#“E, de repente, enquanto a onda enorme ergue-se para o céu e rola na direção da praia, elevando-se como um deus do mar, quebrando e começando a espumar numa extremidade, no ponto em que está precariamente intacta, surge a cabeça escura de um homem. Rápido, ele se ergue sobre o branco espumante da crista. Seus ombros morenos, o peito, os braços, os quadris, as pernas – tudo se projeta para cima, como uma visão. Onde, segundos antes havia apenas uma parede de água gigantesca e um terrificante troar está um homem, ereto, em toda a sua altura; ele não se debate freneticamente naquela situação selvagem, não é sepultado e esmagado pelo monstro poderoso, mas, sim, se mantém de pé em cima dele, calmo, soberbo , firme sobre o vertiginoso ápice, os pés ocultos pela espuma que começa a se formar, a névoa salgada, subindo-lhe até os joelhos e todo o resto dele está livre, brilhando ao sol, voando rápido como a onda que o transporta”.
O texto acima foi escrito no início deste século, precisamente em 1911. Em um linguagem simples, mas ao mesmo tempo refinada, Jack London, um dos mais importantes escritores de todos os tempos, descreve, com uma perfeição absoluta, a ação de um surfista.
Mais do que isso, a paixão de London por esse esporte, que definiu como sendo dos “Reis naturais da Terra”, acabou desencadeando um movimento capaz de colocar um basta no processo de extinção do surf.
A partir da chegada dos primeiros missionários às ilhas havaianas, o surf, que vivera períodos épicos longe dos olhos preconceituosos do homem branco, passou por uma fase de obscuridade.
Taxado como pecaminoso, pois os polinésios surfavam quase ou mesmo sem roupas, o surf foi sendo sufocado por uma postura intolerante dos evangélicos que, a todo custo, tentavam impor um cultura totalmente oposta às tradições daqueles que tinham o oceano como parte do quintal de suas casas.
Na virada do século, as ilhas havaianas tinham se tornado território americano e a população nativa fora praticamente dizimada. O surf regredir pelo menos cem anos.
Waikiki – Cerca de um quarto dos havaianos sobreviventes vivia na Ilha de Oahu. Na época, eles se reuniam na praia de Waikiki para surfar. O local era o alvo de hordas de turistas brancos, os haoles, que viam os turistas como uma curiosidade.
#A realidade era essa quando, em 1907, London e sua mulher Chairmian aportaram com o veleiro Snark no Havaí. Foi paixão à primeira vista.
A descrição que London fez do surf na edição de outubro de 1907 de A Woman´s Home Companion – e mais tarde, já em 1911, no livro A Travessia do Snark – entusiasmou muita gente no continente norte-americano.
London, que se matou aos 40 anos, ingerindo uma dose letal de morfina, deixou um dos maiores legados culturais de que se tem notícia. Mas, para todos nós, surfistas de alma, o mais importante é saber que foi graças a sua intervenção como jornalista e escritor que o surf pode sobreviver e ganhar o mundo.
Antes disso, enquanto o cristianismo tomava vulto nas ilhas polinésias, a cultura havaiana desintegrava-se. Os missionários evangélicos impuseram não apenas sua crença como promoveram, de todas as formas, a destruição daquilo que os havaianos tinham de mais sagrado: sua íntima ligação com a natureza, particularmente com o mar.
O surf, como uma série de outros costumes e atividades, era associado à sexualidade – algo extremamente natural para os nativos -, que por sua vez era vista como uma afronta sem precedentes à igreja.
Sensibilidade – Não estamos exagerando quando afirmamos que o surf só não se extinguiu de vez em razão da sensibilidade de um homem: ” Vá tire as roupas, que são incômodas beste clima quente. Entre no mar e lute com ele; voe com as asas em seus tornozelos, com sua habilidade e com a força que reside em você; capture as ondas, dome-as e cavalgue-as, como um rei deve fazer”.
No capítulo cinco, denominado Um esporte real, do livro A Travessia do Snark, Jack London faz a narrativa de suas experiências com o surf; compara o surfista ao deus Mercúrio e faz despertar um interesse vital por um esporte que viria a promover uma febre na Costa Oeste norte-americana, particularmente na Califórnia.
Os jovens americanos passariam a buscar nas ilhas havaianas o paraíso das ondas. E os relatos de London não apenas permitiram que isso ocorresse como ainda facilitou sua aproximação de duas pessoas também igualmente importantes para o esporte: o aventureiro e negociante Alexander Hume Ford e o waterman George Freeth, um havaiano de origem irlandesa que se destacaria por ter propagado o surf pela Califórnia.
#Foi Alexander Hume Ford quem barrou a crescente onda imobiliária que estava colocando em perigo as praias surfáveis do Havaí. Ele criou o primeiro clube de surf da história, o Outrigger Canoe and Surfboard Club, assegurou o arrendamento por 20 anos de 4.000 metros quadrados de praia e erigiu a cabana que viria a ser a primeira das muitas sedes do clube.
Pouco tempo depois da criação do Outrigger Canoe and Surfboard Club, outro grupo de surfistas e remadores criaria talvez o mais importante clube de surf de todos os tempos, o Hui Nalu, o mesmo dos legendários Black Trunks.
A diferença básica entre estas duas instituições residia no fato de que a primeira era praticamente haole, enquanto a segunda era formada por havaianos genuínos. As disputas entre elas se tornariam épicas.
Isso, porém, não tem maior importância, já que foi a partir da criação destes clubes que o surf havaiano tomou um rumo desejado. Quando em 1911, London e sua mulher retornaram ao Havaí, somente o Outrigger reunia mais de 1.200 membros e tinha uma longa fila de espera de interessados em tomar parte dos seus quadros.
O sucesso do surf rompeu barreiras e fronteiras. Freeth foi levado para os Estados Unidos para mostrar sua arte e era anunciado como o “homem que andava sobre as águas”. No seu rastro, Duke Kahanamoku, percorreu o mundo, transformando-se ainda no primeiro grande embaixador do “Espírito Aloha”.
Aquele tempo de revitalização do surf não poderia ter desejado um porta-voz mais influente. Forte e apressado, London era um leão literário, depois de já ter alcançado fama internacional com romances de aventura como O chamado Selvagem (1903), O Lobo de Mar (1904) e Caninos Brancos (1906).
Mercúrio bronzeado – E tudo isso decorreu da visão e persistência de um homem. Depois de descobrir o surf, London quis aprender um pouco de sua arte. Como ele mesmo conta, as lições foram dolorosas. O sol forte castigou sua pele branca e as ondas o engoliram uma infinidade de vezes.
“Mas amanhã, sim, amanhã, vou estar naquela maravilhosa água e vou surfar de pé, como Ford e Freeth. E se não puder ir amanhã, irei depois de amanhã ou no outro dia. De qualquer modo, uma coisa está decidida: o Snark não sai de Honolulu até que eu também voe com as asas no tornozelo, com a rapidez do mar e me torne um Mercúrio bronzeado, com pele que não descasca”.
Desta maneira, o escritor revelava toda sua paixão por um esporte que ele entendera como sendo aristocrático. “É o que isso é: um esporte real para os reis naturais da terra”.
Referências:
A Travessia do Snark, Jack London
Stoked, uma história da cultura do surf, Drew Kampion
Legendary Surfers, Malcolm Gault-Williams
History of Surfing, Nat Young
The Next Wave, The World of Surfing, Nick Carroll.