Leitura de Onda

Um bravo surfista

Jeremy Flores , Billabong Pro 2015, Teahupoo, Tahiti.

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Possuído e conectado com o mar, Jeremy Flores enfileira ex-campeões de Teahupoo – pela ordem, Kelly Slater, CJ Hobgood e Gabriel Medina. Foto: © WSL / Cestari

 

“Quem sou eu? Onde estou? O que está acontecendo?”

Jeremy Flores é um surfista francês, criado nas Ilhas Reunião. Estava em Lakey Peak, em Sumbawa, Indonésia, num dia de ondas pequenas. E tinha acabado de bater forte com a cabeça no coral. Ao ser retirado da água desfigurado e ensanguentado pelo amigo Wiggolly Dantas, não lembrava de nada. Teve concussão cerebral, duas fraturas e cortes generalizados pela face e pelo restante da cabeça, que lhe renderam uma costura de 35 pontos.

Passados pouco mais de dois meses, desprezando qualquer diagnóstico de trauma físico ou emocional, ele confirma participação na etapa do Taiti. Veste o capacete para proteger o crânio ainda frágil, rema em ondas quadradas, passeia sem medo por instáveis bolas de espuma e entuba com maestria, desgarrando a rabeta, a alguns centímetros de outra rasa e super afiada bancada de coral.

Possuído e conectado com o mar, ele enfileira ex-campeões do pico – pela ordem, Kelly Slater, CJ Hobgood e Gabriel Medina. Contrariando recomendação médica, que o queria em repouso, e a expectativa de todos, vence de modo brilhante pela primeira vez no Taiti.

Jeremy é talentoso, duro e técnico. Mas é, antes de tudo, um bravo.

Quem já sofreu um acidente sério no esporte, seja ele qual for, sabe o quanto é difícil retomar o rumo em arenas semelhantes, que oferecem o mesmo risco.

A final foi disputada com Gabriel, que despertou definitivamente da hibernação comum a campeões mundiais pós-título. No Taiti, cada vez mais, ele é o cara a ser batido. Consegue manter a prancha no trilho  mesmo na instabilidade de tubos muito profundos e tem uma leitura de onda rara naquele pico.

Eliminou, no caminho para o vice-campeonato, John John Florence e Owen Wright, dois dos surfistas mais habilidosos da atualidade.

Não seria exagero dizer que Gabriel foi o melhor surfista do evento. Não é exagero dizer que, enquanto estiver no WCT, será candidato ao título no Taiti.

Dois movimentos determinaram a vitória do francês.

O primeiro, um raro erro estratégico de Gabriel, que usou sua tática usual de forçar a remada quando a bateria ainda estava sem prioridade mas, desta vez, ficou em desvantagem no posicionamento da primeira onda. Ansioso, acabou remando numa fraquíssima, sem potencial. Deu o bilhete dourado para Jeremy, que na sequência pegou a única onda com potencial nos 35 minutos de bateria.

O segundo, um presente de grego (para o brasileiro) da natureza: uma irritante calmaria que congelou a disputa na maior parte da final. O movimento tático inicial de Jeremy, portanto, rendeu-lhe a vitória, ao garantir decisiva onda da série que lhe valeu 9,87, já que o resto da bateria foi de águas praticamente paradas.

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Para Tulio Brandão, não seria exagero dizer que Gabriel Medina foi o melhor surfista do Billabong Pro Tahiti. Foto: © WSL / Cestari

 

Gabriel sai do Taiti renovado, em 10o no ranking, a 10 mil pontos do líder. Já tinha assombrado na África do Sul, e, no Taiti, confirmou o retorno à boa fase. A missão aparentemente possível dele em 2015 é voltar ao top 5, mas não me surpreenderia se chegasse a Pipeline, no fim do ano, com chances matemáticas de título, sobretudo se os líderes continuarem a tropeçar sucessivamente.

Adriano de Souza está com a sorte dos campeões. Depois de um tubarão ajudá-lo na África do Sul, foi eliminado precocemente no Taiti, mas viu seus adversários caírem, um a um, antes que pudessem lhe alcançar na liderança. Mineiro tem todas as ferramentas para retomar o rumo das vitórias. Seu surfe repleto de arcos se adapta bem à direita de Trestles, seu know-how em beachbreaks cai como uma luva na França e em Portugal. Mas todos querem muito ocupar o lugar dele. É hora de dormir com a faca nos dentes.

Ítalo Ferreira vem se especializando em surpreender o mundo. No início do ano, era apresentado apenas como mais um especialista em ondas pequenas. Meses depois, sai da perna prime do WCT, formada por Fiji, África do Sul e Taiti, como um surfista cheio de recursos. Em J-Bay, tropeçou no round 3, mas nos tubos de Cloudbreak e Teahupoo, provou ao desconfiado circo da WSL que é muito mais que um mero especialista em aéreos. Fez dois belos quintos lugares, perdendo com resultados apertados para Julian Wilson e Owen Wright.

Em nono no ranking, o garoto de Baía Formosa vai surfar, nas próximas três etapas, em ondas afeitas a seus voos e vitórias. Está muito perto de se tornar o segundo brasileiro a conquistar o prêmio de “Rookie of the Year” (“Estreante do ano”), repetindo o feito dos conterrâneos nordestinos Fabinho Gouveia, em 1989, e Jojó de Olivença, em 1994. A conquista é ainda maior se levarmos em conta a geração da qual Ítalo faz parte, repleta de grandes surfistas e candidatos a campeões do mundo.

Filipinho Toledo perdeu sem surfar sequer uma onda no round 5, mas nada que mereça uma discussão mais aprofundada. Ele apenas optou por esperar pela melhor da série, que não veio. Segue para as demais etapas absolutamente vivo na disputa pelo título mundial – a começar por Trestles, onde mora com a família, e aparece na lista curta de favoritíssimos.  

A etapa taitiana merece ser lembrada também por alguns momentos sublimes. O tubo nota 10 de CJ Hobgood, que estava especialmente inspirado em seu derradeiro no Taiti. A nota 10 que não deram para Gabriel, na melhor onda do evento. As demonstrações de domínio do pico de Kelly, ainda que ele não esteja conseguindo vencer etapas. O roundhouse cutback gigante de Owen Wright, com direito a pancada vertical, nas quartas. E vários wipeouts, claro.

Agora, é hora de botar os foguetes para rasgar a água numa das melhores ondas de manobra do mundo, Trestles, com o ranking mais embolado que nunca. A diferença entre os cinco primeiros colocados é de apenas 1.500 pontos, e outros cinco estão por perto, querendo entrar no grupo. Vamos aos arcos e aéreos.

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