Eterno sorriso

Um ano sem Ricardinho

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Ricardo dos Santos deixa saudades. Foto: Joli.

No dia 19 de janeiro de 2015, ainda comemorávamos o nosso primeiro título mundial de surfe com Gabriel Medina quando levamos um duro golpe. Muitos acordaram em choque com a notícia de que Ricardo dos Santos, um dos melhores tube riders do mundo, havia sido baleado por um policial militar na Guarda do Embaú (SC), onde morava.

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Depois de uma incrível batalha pela sobrevivência, passando por quatro cirurgias, Ricardinho não resistiu e faleceu no dia seguinte, no Hospital Regional de São José (SC).

Há exatamente um ano, a morte de Ricardo dos Santos gerava grande repercussão na mídia brasileira e internacional, sendo muito lamentada pelos principais surfistas do mundo.

Tudo começou depois de um desentendimento com o policial Luis Paulo Mota Brentano, que estava de folga. Brentano – que havia ingerido uma grande quantidade de álcool – parou o carro em frente à casa do surfista, sobre uma mangueira, atrapalhando uma obra que era realizada no local.

Segundo Mauro da Silva, tio de Ricardinho, o atleta pediu para que Brentano se retirasse, e foi baleado. Na versão do policial, Ricardo dos Santos o teria abordado de forma agressiva com um facão, mas a arma nunca foi encontrada pela polícia.

Ricardinho foi atingido por dois tiros. Um deles o atingiu pelas costas. O outro acertou o lado esquerdo do corpo e saiu pelo direito, atingindo vários órgãos.

Por ironia do destino ele já havia demonstrado preocupação com a destruição da qualidade de vida na Guarda do Embaú em 2011, em texto enviado espontaneamente ao site Waves. Ricardinho dizia se orgulhar da praia onde nasceu e foi criado, à qual se referia como “pérola” do Estado. O atleta citou a constante presença de bandidos na região e o total descaso dos órgãos competentes. No texto, Ricardo afirmou que os moradores se sentiam acuados e “não fazem nada porque ficam com medo de tomar um tiro”.

Alvejado, ao ver o seu algoz saindo com o carro depois de atingi-lo com dois tiros, teve forças para um último grito de cidadão, como nos lembrou Tulio Brandão em sua coluna no site Waves: “Corre atrás dele, anota a placa, faz alguma coisa!”

Em memória ao atleta, resgatamos um texto publicado pela FLUIR em fevereiro de 2015. Leia a íntegra.

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Morte de Ricardinho causou grande comoção na Guarda do Embaú (SC) e em muitos outros lugares. Foto: Plínio Bordin.

RICARDINHO, ETERNO SORRISO

Por Ader Oliveira

“Alegre, extrovertido, brincalhão, carismático, corajoso, determinado. Esses são alguns adjetivos que podem qualificar Ricardo dos Santos, um dos maiores tube riders que o Brasil já revelou. Assim será lembrado para sempre.

No último dia 20 de janeiro, a comunidade mundial do surf perdeu um dos seus principais talentos de forma chocante. Ricardinho foi assassinado por Luis Paulo Mota Brentano, policial militar, depois de uma discussão na Guarda do Embaú, em Palhoça (SC). O crime aconteceu por volta de 8 horas da manhã do dia 19. O atleta passou por quatro cirurgias, mas perdeu muito sangue e faleceu no dia seguinte.

Nascido em 23 de maio de 1990, Ricardinho deu muitas alegrias ao surf brasileiro em sua curta carreira, interrompida aos 24 anos. Dono de um talento incrível na arte de entubar, principalmente quando as condições ficavam extremas, Ricardinho tornou-se um dos mais respeitados tube riders do mundo.

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Ricardinho mostrando sua sede pelos tubos em Maresias (SP), aos 16 anos. Foto: Daniel Smorigo.

DA GUARDA PARA O MUNDO

Deu suas primeiras remadas e drops na Guarda do Embaú, como lembra o legend local Carlos Kxot, shaper e primeiro treinador do atleta. “Com uns 8 ou 9 anos ele já estava no costão da Guarda surfando em ondas de 1 metro. O engraçado é que ele vinha remando pra cima do cara, pedindo pra dar uma empurrada porque ele não conseguia entrar na onda. Aí dropava, ia embora, cortava a onda toda”, conta Kxot. “Logo depois ele começou a gostar de futebol e andava com o uniforme do Vasco da Gama e uma bola. A galera falava ‘Pô, moleque, larga essa bola e vai surfar’. E não deu outra: com uns 10 anos ele já estava firme no surf. Foi quando passei a fazer as pranchas pra ele que começou ganhar os campeonatos pela região”, lembra o ex-treinador.

Em 2006, Ricardinho passou a despertar a atenção das pessoas que acompanhavam a nova geração brasileira. Logo no início da temporada, Ricardinho deu um show no Rip Curl Grom Search disputado na praia Brava, em Florianópolis (SC).

Mostrando seu talento nos tubos, o atleta levou a galera ao delírio com duas notas 10 na semifinal da categoria Sub 16. “Fiz o melhor possível. Nunca tinha tirado um 10 e agora foram dois numa mesma bateria”, declarou empolgado naquela época. Ricardinho também venceu a final daquele evento, deixando para trás Gustavo Araújo, Alejo Muniz e Tamaê Bettero.

De olho no atleta, Zé Paulo – ex-chefe de equipe da Billabong Brasil – voltou a se impressionar com Ricardinho durante uma etapa do Brasileiro Amador em Maresias (SP), três meses depois. O mar estava pesado, bombando, e o atleta da Guarda do Embaú mostrou um surf muito acima dos garotos da sua idade naquelas condições.

Logo depois Ricardinho foi convocado pelo técnico Otoney Xavier para ser alternate da equipe brasileira no Mundial da ISA, também em Maresias. A convite de Zé Paulo, a delegação foi ao centro de treinamento da Billabong na praia de Camburi. “O mar estava bem grande, quebrando lá fora e o Ricardinho foi o primeiro a chegar ao outside. Foi destaque na session e o que mais tempo permaneceu na água, já mostrando muita disposição e coragem para a sua pouca idade (15 anos)”, lembra Zé.

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Ricardinho sempre com um sorriso estampado no rosto. Foto: Arquivo pessoal Ricardo Santos.

A atitude do atleta voltou a impressionar Zé Paulo em uma trip para o Peru. “Ele era sempre o primeiro a sair para surfar, ainda escuro e com um clima bem frio. Ricardinho se destacava muito nos tubos e ficava por muitas horas na água treinando, já totalmente focado no que queria”, continua o ex-chefe de equipe.

O grande empenho do treinador Otoney Xavier também foi fundamental para que o atleta tivesse o seu trabalho reconhecido pela Billabong. “Como não conseguiu apoio do seu antigo patrocinador para viajar para a temporada havaiana, Ricardo comprou a sua própria passagem para o Hawaii e insistiu em buscar um novo patrocínio. Ele dizia que era para não viajar sem ‘patrô’. Liguei para vários amigos que trabalhavam em marcas de surf, mas foi com Zé Paulo que consegui o apoio que Ricardo precisava. Falei a ele que não ia se arrepender porque o garoto era iluminado”, lembra Otoney. “Ele fez sucesso na temporada e se lançou definitivamente no cenário mundial. Com sua coragem foi ganhando respeito em ondas grandes, tornando-se um dos brasileiros mais conhecidos e respeitados no mundo inteiro”, finaliza o carioca radicado há muitos anos em Santa Catarina.

DESTAQUE NAS BOAS

Concretizada em janeiro de 2007, a parceria entre Ricardinho e a Billabong durou 8 anos e teve muitos momentos inesquecíveis. Um ano depois de entrar na marca, o catarinense conquistou a sua primeira vitória na ASP, vencendo uma etapa do Pro Junior em excelentes esquerdas no pico de Punta Lobos, Chile. Na final, o atleta superou o paulista Alex Ribeiro.

Ele batalhou por alguns anos para chegar à elite mundial, mas não conseguia fazer uma campanha consistente na divisão de acesso, marcada por muitas etapas disputadas em ondas pequenas. Seus melhores resultados foram a quarta posição em Oaxaca, México (2010) e o terceiro lugar nas provas do Costão do Santinho (2010), Fernando de Noronha (2012) e Moquegua, Peru (2013). Porém, Ricardinho teve seu talento valorizado pela Billabong e pôde disputar algumas etapas como convidado da marca.

Em 2010 teve a primeira chance de participar de uma etapa do WCT, depois de vencer uma triagem promovida pela Billabong na praia da Vila, Imbituba (SC). Na final, Ricardinho superou Peterson Crisanto (2º), Filipe Toledo (3º), Caio Vaz (4º) e Yan Daberkow. No evento principal, Ricardinho até fez boas apresentações, mas terminou em 33º lugar.

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Ricardinho em Punta de Lobos, Chile, palco da sua primeira vitória em um Pro Junior da ASP, em 2008. Foto: Aleko Stergiou.

BICAMPEÃO NOTA 10

Em 2011, ele voltou a disputar a etapa brasileira do WCT, desta vez no Rio de Janeiro, como convidado. Três meses depois, o atleta roubou a cena nos canudos de Teahupoo para vencer a triagem do Billabong Pro Tahiti, desbancando na final o local Heiarii Williams. No evento principal, Ricardinho passou pelo australiano Taj Burrow na repescagem, mas caiu diante de Kelly Slater na terceira fase.

O troco viria no ano seguinte. Ricardinho conquistou o bicampeonato da triagem, desta vez com uma nota 10 na final contra o taitiano Alain Riou. O brasileiro fez um verdadeiro estrago no evento principal, derrubando Taj Burrow, Jordy Smith e Kelly Slater, que no fim do ano admitiu que algumas “falhas na temporada” foram decisivas para a perda do título mundial para Joel Parkinson. A campanha fez com que Ricardinho recebesse o prêmio em memória a Andy Irons, destinado ao atleta mais atirado da etapa.

Em dezembro, o brasileiro foi convidado para disputar o seu primeiro Billabong Pipe Masters, mas não se deu bem nas condições inconsistentes em Pipeline. A partir daí, Ricardinho passou a arrebentar no freesurf e viveu a melhor temporada havaiana da carreira, dominando as revistas e sites da mídia especializada no mundo inteiro. O atleta roubou a cena nos tubos de Pipe e conquistou o concurso Wave of the Winter (Onda do Inverno), promovido pelo site Surfline. Embolsou US$ 25 mil pelo melhor tubo do inverno e desbancou nomes como Mark Healey, Makua Rothman, Kelly Slater e John John Florence.

Com as brilhantes performances Ricardinho tornou-se o terceiro brasileiro a estampar a capa da Surfing, depois de Caio Ibelli e Gabriel Medina. Na ocasião, a revista norte-americana exibiu um texto provocador ao lado da capa: “Pipe estava épico. E ele somente se manteve em pé. Adivinhe quem é?”.

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Em Teahupoo, o catarinense venceu por duas vezes a triagem e causou um verdadeiro estrago no evento principal em 2012. Foto: © WSL / Robertson.

OUSADIA E CORAGEM

Em 2013, Ricardinho voltou a ser convidado pela Billabong para disputar a etapa brasileira do WCT e causou grande espanto ao embarcar para Teahupoo, Tahiti, enquanto a etapa estava paralisada por falta de ondas no Rio de Janeiro (RJ). Em busca da onda da vida, Ricardinho viajou num domingo e passou apenas 24 horas na Polinésia Francesa. Mesmo sem nunca ter praticado tow-in o destemido atleta arrebentou no swell e foi destaque na mídia internacional. Tomou um dos maiores capotes da vida na primeira que dropou. Voltou ao outside e pegou um de seus tubos mais memoráveis.

O catarinense desembarcou no Brasil numa quinta-feira e já disputou a repescagem na manhã do dia seguinte. “A ideia surgiu quando recebi um alerta do site Surfline e lembrei da outra vez (2011), quando estava no Tahiti e rolou aquele swell gigante – batizado de Code Red -, mas estava competindo e não peguei as bombas porque teria uma bateria contra o Kelly (Slater) no dia seguinte e fiquei com receio de me matar antes desse confronto, que também seria uma grande oportunidade para mim. No final, depois de muito tempo me remoendo no canal, com muita vontade de surfar, peguei uma ondinha ou outra, mas ficou aquela gana de pegar uma grande, uma de verdade. Outro motivo que me levou a viajar pra lá é que um swell desse tamanho geralmente leva um tempo para entrar, então não poderia perder essa oportunidade. Fui assim que tive a confirmação de que o mar ficaria pequeno aqui por um bom tempo. Não me arrependo, foi uma das viagens mais alucinantes que já fiz”, declarou Ricardinho à equipe Fluir / Waves na época.

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Atleta fez um incrível bate-volta em 2013 para pegar swell gigante em Teahupoo e disputar a repescagem do CT na Barra da Tijuca (RJ). Foto: Arquivo pessoal

NA CAPA

Em julho de 2014, o garoto da Guarda do Embaú realizou um sonho que tinha desde criança: estampar a capa da FLUIR. O atleta foi clicado por Ricardo Borghi em um swell espetacular em Kandui, Indonésia. “Sabe quando você vê aquelas fotos na revista e pensa que um dia você estará vivendo aquilo? Foi basicamente isso. Vivi um sonho de criança ao ver aquelas linhas sem nada fora do lugar. Fiquei umas cinco horas na água e quebrei todas as pranchas que eu tinha. Cheguei a surfar de 5’10 num mar bem sinistrinho porque não tinha mais nenhuma prancha grande. Peguei umas das melhores ondas da vida e fiz a foto que me rendeu a capa que tanto busquei ao longo destes anos como profissional”, comemorou Ricardinho.

O swell fez ainda o catarinense ilustrar a capa da revista Surfer, em novembro. Logo depois, Ricardinho recebeu um convite para disputar a triagem do Billabong Pipe Masters, mas teve a clavícula trincada depois de despencar num treino em Pipeline e chocar-se com a bancada. Isso, infelizmente, levou o atleta a antecipar o seu retorno ao Brasil. Ricardo dos Santos era extremamente fiel às suas origens. Enquanto muitos dos principais atletas do Brasil buscam pranchas estrangeiras ou shapers mais badalados do eixo Rio-São Paulo, Ricardinho manteve-se ligado a Marcelo Barreira, de Florianópolis, com quem trabalhou de 2005 até 2014.

Nos últimos anos, foi treinado por Leandro Dora, pai do também talentoso Yago Dora. “Fui contratado como treinador e acolhido como um pai”, diz Leandro, o “Grilo”.  Yago também comentou a relação com o amigo. “Ele era como um irmão para mim. Quando começou a treinar com o meu pai, ele foi para Floripa e passou a fazer parte da nossa família”, fala Yago emocionado.

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Em julho de 2014, realizou um sonho de infância ao estampar a capa da FLUIR. Foto: Divulgação.

RESPONSÁVEL

Apaixonado pela Guarda do Embaú, Ricardinho era um dos principais incentivadores da Associação de Surf e Preservação da Guarda do Embaú (ASPG). Frequentava reuniões e participava de visitas às autoridades de Palhoça com o intuito de desenvolver o surf na Guarda. “Ele era o nosso embaixador na campanha para que a Guarda do Embaú fosse reconhecida como Reserva Mundial de Surf”, conta Marcos Aurélio Gungel, o Kito, presidente da ASPG.

A morte de Ricardinho deixou a Guarda em clima de tristeza. “Estava saindo do mar com Juninho Maciel e soubemos da morte. Paramos na frente do rio por um tempinho, depois me dirigi ao outro lado, já na vila. A comoção era geral, o choro das pessoas… A praia estava lotada e alguns turistas também choravam. O Seu Nicolau, avô do Ricardo, andava de um lado para o outro falando sozinho. A Dona Dalcema (avó do atleta) foi amparada. As lágrimas se juntaram ao rio, nunca vou esquecer”, disse Kito.

Terminava ali uma carreira curta, mas intensa, repleta de momentos incríveis. Era o fim da vida de um ídolo de muitos surfistas, de um garoto sorridente que ficará eternizado na memória de todos que tiveram a oportunidade de conhecê-lo. “Sua passagem foi rápida e intensa, mas com muita felicidade e amor pelo que fazia e por aqueles que conviviam com ele. Espero que ao menos isso sirva de lição para que possamos ter mais amor e respeito ao próximo, pois isso era uma das coisas que ele mais preservava na vida. Tenho certeza de que agora ele está dividindo o line up com nosso grande amigo Andy Irons num Pipe quebrando para os dois lados, ele indo para Pipe e Andy para Backdoor”, comentou Zé Paulo.”