Leitura de Onda

Um gênio, dois monstros e alguns décimos

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Aos 44 anos, Kelly Slater chega ao Taiti para a sua 29a tentativa de chegar ao lugar mais alto do pódio numa prova de elite desde que vencera em Pipeline, no distante 2013. Foto: © WSL / Cestari.

 

Primeiro, o gênio, Kelly Slater.

Foram 983 dias de jejum, parecia o ocaso definitivo de um super-homem. Em cada etapa mal concluída, em cada onda não finalizada, todos, até adversários mortais, sofriam um pouco, em silêncio, diante do aparente fim da mais longa era do esporte. Quem viu os tais 11 títulos mundiais e a fúria competitiva do americano é capaz pelo menos de imaginar o tormento que, por dentro, consumia-lhe a alma.

Aos 44 anos, repito, aos 44 anos, ele chega ao Taiti para a sua 29a tentativa de chegar ao lugar mais alto do pódio numa prova de elite desde que vencera em Pipeline, no distante 2013. Como manter a chama acesa, sobretudo para um cara tão viciado em sucessos e vitórias? Os socos na água, a prancha partida em três, o visível desconforto em seu semblante a cada derrota denunciavam um atleta inconformado.

Pois bem, ele cismou que derrotaria seu fracasso, como fez com tantos adversários.

Nos belos canudos de Teahupoo (façamos justiça, muito bem escolhidos por Kieren Perrow), Kelly foi, de longe, o melhor surfista do evento.

Fez quatro notas dez; ganhou o Andy Irons Award, prêmio simbólico que leva o nome do maior rival; fez uma bateria perfeita, nota 20; e foi o único surfista capaz de fabricar notas máximas longe das melhores ondas do dia. Sua colocação, linha no tubo, além da capacidade de frear no limite a prancha, de flutuar sobre a bola de espuma e de sair depois do spray, fizeram enorme diferença nesta etapa.   

As circunstâncias – a pressão para reverter a má fase, a ameaça viva da nova geração, a idade avançada, os outros negócios – tornam a vitória do Taiti em 2016, a 55a de sua carreira, uma das maiores da vida do maior de todos os tempos. Talvez a história se encarregue de nos mostrar, em cores mais claras, a dimensão do feito de Kelly.

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Nos belos canudos de Teahupoo, Kelly foi, de longe, o melhor surfista do evento. Foto: WSL / Poullenot.

 
Agora, os dois monstros, Gabriel Medina e John John Florence.

Se havia ameaça ao reinado de Kelly, estava nos pés de Gabriel Medina e John John Florence. Chamados de monstros pelo próprio vencedor, eles realmente se posicionam cada vez mais acima dos demais, como os dois surfistas fora da curva da elite.

O Taiti serviu para consolidar de vez uma rivalidade que tende a explodir nos próximos anos, para a alegria da WSL, que provavelmente verá sua audiência ganhar pontos.

De um lado, Gabriel, um freak capaz de ser o melhor em todas as condições. Um surfista imprevisível, afiado, dono de um espírito competitivo intimidante, assustadoramente potente fisicamente. Um atleta que desconhece limites, intimida os adversários e é capaz de se reinventar a cada ano. Sua evolução constante, partindo de um nível altíssimo, produz a estranha sensação de que ele um dia se tornará uma máquina imbatível. Sei que isso é impossível. Afinal, ele é humano.     

De outro lado, John John, um talento fora de série, quase um artista, dono de um jeito de surfar despreocupado, neutro. Transformou-se num símbolo de resistência do esporte original, num herói daqueles que amam essencialmente o surfe, que reprimem a cultura extremamente competitiva do mundo contemporâneo. Seus movimentos produzem um perigoso encantamento nos juízes. É um cara capaz de hipnotizar o mundo, de fazer com que relevemos critérios. Talvez, por isso, seja o surfista que mais facilidade tem para alcançar notas altas no circuito mundial. Tornou-se parâmetro.

Os rivais foram protagonistas, no Taiti, da melhor bateria de toda a temporada. Conseguiram superar a fantástica disputa entre o agora aposentado Taj Burrow e o mesmo John John Florence em Fiji. Uma aula de surfe num palco de gala, uma assombrosa demonstração de competência e talento, onda a onda.

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John John Florence supera Gabriel Medina em duelo eletrizante. Foto: WSL / Poullenot.

 
Chegamos, então, ao debate dos décimos.

Há um provérbio alemão que diz que o diabo mora nos detalhes. Décimos são detalhes de uma nota altíssima – sejam baixos ou altos, jamais serão considerados erros grosseiros. O problema é que há um determinado nível de competição – como o que ocorreu na disputa entre o brasileiro e o havaiano na semifinal do Taiti – que depende fundamentalmente dos detalhes. Dos décimos.

Dois surfistas à beira da perfeição, num mar maravilhosamente perfeito, inesquecível, podem produzir a necessidade de um exame mais criterioso no detalhe. No calor da bateria, às vezes, é difícil alcançar precisão fina. Desta vez, de minha perspectiva, os juízes não conseguiram ajustar bem os décimos. Erraram. Não os culpo pelo suposto erro de julgamento naquela semifinal (imprecisão que, é importante dizer, produziu um novo líder do ranking mundial e deixou o outro surfista no terceiro posto). Do jogo.

Gabriel já foi beneficiado por erros. Todos são, ou já foram. Não há conspiração.

O melhor da derrota foi a reação do brasileiro, que abraçou o adversário dentro d’água e não reagiu mal ao resultado. Jogou a pressão para o lado da WSL. Agora, está em boa posição para a guerra intensa que enfrentará até o fim do ano. Pelo que conheço do Gabriel, sente-se mais forte que nunca. Pronto para vencer.

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“Gabriel já foi beneficiado por erros. Todos são, ou já foram. Não há conspiração.” Foto: © WSL / Cestari.

 
Alguns bônus do Taiti.

A quase sempre fabulosa etapa do Taiti produziu, ainda, outros momentos incríveis. Bruno Santos, mais uma vez, mostrou ao mundo que pode ser mortal naquela onda. Foi o único a derrotar o rei Kelly, na fase 4, não eliminatória. Num post, um leitor deu boa sugestão, para que a WSL torne o convite para esta etapa definitivo ao niteroiense, já que ele sempre vence as triagens. Outro gigante na prova foi Julian Wilson, que fez uma nota dez, nas quartas contra John John, mesmo depois de se arrebentar no coral. Vale menção ainda ao afiado Ace Buchan, ex-campeão da etapa, que mais uma vez provou técnica e disposição nos canudos de Teahupoo.  

Que venha Trestles.

As perspectivas para a etapa da Califórnia são as melhores possíveis. John John e Gabriel no auge da rivalidade; Matt Wilkinson tentando renascer das cinzas com seu backside afiado; e, agora, um renovado surfista de 44 anos, atrás da impossível missão de superar a idade, a aparente distância entre seu surfe e o dos novos freaks em ondas de manobra e a diferença de quase 12 mil pontos para o líder.

Torço, desta vez, apenas pela lucidez dos juízes.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".