Leitura de Onda

Um verdadeiro australiano

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Owen Wright vence o Fiji Pro com atuações espetaculares. Foto: © WSL / Kirstin

 

O surfe foi presenteado dias atrás com um desses espetáculos esportivos raros, que ocorrem quando um atleta (ou um time) consegue atingir, na grande decisão de um evento importante, seu auge físico, mental e criativo.

Lembro alguns episódios. O segundo tempo da Seleção na final da Copa de 70, quando Gerson, Jairzinho e o Capita estufaram (estufaram mesmo) as redes da Itália. O espetáculo dos 7 x 1 na semifinal da Copa de 2014, ainda com um frescor amargo em nossas memórias. A primeira volta de Ayrton Senna no GP de Donington Park, em 1993, quando corria com um carro muito inferior ao de seus adversários e pulou de quarto para primeiro. O então garoto Michael Jordan, lá pelos idos de 1986, no dia em que fez 63 pontos na partida de seu Chicago Bulls contra o Boston Celtics, nos playoffs da Conferência Leste da NBA, um recorde que dura até hoje em jogos da fase final da competição.

Nem é preciso dizer que Kelly Slater estaria nesta lista, a começar pela final perfeita na final do Taiti em 2005, com 20 pontos em 20 possíveis. Mas desta vez o texto não celebra os feitos passados do “mito teimoso”, como diria o amigo e ótimo colunista Alexandre Guaraná.

É hora de falar do australiano Owen Wright, um dos maiores surfistas do mundo, em talento e em altura. Do alto de seu 1,90 metro e parcos 78 quilos, magro feito um faquir, o “Avatar”, como é chamado por amigos, transformou a pesada Cloudbreak, em Fiji, palco da quinta etapa do CT na temporada, num playground de jardim de infância. Dominou a onda e, no controle, brincou com ela.

Destacaria quatro elementos que o tornaram imbatível em Fiji: a abordagem relaxada, quase desapegada; o posicionamento perfeito nos bottom-turns e nas entradas de tubo; a capacidade de duelar com a bola de espuma, sem ser derrotado por ela, acelerando no limite; e, por fim, mas não menos importante, as potentíssimas rasgadas no olho de uma onda volumosa e assustadora.

As duas baterias perfeitas (20 pontos em 20 possíveis), sendo que a última delas na grande final, revelaram um surfista que, depois de um 2011 avassalador, vivia escondido em derrotas bobas. Um australiano genuíno, com surfe power, moderno, backside refinadíssimo e leitura de onda magnífica em ondas tubulares. Além de tudo, dizem os mais chegados, Owen é um sujeito nota 10, desses parceiros raros num mundo cada vez mais robotizado do circuito mundial.

Os australianos andaram forçando a mão para transformar Julian Wilson no próximo eleito do circo. Ele é um excelente surfista, capaz de vencer títulos, e pode vencer ainda este ano. Mas não sei. Desconfio que o sorridente Owen vai lhe tirar o posto de eleito dentro d’água, entre tubos e bofetadas na onda.

Há uma diferença fundamental entre os dois, pelo menos na série histórica do CT até agora: um, quando ganha, dá espetáculo; o outro, geralmente, tem seu resultado questionado por meio mundo. Vive sob o signo da polêmica.

Nas quartas do evento, ele venceu mais uma vez debaixo de desconfiança. Julian eliminou o brasileiro Ítalo Ferreira, que acabou com o jogo de todos apostadores do Fantasy. Dono de um surfe moderno em ondas pequenas, o potiguar esteve totalmente à vontade nos canudos de Cloudbreak e pressionou os juízes pelo resultado com duas ondas no fim da bateria.

Em situação inversa, não tenho dúvida de que dariam a nota a Julian. A segunda onda do australiano foi claramente sobrevalorizada. Mas isso é do jogo. Um é reconhecido e celebrado, já tem alguns anos de elite; outro acabou de entrar no trem. Como diria o frasista Romário, não dá para querer sentar na janela.

Wiggolly Dantas, a aposta certa do evento, perdeu também nas quartas, numa bateria de poucas ondas boas, contra Taj Burrow. Ali, tinha surfe de sobra para atropelar o adversário . Que ele vá mais longe em Teahupoo, daqui a dois eventos.

Adriano de Souza e Filipe Toledo estiveram tímidos em Cloudbreak. Ambos ficaram no round 3. Mineiro fez uma escolha equivocada de ondas no meio da bateria, quando a bateria ainda estava disputada, e viu Dane Reynolds, com preferência, surfar a melhor onda do terço final da bateria.

Sobre Filipe, poderíamos dizer que se ele voltasse em seu floater no fim da onda, na insossa bateria contra Adam Melling, teria avançado à fase 4. Ainda assim, é justo dizer que ele precisa de quilometragem e empenho para dominar as ondas mais volumosas do circuito mundial. Em ondas afeitas a manobras progressivas, ele está nitidamente um degrau acima dos outros. Nos tubos de Cloudbreak, esteve, sem medo de errar, no meio da multidão.    

Os dois foram beneficiados pela derrota de Mick Fanning na fase 5. O nono lugar do australiano não foi suficiente para tirar dos brasileiros a ponta do ranking. Mas, agora, tem uma turma boa encostada, louca para se apropriar da lycra amarela.

Gabriel Medina, o atual campeão mundial, ainda não acordou na temporada. Em Fiji, todos diziam que ele era o melhor no freesurf. Vinha muito forte para a etapa. Por algum motivo – falta de concentração, falta de ondas ou simplesmente falta de sorte – ele não conseguiu, mais uma vez, passar da fase 3. A luta pelo título fica comprometida, embora não seja impossível, mas ainda há tempo de sobra para recuperar o caminho das vitórias nas seis etapas restantes.

A próxima parada do circuito mundial é a direita de Jeffreys Bay. O sul-africano Shaun Tomson, ex-campeão mundial e mestre nas linhas daquele pico, costuma dizer que é uma onda fácil de surfar, mas muito difícil de surfar bem. É hora de a tempestade brasileira estacionar nas águas geladas de J-Bay.

Só o trabalho duro e muita determinação pode conter o “Brickfielder”, vento quente e seco do deserto da Austrália. Owen, Mick, Julian e Taj, respectivamente terceiro, quarto, quinto e sexto colocados no CT, estão na cola, à espera de uma janela de tempo bom para construir, com tijolos, a nova liderança.

Tulio Brandão
Formado em Jornalismo e Direito, trabalhou no jornal O Globo, com passagem pelo Jornal do Brasil. Foi colunista da Fluir, autor dos blogs Surfe Deluxe e Blog Verde (O Globo) e escreveu os livros "Gabriel Medina - a trajetória do primeiro campeão mundial de surfe" e "Rio das Alturas".