Ricardo Lobo, empresário carioca e ex-competidor, apresenta uma reflexão sobre o livro “Outras Ondas”, do conceituado jornalista e surfista Fred d´Orey.
Com raízes em Ipanema, ele é proprietário da Veltra, renomada fábrica de equipamentos e acessórios para surfistas, que atua no mercado desde 1984.
Com vocação comprovada na redação de crônicas que envolvem o universo do surf, Lobo envia-nos mais esta valiosa colaboração em texto. Confira abaixo.
A coluna “Outras Ondas” de Fred d’Orey publicada na revista Fluir especial de 26 anos me chamou atenção. Muito bom! “A internet matou o índio” é uma verdadeira reflexão sobre a maior virtude do surfe, que o torna diferente dos demais esportes, artes ou atividades, a imprevisibilidade.
Fred escreve muito bem. Sempre abordou tudo que fez na vida de forma profunda. Seu surfe no final dos anos 70 e durante os anos 80 estava muito à frente daqueles tempos. Um dos maiores talentos que conheci.
O texto me fez lembrar também, que quando inventaram o vídeo cassete todo mundo passou a surfar meio parecido, sob uma mesma referência. O surfe parece sensível a tecnologias, mas imutável em sua natureza. Ora, vamos deixar esse assunto para outra ocasião, ou quem sabe o próprio Fred o aborde.
Também imaginei o impacto que tal texto deve ter causado nos leitores da Fluir. Quando li seu livro “Outras Ondas” (Editora Gaia) fiquei impressionado com a influência que Fred exerce em nosso ambiente. Vi suas idéias serem explanadas como se fossem leis por todo tipo de gente: lojistas, estilistas, surfistas e até jornalistas.
O Brasil não dá onda, logotipo que tira liberdade. Fred precisa ser mais bem interpretado ou senão ao ler “A internet matou o índio” vai ter gente quebrando o computador, ou deixando de consultar o nosso tão preciso Wavescheck, para sentir-se mais soul surfer.
Em seu livro, navega por vários assuntos, mas sempre converge em busca de “Outras Ondas”. Durante o percurso, questiona “a onda”, aquela que todo mundo pega, ou melhor, compra embalada pela indústria do esporte inflada nos anos 80. Como se ao colocar adesivos na prancha ou sonhar com uma carreira no surfe profissional o surfista perdesse sua essência.
“Outras Ondas” enaltece o surfe como a viagem interior, o soul. O surfe puro, selvagem dos anos 60 e 70. Os soul surfers buscam a felicidade dentro de si, são supostamente profundos, auto-suficientes, ídolos de si mesmos. A viagem interior a partir das viagens ao exterior.
A crítica ao surfe competição e seu mercado é válida. Entretanto, Fred pouco fala sobre a enorme contribuição que o surfe como esporte gera, o quanto nossas competições unem e humanizam as pessoas, o quanto o surfe se popularizou nos anos 80. Algo que talvez não acredite ou apenas não tenha muito interesse. Ou o irrite.
Suas verdades são bem-vindas, mas talvez não tenha se tocado que o soul, a viagem interior e a imagem do surfista de alma passaram a ser a mercadoria mais banalizada de nosso mercado. O que há de mais fake.
Aliás, não sei se são de nosso mercado. Isso vai depender das conveniências. Não param de vender a imagem do surfe decorada com pranchas pseudo-antigas, ou seja, o surfe retrô dos anos 60 e 70 trazido aos tempos atuais através da viagem interior.
Isso mesmo, para fazer um clima, utilizam pranchas novas com aspecto fake de antigas como peça de decoração. Lembram os lustres das casas dos novos ricos que querem parecer de famílias tradicionais. Tudo isso para vender um passado que não tem para um consumidor que aprendeu a ser ídolo de si mesmo.
Descobriram este filão. Fred não pode ser responsabilizado se suas reflexões, infelizmente, serviram de atalho para venderem o surfe sem precisar dos surfistas. A questão é muito mais complexa. Esta fórmula esta muito manjada em nosso país nos mais diversos setores. Não é de hoje que se vende o surfe sem precisar dos surfistas bem como, não é de hoje que se vende o Brasil sem precisar dos brasileiros.
E desta vez não adianta colocar a culpa na colonização portuguesa, como insiste Fred em seu livro. Essa turma não é dona de padaria. E cá entre nós, granfino não gosta de se identificar com surfistas profissionais que hoje, ao contrário dos anos 70, vêm das comunidades.
Assim vamos fabricando “Marquinhos Fanho” em série. (o Mick Fanning brasileiro da incrível estória contada no livro, págs. 74 / 77), e transmitindo para as novas gerações uma mentalidade que nenhum outro país nos obriga a seguir.
Expondo duas vertentes de um mesmo mercado que torna nossos surfistas, por um lado, desnecessários ao marketing que vende o surfe utilizando o próprio ego dos consumidores como ferramenta e, por outro, supérfluos diante de consumidores ávidos pela grama do vizinho que é sempre mais gringa.
O surfe é realmente uma viagem interior. Fred tem razão. O surfista, por mais soul que seja, pode aceitar que nosso esporte está cada vez mais popular e sentir, no fundo de sua alma, o quanto isso contribui para torná-lo mais humano.
Nem precisava dizer, recomendo “Outras Ondas”. Vale a pena, leitura obrigatória para nós surfistas. Concordando ou não com alguns pontos de vista ali expostos, o livro representa a coragem e opinião de alguém que não se vende. Embora tenha a credencial, Fred não me parece um jornalista quando escreve. Trata-se de um grande surfista em busca de si mesmo que não tem medo de dividir seus sentimentos com seus leitores.