Essa conversa com Jeff sobre o Peru e suas ondas lembrou-me de um jogo que fazíamos entre os amigos nos primórdios do surf no Guarujá, nas madrugadas que “varávamos” esperando o sol nascer para entrar na água limpa: consistia numa roda onde cada um tinha que falar o nome de um surfista da época – 1970´s – que aparecia nas revistas “Surfer” e “Surfing”: Reno Abelira, Jackie Dunn, Barry Kanaiaupuni, Paul Nielsen, Eddie Aikau, Corky Carrol, Mark Richards, Shaun Tomson, David Nuuhiwa, Ben Aipa, Pete Townend, Midget Farrelly, Greg Noll, etc, etc. Isso durava horas, e reforçava naturalmente uma cultura ainda embrionária. Quem não soubesse um nome na sua vez caía fora, até sobrar apenas um vencedor. O nome de Jeff era obrigatório, claro. Deu-me uma sensação surreal estar trocando ideia com alguém que até hoje só havia habitado o imaginário e a projeção de um ideal de coragem. É bom lembrar que naquele tempo o Hawaii era outro planeta.
Como campeão em Punta Rocas, cabia-lhe a “honra” de enfrentar um touro que os amigos peruanos garantiram ser um bezerro de chifres aparados. Quando entrou na arena com uma capa vermelha emprestada, Jeff se deparou com um touro enorme, sarado, pouco amistoso, e com chifres que facilmente atravessariam o poliuretano e a resina de sua prancha mais espessa, imagine suas vísceras já amolecidas pela pimenta local! Quando o bicho o percebeu no meio da arena e avançou, Jeff tentou ficar frio, mas, com mais cagaço do que em qualquer dia grande em Waimea ou Sunset, largou a capa, saiu correndo e pulou a cerca, sob a ovação da platéia.
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Entre outras peripécias e desbravamentos, em 1970, Jeff surfou uma virtualmente desconhecida praia de Biarritz, França, 8/10 pés, encontrando um único surfista na água, Matt Miller. Era um velho amigo do North Shore do Havaí com um novo hábito: surfava pelado. Jeff nunca perguntou por que, nem Matt explicou. “Parecia a coisa mais natural do mundo”, comentou Jeff.
Fomos andando só nós dois pela praia até em casa (eu queria lhe dar o meu livro ALMAQUATICA, feito com o fotógrafo Klaus Mitteldorf e o designer David Carson – que Jeff conhecia de outros carnavais quando David fez alguns trabalhos para a Quiksilver-Europa), rindo e nos surpreendendo uma vez mais com a sintonia natural e a familiaridade instantânea que surfistas têm no mundo todo. Ele estava fascinado com o Brasil: “Eu vivi na França por trinta anos. Os invernos são muito longos. O Brasil é uma ótima alternativa. Você ainda pode encontrar praias vazias, vida selvagem, ótima comida, bom tempo e um estilo de vida vibrante que não é muito caro ainda!!!”
Após entornar dois copões de água, Jeff disse, “Depois de rodar o mundo todo, meu amigo Sidão, vou te dizer que o Brasil é a melhor opção….”. Mesmo considerando que Jeff é um nômade apaixonado pela estrada e suas mudanças de paisagem, ouvir isso de um estrangeiro nos dá uma perspectiva mais otimista em relação ao nosso país, com o qual tendemos a ser hipercríticos. Eu estava ouvindo tudo isso do cara que foi o mais jovem campeão mundial de todos os tempos, aos dezessete anos, vencedor do título por duas vezes, no início dos anos 1970. Jeff dominou o esporte na maior parte da década, vencendo o prestigiado Campeonato Eddie Aikau Invitational por duas vezes, por três vezes o Hang Ten Invitational, levando também o caneco do primeiro Pipeline Masters ( de back-side – no less! ), e do Guston Pro na África do Sul. Foi eleito, também aos dezessete anos, o melhor surfista de ondas grandes do mundo. É outro nível. Casca mais que grossa, grossíssima. Fica difícil separar o fã do escriba-jornalista. Existe objetividade emocional? Agora existe.
Durante a conversa ele comentou que quando era garoto era o mais baixo da sua classe, e eu perguntei se não teria sido essa característica um motivador extra. Ele admite, após pensar um pouco que, realmente, esse fato adicionou uma vontade a mais para superar obstáculos e mostrar a todos que podia fazer e acontecer, no caso, no universo das ondas gigantes do Hawaii. O surf agradece Jeff não ser dez centímetros mais alto.
Jeff, com sua namorada Sandy Raymond, e mais uma vez com seu compadre Gerry Lopez, desbravou Bali, suas ondas e seus cogumelos em 1973. Deslumbrados, surfaram Uluwatu e Kuta Reef non-stop. Foi nessa época que a vilã heroína, que viria a ser sua companheira por anos, foi apresentada por Sandy e entrou para a família. Em Bali era fácil e barato. Depois de um mês usando direto Jeff ainda achava difícil admitir que estivesse viciado.
Não é preciso ser o Einstein para relativizar e entender que a personalidade de Jeff é multifacetada e intensa, trafegando por uma fórmula de extremos que a maioria de nós nunca vai entender e muito menos experimentar: eJ = másc2 (“a energia de Jeff é igual à massa d´água de Sunset Beach vezes a velocidade da luz no fim do tubo ao quadrado”). Como explicar, por exemplo, que o homem que mais rapidamente adaptou-se à mudança de regras que viriam a definir as baterias dos campeonatos no começo dos anos 1970, usando um racional extremamente acurado, e no processo tornando-se o melhor surfista competidor do mundo, viria a sucumbir à emoção das drogas? Nas palavras do ícone da crônica surfística, Drew Kampion, ao analisar a capacidade de Hakman de reagir ao novo: “Jeff trocava emoção por compreensão”. No caso da competição, sim, ele sabia ser racional, sabia vencer o outro.
(continua)
Sidney Luiz Tenucci Jr, o Sidão, foi o criador da OP Ocean Pacific no Brasil. É colunista do site Waves há 10 anos. Viajou 55 países esbarrando em todo tipo de onda marcante e de figura carimbada. É autor dos livros Almaquatica (Ed. Terra Virgem), O Surfista Peregrino e Poentes de Amor (Ed. Decor). Lança em breve “Os Sete Chakras Geográficos”, pela Editora NeoAnima.
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