Leitura de Onda

War

Gabriel Medina , Billabong Pipe Masters 2015, Pipeline Hawaii.

 

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Foto: © WSL / Kirstin.

 

Until the philosophy which hold one race

Superior and another inferior

Is finally and permanently discredited and abandoned

Everywhere is war, me say war.

 

Tomo emprestado o discurso do imperador etíope Haile Selassie, transformado em hino por Bob Marley, para declarar guerra simbólica a quem pretende transformar a World Surf League (WSL) num balcão de placares forjados.

 

Até o dia 10 de setembro de 2016, esta coluna entendia – ou se esforçava para entender – os erros eventuais de julgamento na elite do surfe mundial, entre os quais alguns grosseiros, como produto de um equívoco técnico, desprovido de má fé.

 

Hoje, diante do que se viu em Trestles, na desde já lamentavelmente histórica bateria entre Gabriel Medina e o local Tanner Gudauskas, é difícil seguir sem acreditar que possa haver algo maior que simplesmente uma interpretação equivocada. Vergonha.

 

As notas absurdamente achatadas do brasileiro na fatídica bateria número 7 do round 3 acabam, por outro lado, sendo úteis a um observador atento.

 

Servem para tirar o véu que cobria repetidos erros de membros de uma entidade que deveria defender, acima de todas as bandeiras, a enorme nação do surfe.

 

Servem para calar brasileiros que insistem em chamar de mimimi ou de complexo de vira-latas qualquer menção às falhas de julgamento. É isso o que eles querem, que você enxergue com os olhos deles. Eu enxergo com os meus.

 

Servem para entendermos melhor a enorme dimensão dos dois últimos títulos mundiais, conquistados mesmo diante de todas as pedras ocultas no caminho.

 

Servem para reconduzir ao eixo o meu pensamento crítico. Na etapa anterior, em Teahupoo, fiz um esforço de Buda para conter o texto na derrota de Gabriel para o ungido John John Florence. A favor do havaiano, seu inegável talento.

 

O caso Trestles me impactou decisivamente. Mick Fanning, Julian Wilson, Alex Ribeiro, Miguel Pupo, os comentaristas da WSL, Barton Lynch e milhares de outros anônimos que amam o mar também demonstraram, cada um de seu jeito, que não concordaram com o absurdo.

 

Mas o choque não me cega a ponto de acreditar que a World Surf League seja o reino da vilania mundial. Não. É uma entidade heterogênea, em formação, repleta de interesses conflitantes entre si, que tenta seguir adiante, mas às vezes deixa prevalecer seu lado menos nobre, mais pobre de espírito.

 

É complicada a vida de quem quer ver Gabriel perder. Hoje, o garoto é o melhor do mundo com lycra de competição. O mais completo, o mais agressivo, o mais mortal, o mais intimidador. Ninguém se atreve a negar isso. Nem mesmo surfistas americanos, como Brett Simpson, que, com a visão crítica de quem está fora do circuito, disse em Trestles que torcia por John John, mas comparou o brasileiro a Kelly Slater.

 

O que a WSL está fazendo é enterrar, com erros grosseiros, uma potência esportiva rara, que em condições naturais seria um multicampeão mundial.

 

O que a WSL está fazendo é expor ao risco a imagem das gigantes que bancam o esporte, como a Samsung, empresa que tem feito um excelente trabalho de patrocínio, com milhões em jogo.

 

O que a WSL está fazendo, em outras palavras, é dar um tiro de fuzil no próprio pé.

 

Por trás dessa sucessão de erros, está a cultura. Por mais que se esforce para ser global, a entidade ainda tem traços claros de um velho feudo da cultura saxã. A real é que eles sempre foram os donos da bola, e é natural que se sintam ameaçados pela avalanche de excelentes brasileiros que tomou o circuito mundial de assalto.

 

Até Ricardo Bocão, um cara ético e equilibrado que dedicou a vida ao surfe, falou sobre a sombra desse “grande incômodo”, de ver brasileiros vencendo títulos, em sua coluna pós-Teahupoo, quando comentou a derrota de Gabriel na semifinal.

 

Calma. O sentimento por aqui não seria muito diferente se australianos se arvorassem a dominar o futebol, nos derrotando sucessivamente em copas do Mundo. Imaginem.

 

A coisa se torna ainda mais difícil de ser entendida quando vemos um surfista australiano, como Matt Wilkinson, então vice-líder, ser alvo de um resultado duvidoso ainda na fase 2 do evento. A questão simbólica da cultura, portanto, está também submetida a outras variáveis, como a construção de um campeão mundial consistente, que seja também um grande produto. Wilko não parece ser uma aposta. John John é.

 

Os dois títulos do Brasil revelam um enorme e louvável esforço da entidade em se entender como global, mas o aparente freio nos ânimos de Gabriel também revela a dificuldade de lidar com a ideia de uma era de conquistas brasileiras. Filipe Toledo, de longe o melhor surfista em Trestles, tem tudo para ganhar o evento. Mas não está disputando título mundial. É dúbio e complexo, como parece ser a direção da World Surf League.

 

É aí que está a guerra simbólica. Não uma briga maniqueísta, não um chamamento para a porrada. É uma guerra silenciosa, de construção de ideias e de resistência, liderada por surfistas que combinam criatividade, fibra e talento, capazes de romper essas invisíveis barreiras culturais que, às vezes, ainda nos atrapalham o caminho. A luta é para fazer valer definitivamente os nossos valores.

 

Não desistam jamais. Como diria o lutador Marley, no hino “War”… 

 

As we are confident in the victory.

A redação do Waves entrou em contato com a World Surf League (WSL) para saber qual a posição da entidade, mas até o momento a sua assessoria de imprensa não se manifestou sobre o assunto.

 

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