Leitura de Onda

You can script this

Mick Fanning, J-Bay Open, Jeffreys Bay, África do Sul.

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“Desde muito antes de o elegante Mick Fanning voltar ao lineup sul-africano para encarar seus medos, todos sabiam que ele venceria.” Foto: © WSL / Kirstin.

 

A WSL se apropriou muito bem da imprevisibilidade do surfe em sua mais recente campanha. Acertaram em cheio: “you can’t script this” é o maior valor do esporte.

Mas o mundo das ondas às vezes nos impõe o fardo da previsibilidade. Falta a algumas coisas justas a dose vital de surpresa. É o incômodo de saber o fim desde o início.

Jeffreys Bay este ano não surpreendeu nem o mais ingênuo espectador. Deu o óbvio, tudo dentro de um roteiro escrito ainda ano passado. Desde muito antes de o elegante Mick Fanning voltar ao lineup sul-africano para encarar seus medos, todos sabiam que ele venceria. Até o tubarão, que apostou suas fichas nele.

Em certa medida, a história de J-Bay 2016, embora previsível, é fascinante e justa.

Fascinante por ser um fabuloso e midiático desfecho para um drama de quase-morte, vivido por um surfista carismático, premiado, talentoso e gentil.

Justa pela confirmação da soberania técnica em J-Bay de um dos mais refinados surfistas que o mundo já viu, ainda que suas notas tenham sido eventualmente turbinadas pelas circunstâncias. Ele esteve sempre melhor que seus adversários – depois de vencer a modernidade de Filipe Toledo nas quartas, ele passou pelo surfe alinhado de Julian na semifinal e, na decisão, impôs seu surfe clássico sobre um estrelado e moderno John John Florence.

Trilhos precisos e arcos bem desenhados ainda dão as cartas na África do Sul.

J-Bay perdeu a capacidade de surpreender também pelas condições fracas de ondas. Os confrontos anunciados para as quartas-de-final prenunciavam um espetáculo inesquecível, com boa parte dos surfistas mais instigantes do mundo na chave, mas não houve combinação de swell e vento que sustentasse o palco para as estrelas.

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“Gabriel caiu para Julian Wilson, espécie de algoz fabricado do brasileiro, um cara que se acostumou a derrotá-lo em baterias apertadas e duvidosas.” Foto: Luca Castro.

 
Para os brasileiros, os confrontos estavam especialmente difíceis. Gabriel caiu para Julian Wilson, espécie de algoz fabricado do brasileiro, um cara que se acostumou a derrotá-lo em baterias apertadas e duvidosas. Para além da possível sorte de sempre vencer por décimos, o australiano tem a seu favor uma linha de surfe plenamente adaptada à direita sul-africana. É um grande surfista.

O brasileiro poderia ter vencido com a última onda – ou mesmo se considerassem um abismo maior da melhor onda dele para as demais surfadas na bateria. Por outro lado, Gabriel esperou muito para fazer uma segunda nota média. Teria fechado a tampa da bateria com uma intermediária no meio da disputa. Depois da sirene, para além do resultado polêmico, ele possivelmente lamentou a estratégia que permitiu a dúvida dos juízes e, por tabela, a sua derrota.

Filipe Toledo deu um enorme salto de qualidade em J-Bay este ano. Surfou o fino em algumas ondas, encorpou o carving e usou bem o recurso de manobras aéreas. Parou apenas nas quartas, diante de Mick, que surfou mais e fez prevalecer de modo justo o roteiro já rascunhado em seu nome.

Kelly Slater ainda está vivo, mas nem sua história em J-Bay foi suficiente para parar o solto Josh Kerr, que surfou bem durante todo o evento. Devemos reverências eternas ao mito máximo do esporte, mas me angustiei ao ver a diferença de potência, velocidade e agilidade para o australiano. A linha precisa e executada sem arestas ainda está lá, ativa, mas faltou um pouco de pressão.

Muita gente tem batido na tecla de que pranchas estariam achatando um pouco o seu surfe. Há ainda quem diga que a compra da Firewire teria o amarrado à tecnologia, fazendo com que ele não pudesse usar pranchas convencionais com as quais brilhou no passado. Pessoalmente, acho que tudo pode contribuir, mas o maior vilão desta história se chama tempo. Inexorável, impiedoso. Ele chegou até para o Kelly, pelo menos em ondas de manobra e alta performance.

Oxalá ele ressurja na próxima parada do circo, Teahupoo, pleno como em Fiji.

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“Filipe Toledo deu um enorme salto de qualidade em J-Bay este ano.” Foto: © WSL / Cestari.

A maior decepção da chave, gerada pela decisão do diretor de prova do evento de botar a bateria na água, foi a disputa entre John John Florence e Jordy Smith. O sul-africano está no topo da minha lista em J-Bay, especialmente em dias perfeitos, e o havaiano, no topo da forma, está em todas as listas do mundo. Era o confronto que eu estava mais ansioso para ver, especialmente na onda sul-africana.

JJ passou no susto, mas poderia ter dado Jordy. Avaliação difícil, sobretudo pela condição do mar e a forma distinta que a melhor onda de cada foi surfada.

O havaiano venceu ainda Kerr na semifinal, sempre no gosto dos juízes, e parou apenas para Mick na final. Com o resultado, tirou de Gabriel a vice-liderança e incendiou decisivamente a disputa pelo título mundial, encurtando de uma vez por todas a distância para Matt Wilkinson no ranking.

A corrida pela temporada está absolutamente aberta, com vários candidatos e Wilko ainda com alguma vantagem, mas a julgar pelos últimos dois eventos teremos um final de temporada com JJ e Gabriel numa guerra duríssima e particular.

Teahupoo, a próxima parada, é um palco perfeito para a próxima batalha. E, se os deuses do surfe quiserem, será imprevisível, impossível de ser roteirizado e surpreendente, como diz o belo slogan da WSL.

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