Leitura da Onda

O jovem Zico

Filipe Toledo, Vans US Open 2014, Huntington Beach, Califórnia (EUA).

622x415
Filipe Toledo comemora título do Vans US Open 2014, em Huntington Beach, Califórnia (EUA). Foto: Pedro Bala
 

A farra brasileira em Huntington Beach não é nova. Em 1999, Neco e Fabinho disputaram ali a final de um WCT, também em condições que os comentaristas costumam chamar, abusando do eufemismo, de “desafiadoras”. 

 
Em outras palavras, dominar HB não é exatamente uma novidade para brasileiros. Há, no entanto, um cenário bem distinto do experimentado em outras décadas: o Brasil lidera o ranking mundial e construiu, pelo suor de dezenas de competidores, uma história que agora começa a ser reconhecida pelos adversários saxões. 
 
Filipe Toledo, vencedor da última edição do US Open, é dono de um potencial ilimitado, um talento diferenciado. Mas terá que se esforçar para evitar o estigma pelo qual passaram tantas de nossas estrelas do passado, de fora de série em ondas pequenas. Este é um carimbo avassalador, limitante.
 
A notícia de sua desistência da etapa de Teahupoo deve ser lida com cautela. Imaginar que ele trocou a onda do Taiti (esta sim, desafiadora) pela opção medíocre de HB é precipitado. Pode ter havido uma inesperada piora da contusão – não prevista pelo médico que o acompanhava. Pode ter havido uma segunda contusão sobre a primeira. Essas coisas acontecem.
 
De um jeito ou de outro, para a carreira de longo prazo de Filipe, olhando para uma perspectiva mais consistente de disputa futura de título mundial, para um esforço de evolução em ondas de verdade, ganhar em HB vale menos, muito menos, que treinar e competir contra os melhores do mundo em Teahupoo. 
 
O garoto foi abençoado no palco da indústria do surfe mundial, ficou US$ 100 mil mais rico, mas, pela minha perspectiva, perde ao deixar Teahupoo.
 
1000x666
Filipe Toledo em mais um aéreo em Huntington Beach, Califórnia (EUA). Foto: Michael Lallande
 

Filipe é um dos poucos surfistas do mundo que já apresenta resultados consistentes e ainda tem caixa para uma grande evolução. É ágil, elétrico, criativo nas rotações, não se intimida diante de estrelas e tem uma das cartas de aéreos mais sofisticadas e progressivas da elite do surfe mundial. 

 
Mas precisa ganhar corpo e consistência para alçar voos maiores que o de um aéreo gigante em Huntington Beach. Voos mais metafóricos.
 
Filipe é um jovem Zico. 
 
Quem não viveu o futebol do Rio décadas atrás não deve saber da história, mas o craque do Flamengo e da Seleção Brasileira era, lá quando garoto, um júnior talentoso, insinuante, moderno, mas com um físico insuficiente para aguentar o tranco de algumas zagas.
 
O jovem jogador despertou depois de um intenso trabalho de preparação física de um cara chamado José Roberto Francalacci. Sensível, o profissional percebeu que tinha que fortalecer Zico sem tirar dele a agilidade, a ginga, a modernidade e, principalmente, a habilidade. Foram anos de um minucioso trabalho de fortalecimento de músculos de explosão e força essenciais ao seu desenvolvimento, sem que aquilo prejudicasse o seu talento.
  
Filipe merece o mesmo olhar cuidadoso, para exibir seu talento diferente, sua sofisticada leitura de onda e sua gana competitiva, com plenitude, nas ondas mais difíceis do mundo, nas arenas que realmente formam os campeões mundiais. 
 
Não sei se o surfista já realiza algum trabalho físico com essa finalidade. Imagino e torço que sim. O Brasil não pode se dar ao luxo de perder um talento raro para a velha armadilha do melhor surfista do mundo de ondas pequenas.
 
Vou continuar vibrando com grandes vitórias como a do US Open, mas quero, de verdade, vê-lo conquistar o lugar mais alto também em outras arenas. 
Exit mobile version