A arte de prever é tarefa difícil, principalmente para coisas imprevisíveis em relação a pessoas imprevisíveis. Não que eu tenha subestimado Gabriel Medina, mas, no fim do ano passado, em uma entrevista a uma revista especializada, relatei que estava apostando em Adriano de Souza para mais uma vez encabeçar a tropa de elite brasileira no Tour 2014 por sua experiência, garra, determinação e foco (isto é outro capítulo).
Achava que Medina, apesar dos estragos já feitos, estaria ainda ganhando muita experiência, ou seja, quilometragem. O ano começou, e ao sair de contusão, o cara quebrou regras e venceu no difícil campo competitivo que é Snapper Rocks. Geralmente, quando se está machucado, das duas, uma: ou o cara volta extremamente inseguro, ou enche o tanque com toda aquela esperança, e foi o que aconteceu. Volta às ondas com chave de ouro.
O ano foi seguindo e “pôu!”, o cara ganha em Fiji. Lidera o ranking aqui, desce ali e lidera de novo até chegar ao Tahiti. Uma semana antes desse evento começar, me peguei trocando ideias com alguns amigos e relatando que, se Medina vencesse em Teahupoo, possivelmente poderíamos ter o tão sonhado título de campeão mundial para o Brasil.
Tirando suas manobras futurísticas, em que Gabriel é excelente, os tubos também já faziam parte do cardápio havia tempos. O quinto lugar no seu primeiro Pipe Master já mostrava isso, e se em Teahupoo tivesse outros favoritos, Medina poderia muito bem correr por fora. Swells constantes se aproximando para um dos maiores espetáculos da terra! Medina segue passando suas baterias pegando tubos longos. Lá para as tantas, via-se que a semifinal entre Slater e Florence provavelmente seria um dos mais emblemáticos confrontos do mundo do surf. E foi!
Estavam ali os dois maiores tube riders de costas pra onda da atualidade. Posso estar errado, mas nunca vi na vida um goofy footer fazer o que esses dois fizeram ou fazem. Poderíamos ter um dia no circuito uma onda pra direita igual a Teahupoo para tirarmos a limpo. O foco de Kelly foi tão alto naquela semi que, depois da vitória e em estado de graças, parecia momentaneamente ter esquecido a final. Antes disso, Florence quase vira. E pra muitos virou. Aliás, empatou e Kelly ganhou, mas tanto fazia fosse pra um ou pra outro. Iriam existir controvérsias. Assistir pela internet é diferente do ao vivo, mesmo sendo em tempo real. As coisas através da tela são muito mais fáceis e diferentes, e temos que sempre guardar a diferença na hora de afirmarmos ou apontarmos fatos.
A estratégia tão falada de Gabriel vinha funcionando muito bem, ondas um pouco menores e emparedadas que emendavam algumas vezes com bowl de oeste. John John e Kelly vinham na estratégia que lhes era normal, ou seja, na bomba. E foi isso que Slater relatou em observação quando a ficha caiu que teria de disputar a final contra Gabriel. Bateria final iniciada! Medina senta bem dentro do pico e vem sua primeira onda tubular e longa. Se fosse em outra bateria, teria recebido mais nota, como vinha recebendo, pois cada bateria é uma coisa diferente. Slater boia e perde prioridade, quando Medina se aproveita e pega uma bomba saindo no spray e botando o americano na pressão.
A pressão pode ser vista em seguida, quando Kelly pega uma onda mediana, que em outras baterias talvez não pegasse. Slater entuba sem as mãos, não completa e começa ali uma bateria ruim do 11 vezes campeão do mundo. Ainda falta muito tempo, mas Medina tem vantagem e amplia em uma onda ainda maior, fazendo sua melhor na bateria até o momento.
O ex-campeão mundial Martin Potter terce muitos elogios ao brasileiro. Kelly ameaça remar em uma onda quando tem a segunda prioridade, enquanto Medina se diverte” pegando mais um tubão. Pressão pra quem? Pro Kelly! E é ele quem vem numa da série, agora, sim, do jeito que ele buscava. Faz notão e volta pra bateria, que a partir dali fica excelente.
A turma grita no canal quando Gabriel, posicionado agora na estratégia que Kelly vinha usando durante sua campanha até aquele momento, pega outra bomba. Que salão! A velocidade adquirida depois do spray foi tanta que o bicho saiu voando como uma perereca saltitante. Aliás, uma das características de Medina durante toda a prova foi sua inicial aceleração. Velocidade esta que o levou a sair de muitos tubos. E nesta onda parecia comprovar sua escalada rumo à vitória, mesmo tendo a onda de Teahupoo e Kelly pela frente.
Mais da metade da bateria e Kelly pega uma onda similar ao seu high score. Poderia, de repente, ter conseguido seu score ali. No entanto, usando a mesma trajetória da onda anterior, acabou caindo pra frente, quando saía fazendo a curva abaixo do lip. E a vitória de Medina ia se concretizando. Todo campeão é munido de uma boa áurea, parecia ser o momento dele. Mas, aos dez minutos finais, Slater induziu Medina a usar sua prioridade. E acho que fez o correto indo naquela onda, porque nunca sabemos do que Kelly é capaz.
No entanto, por estar deep, Medina ficou pra trás. A partir dali, caminho aberto mais uma vez para o americano, que pega mais uma boa onda, sem ser suficiente pra virar, mas volta para o outside com a prioridade. Dois minutos para o término, expectativa a mil quando a onda entra e Slater dropa atrasado, sem mão na borda. A onda dá uma ligeira balançada quando Kelly conserta meio desarrumado. O bicho estava muito deep, mas, quando a câmera virou o ângulo, vimos o norte-americano ser derrubado pelo foam ball final. Talvez aquilo fosse natural, mas, se ele tivesse agarrado as bordas no início, talvez pudesse obter a fração de segundo à frente do espumeiro.
Mas agora Medina tem a prioridade, quando mais uma série aparece. E aí aparece o “certo pelo não certo” e talvez entre em prova a intuição do campeão. Remo ou não remo? Bom, com Kelly jamais se pode dar mole. Por sorte a onda, que também tinha tamanho, não se desenrolou na bancada para a virada, e a de trás miou” quando a estrela do campeão brilhou. Que bateria, que vitória! Este último aspecto talvez seja um quesito que Medina vá ampliando em sua bagagem, e se agora já está neste estágio, ninguém segura! É só fazer o dever de casa, o que aprendeu neste curto período de carreira vitoriosa.
Medina explodiu! Tudo é Medina! Vem quebrando todos os tabus no circuito mundial e assombrando a galera. É incrível ver garotos de outras nacionalidades tendo-o como referência. Se o garoto de Maresias já era um dos centros das atenções, agora ainda mais dita regras. Excelente momento para o surf brasileiro, que, quem sabe, poderá ter uma grande alavanca com a épica vitória de Medina em cima do melhor surfista de todos os tempos em uma de suas ondas prediletas.
Desde a vitória de Medina na semana passada, eu e outros surfistas de gerações passadas somos solicitados a falar sobre o acontecimento. A mídia não para de bombar, e neste domingo acompanhei atentamente a uma grande matéria no Esporte Espetacular. E diga-se de passagem, divulga-se que o surf é o segundo esporte mais praticado do país. Bom, deve ser mesmo, pois vi a manchete sinalizada pela ex-campeã mundial de bodyboarding e agora apresentadora Glenda Kozlowisk anunciar a matéria no primeiro bloco do programa e o suspense foi até o fim da manhã. Com certeza o Ibope deve ter sido alto, e se a carreira de Medina já vinha sólida, graças a ele o surf brasileiro agora vai pra outro patamar. Penso que uma legião de melhorias irá surgir internamente, mesmo que pouco perceptíveis a curto prazo. A corrida no Tour da ASP vai estar muitíssimo mais interessante! E eu, que nem tinha me tocado, este já é o quinto ataque de Gabriel no Tour, ou seja, aquele perfil de uns três anos de adaptação está se concretizando. Bom, previsão é uma coisa complicada, mas tal como em um dos textos que fiz recentemente, relatei ao final que estaria se formando um campeão.
Parabéns, Gabriel, família e todas as pessoas que o cercam em sua brilhante carreira. E que os demais atletas brasileiros no Tour tenham esta inspiração a seguir, pois é sempre aquela onda de um puxar o outro e talento também é o que não falta para o resto da tropa.