Nada mais impertinente do que escrever a minha coluna número 99 aqui do Nepal. Quero dizer que a onda por aqui é outra.
Gosto da ideia de ter uma perspectiva dos oceanos de tão longe, dos míticos Himalaias, um dos lugares mais, senão o mais, equidistante do mar neste nosso planeta.
É o que eu chamo exercer o Pratiahara (meditação na qual nos vemos de cima, de longe, para podermos desapegar do imediatismo a da mistura que fazemos entre o nosso eu real e as emoções) com visão periférica 360 graus. As neves eternas agradecem.
Depois de falar do mar durante esses quase dez anos, a serem completados no dia 30 de janeiro com uma coluna especialíssima (aguardem!), falar do mar interno aqui do alto é muito louco, no melhor sentido do termo.
Então é isso, o caso ocorre num dia simples, muito simples, num dos lugares mais “low-key roots” que conheci.
Bhaktapur, Nepal
3:30 AM O quarto tremeu, a cama tremeu. E não era sonho.
6:30 AM -2ºC. O inverno mais rigoroso dos últimos dez anos.
11:00 AM O guia alucinado, Hari, sugeriu que pegassemos a trilha no meio da floresta das montanhas que rodeiam Bhaktapur. No seu histórico ameno ele tem uma picada de cobra no dedão quando ajudava a familia na plantação de arroz. Salvo pelo pai, que cortou ainda mais a picada com uma faca para poder chupar melhor o veneno para fora.
14:30 No meio do nada, em frente à única cabana à vista, dois moleques de 7 anos jogavam Karimboard, típico jogo Nepali que consiste em um tabuleiro com quatro furos nos cantos, farinha de milho para deslizar as rodelas de plástico ou metal, e pontaria para dar o peteleco com o dedo para emburacar.
Quem emburacar todas primeiro mais o coringa, ganha. Quinze rodelas pretas e quinze brancas. Apostamos contra eles. Não deu outra: no final restavam 12 nossas, menos 100 rupias que perdemos e mais dois sorrisinhos condescedentes que nos acompanharam até a próxima curva da montanha.
16:40 Descemos até alcançar uma estradinha vicinal para pegar o ônibus à cidade. Roots total. As crianças, no entanto, como em qualquer lugar do mundo, deram o tom da alegria, e entre caretas e risos zoamos o buzunga ladeira abaixo, para felicidade geral. Pela janela vários filmes.
18:00 Fui informado por fontes de amigos confiáveis na praca do Templo, que a cada ano ocorrem de cinco a seis vítimas fatais de ataque de tigres na região que cruzamos inocentemente (!).
18:01 Encafifado fiquei. Agora, me digam: qual tera sido a razão do Hari não ter comentado nada a respeito? Será que ele considerou que as estatísticas tenues jogavam a nosso favor além do peso das 1.200 rupias nepalis que eu lhe paguei? Ou ele acha tudo isso mesmo normal?
Gracas à Shiva não precisei me preocupar com elefantes, porque um ataque de um bem louco – que deu noticia geral – ocorreu há duas semanas a 200 quilômetros em direção à fronteira com a Índia. Três vítimas fatais.
18:30 Meditei e resolvi não me impressionar com a violência exótica, afinal, o que os napaleses achariam se soubessem que a soma das pessoas sacrificadas por tigres e elefantes em um ano no Nepal equivale ao total Diário na periferia de Sampa?
19:30 O mercado a luz das estrelas, sem energia na cidade – para variar -, é mágico. Vendem-se mistérios ao invés de produtos.
20:30 Dahl (sopa de lentilhas) e cama, com os sonhos mais estranhos, nada a ver, embora bem visíveis e quase palpáveis. Namastê.