Andy Irons foi o único surfista da história a fazer tremer as pernas do gênio maior, Kelly Slater. Postou-se, em seus anos de ouro, como uma máquina mortífera insensível às declarações de amor falsas do careca. Eu te amo é o cacete, deve ter pensado o cara quando Slater quis desestabilizá-lo com a frase infeliz, instantes antes da final do Pipe Masters de 2004.
O havaiano entrou na água, ganhou o campeonato e o terceiro título mundial. Ali, meio mundo pensou que tudo estava acabado para um destroçado Slater. A história mostrou como aberrações são difíceis de serem neutralizadas, e Slater venceu outros três títulos.
Mas, a despeito da reconquista do trono, algumas vezes o floridiano foi forçado a lembrar de seus piores momentos em baterias contra Andy. A tensão aumentava se o palco fosse Pipeline, o que aconteceu em dezembro de 2006. Dentro d´água, diante de um bom swell de seis pés, a final estava formada: Andy, Slater e os coadjuvantes Cory Lopez e Rob Machado.
Foi um momento épico. Fosse o surfe um esporte do mainstream, essa bateria viraria filme de Hollywood, um blockbuster capaz de prender multidões na sala escura.
Desta vez, não teve “eu te amo” fora d´água. Slater entrou mordido pela dor de 2004, quando perdeu o título e a moral de uma só vez. Abriu a bateria de forma avassaladora, com um tubo para a esquerda, que lhe valeu nove, e um para Backdoor, pontuado com 8.53. Deixou Slater e os espectadores de luxo da bateria numa indesejável combinação, a minutos do fim.
Alguns assistiam à disputa da areia. Muitos, em todo o mundo, sintonizavam a bateria pela web. Lembro de, na frente do monitor, ter imaginado o vulcão de sentimentos pelo qual deveria estar passando Slater. Dois anos depois da pior derrota da vida naquele mesmo pico, ele estava perto de reconquistar o trono em Pipe, e melhor, humilhando seu algoz em casa.
Slater já tinha conquistado o título por antecipação. Em jogo, desta vez, estava a sua honra mortalmente ferida. E Andy sabia disso, mas estava em casa, sem título da temporada há dois anos e, por isso, mordido, louco para carimbar o caneco do desafeto.
Concentrado como um tigre prestes a atacar a presa, o havaiano estava em todos os lugares ao mesmo tempo. Pegou uma esquerda, entubou profundo e, na saída, emendou num floater sensacional. Ganhou 9.87 e voltou para a bateria. Slater ainda fez um 8.73, mas Andy a esta altura era um trator sem freio. Virou o bico para Backdoor e passeou num tubo nota dez, invertendo magistralmente a combinação aplicada pelo floridiano no início da bateria.
Andy venceu com 19.87 pontos em 20 possíveis. Depois da final épica, o havaiano viveu um drama pessoal gigantesco. É difícil se manter no topo o tempo todo tendo o maior gênio de todos os tempos como principal adversário. No Hawaii, chegaram a circular rumores de que o tricampeão mundial teria tido com problemas com drogas e se internara numa clínica de reabilitação. Mas a informação jamais foi confirmada. O atleta deu entrevista à mídia americana desmentindo os boatos, e informou ter tido um problema sério com depressão.
Seja lá qual foi o problema, ele parece reabilitado a competir em alto nível. Quatro anos depois, voltou a encontrar o velho adversário noutro pico mágico, Teahupoo. Perdeu a bateria da primeira fase, gramou na repescagem, avançou e o reencontrou na semifinal.
Se ganhasse, Slater assumiria a ponta do ranking em busca de seu décimo título mundial, o que dava à disputa uma cor dramática. As ondas não estavam lá essas coisas, mas o duelo entre os dois maiores surfistas da década seria interessante até em ondas de rio.
Andy se transformou numa espécie de monstro reabilitado. Voltou a ser a sombra que fez tremer Slater anos atrás e atropelou o rival. Depois de derrotar o maior de todos, na final o havaiano não tomou conhecimento de CJ Hobgood. Numa hora dessas, com todo o respeito, o cara que foi campeão do mundo sem ganhar uma etapa vira coadjuvante. Andy acordou.
Tulio Brandão é colunista do site Waves, da Fluir e autor do blog Surfe Deluxe. Trabalhou três anos como repórter de esportes do Jornal do Brasil, nove como repórter de meio ambiente do Globo e hoje é gerente do núcleo de Sustentabilidade da Approach Comunicação.
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