não gostaria de vencer se Filipe tivesse entregado o jogo. Foi uma vitória inteira, verdadeira.
Aqui, entra em cena um outro herói. Alejo Muniz, o argentino mais brasileiro que o mundo já viu, surfava sem pressão do título e com chances muito remotas de reclassificação em 2015.
Pois esse mesmo surfista, que em 2014 tinha chegado às quartas apenas uma vez, em J-Bay, transformou-se no algoz de dois monstros. Primeiro, derrubou o 11 vezes campeão mundial, com uma pérola para Backdoor. Depois, e de maneira definitiva, entregou o caneco a Gabriel ao derrotar Fanning. Duas vitórias inesquecíveis de um surfista que merece ficar entre os melhores.
Lembrei-me de 2005, quando Nathan Hedge eliminou um Andy Irons no topo da forma e, com isso, deu o sétimo título mundial a Slater. Depois da derrota no Brasil, Irons jamais voltaria ao ritmo que lhe deu o tricampeonato.
Tomara que Slater continue. Sem ele, não teria a mesma graça.
Tocou a sirene que anunciava o título de Gabriel. Ainda dentro d’água, ele chorava copiosamente, enquanto 5 mil brasileiros, numa explosão de alegria sem precedentes no mundo do surfe, gritavam na areia. Ainda vai demorar para que australianos e americanos, acostumados a comemorações contidas e praias vazias, consigam digerir a intensidade da vitória do surfista brasileiro.
Um cartaz exibido por um brasileiro cheio de orgulho na areia de Pipe sintetizava o sentimento coletivo da praia: “Eu tô maluco.”
Para nós, a frase é apenas uma representação inocente da alegria incontida, maior característica de nosso povo. Sim, somos festeiros. Somos vivos. Temos orgulho disso. E, agora, temos também um campeão mundial.
A festa na areia durou até a final, disputada entre o próprio Gabriel e o australiano Julian Wilson. Para o brasileiro, àquela altura, o título da etapa era apenas uma das cerejas do bolo, mas ele surfou, como sempre, a vida na bateria.
Curiosamente, o campeão mundial fez a primeira nota 10 da temporada na última bateria do evento final, o que revela um surfista mais maduro, sem a velha preocupação adolescente de dar show, capaz de vencer muitas baterias com uma sucessão incrível de notas altas.
Julian surfou duas ótimas ondas para Backdoor, mas talvez não tivesse vencido em outras circunstâncias. É a segunda final que o australiano toma do brasileiro com notas questionadas.
Aliás, vale dizer, Julian é um grande surfista. Tem uma das melhores linhas do circuito mundial. Só não entendo – ou não quero entender – a estranha capacidade que ele tem de vencer baterias apertadas, polêmicas.
Mas, diferentemente daquele fatídico dia em Portugal, em 2012, o resultado na etapa de Pipeline – o melhor da história do Brasil no pico – não tirou nem por um momento o sorriso da face do novo campeão mundial.
Gabriel saiu da água de Pipeline para virar ídolo nacional. É autêntico, muito jovem, veio de uma classe remediada e tem valores típicos do povo brasileiro, como a devoção à família, a religiosidade e a fé inabalável.
Está sempre ao lado do padrasto, pai, técnico e anjo Charles, um dos grandes responsáveis pela evolução e pela disciplina do surfista, e da mãe, Simone.
Ele tem, ainda, uma mentalidade vencedora inatingível, que lembra a de grandes monstros do esporte. Gabriel é o brasileiro sem qualquer traço de complexo de vira-lata. É o Brasil que dá certo, o cara que aplicou um 7 x 1 às avessas no mundo.
Chega a 2015 com um sonho realizado. Quais serão os próximos?