Raridade no ambiente do surfe, o jornalista Cesar Calejon é um verdadeiro surfista intelectual. Ao contrário de muito bagre do surfe que gosta de exibir uma pseudo erudição ou cultura geral na base do falso inglês relax do surfista, segundo Caetano Veloso, ele vai além e também pega altas ondas.
Afinal, Calejon surfa com elegância e sabedoria pelas ondas da sociologia, pela ondulação de esquerda e de direita na política, e assim fica bem à vontade diante de assuntos áridos, densos e impenetráveis que quase nenhum surfista é capaz de decifrar.
É que, normalmente, surfista comum só gosta de pegar onda e de saber quando vai quebrar. Este negócio de ler, sobretudo tratados de difícil compreensão, literatura hermética não é bem com a galera.
Hoje, Calejon trabalha no Instituto Conhecimento Liberta, projeto do empresário, engenheiro, palestrante, escritor, dramaturgo, apresentador e ex-banqueiro de investimentos brasileiro Eduardo Moreira, segundo descrição do Wikipédia, que oferece vários cursos e apresenta programas no YouTube e na TV.
Ele também participa do canal de humor político Galãs Feios, um portal divertido e crítico de governos, ditaduras e autoritarismo em geral, comandado pelos jornalistas criativos e fora da curva Helder Maldonado e Marco Bezzi, que abandonaram os meios tradicionais da comunicação para lançar um canal irônico e meio biruta com suas palavras, palavrões e pautas anti sistemas.
O detalhe curioso da carreira de Calejon é que, lá atrás, no início dos anos 2000, ele já exibia seu talento e vocação aqui no Waves, com reportagens de trips pelo Litoral Norte de São Paulo ou pela Indonésia. Ele também teve contribuições para a revista Trip.
Assim, surfando pra lá e pra cá, trabalhou com telemarketing e foi parar na política, sendo hoje um dos jornalistas mais respeitados da cobertura ideológica, autor dos livros A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI, Tempestade Perfeita: o bolsonarismo e a sindemia covid-19 no Brasil, Sobre perdas e danos: negacionismo, lawfare e neofascismo no Brasil e Esfarrapados: Como o elitismo histórico-cultural moldou as desigualdades no Brasil.
Aos 44 anos, o paulistano costuma surfar nas Pitangueiras, Tombo e Maresias. Ele aprecia Bob Marley, Rage Against The Machine, Cazuza, Sublime etc. Além de jornalista, é mestre em Mudança Social e Participação Política pela USP com especialização (MBA) em Relações Internacionais pela FGV.
Na entrevista a seguir, ele fala um pouco sobre a sua trajetória dentro e fora do mar. O natural seria ele ir parar na TV Globo. O sobrenatural é ele não estar muito preocupado com isso: “Acho bem difícil, porque eu trabalho com emancipação popular e pensamento crítico e, em algum momento, isso acabaria esbarrando na orientação editorial deles”.
Você participou com textos no Waves há alguns anos e em pouco tempo tornou-se uma revelação do jornalismo político. Como descreve essa trajetória?
Eu sou formado em jornalismo desde 2003 e surfista e skatista desde criança. Sempre usei o texto como principal ferramenta de comunicação, seja escrevendo sobre surfe, skate ou qualquer outro assunto.
Em 2018, com a ascensão do bolsonarismo, eu vi boa parte da nossa sociedade reivindicando uma postura moralista, demandando o fim da “corrupção” e acusando o Lula e a Dilma de serem os maiores “ladrões” da história nacional.
Contudo, eu conhecia bem os acusadores falsos moralistas: são pessoas que burlam licitações públicas, superfaturam contratos, mentem para os seus parceiros, pegam o acostamento quando a estrada está engarrafada, sonegam impostos etc.
Ou seja, são moralistas sem moral. Quando isso aconteceu, eu decidi escrever um livro sobre o bolsonarismo para refletir sobre o que estava acontecendo naquele momento.
Em 2019, eu lancei o livro A ascensão do bolsonarismo no Brasil do Século XXI e o livro foi bem aceito.
Recebi críticas muito positivas e fui citado por grandes nomes da sociologia mundial como referência bibliográfica, por exemplo. Isso mudou a minha vida e eu comecei a me dedicar exclusivamente como escritor para o tema da política.
Desde então, eu escrevi outros três livros, mas o último, que se chama Esfarrapados (Record), é mais sobre sociologia do que sobre política institucional, porque hoje eu sou mestre em Mudança Social e Participação Política pela USP. Com isso, comecei a fazer lives e a participar de entrevistas etc. Foi tudo muito rápido e intenso.
É correto afirmar que o Cesar Calejon do ICL é um jornalista mais engajado, porém moderado na sua atuação, enquanto no Galãs Feios encontramos um Cesar Calejon da galera, mais descontraído, debochado e literalmente à vontade no programa escrachado deles?
Acho que sim. O conteúdo é o mesmo, mas a forma é diferente. Na Galãs, eu posso usar uma linguagem mais direta, falar palavrão, fazer piadas etc. É quase como trocar ideia com um amigo na mesa do bar. No ICL, o formato é um pouco mais sério e analítico no sentido de utilizar uma linguagem menos escrachada, como você bem colocou. Eu amo fazer as duas coisas.
Como surfista, como analisa o circuito mundial com a sua política, regras e detalhes que muitas vezes leva o público à loucura na tentativa de entender suas motivações?
Eu parei de acompanhar o surfe competição por conta do jogo corporativo que a WSL faz. A minha geração ainda sonhava com um campeão mundial brasileiro e a gente tinha a ideia de que surfe era um esporte de contracultura. Esse tipo de coisa.
Há alguns anos, o Medina foi garfado contra o Patrick Gudauskas, eu acho, algo descarado, que fez até o Mick Fanning se manifestar dizendo que ele não tinha entendido o que tinha rolado ali.
Eu comentei num post do Kelly Slater falando isso e ele me bloqueou no Instagram! Isso me deu a real noção do quão corporativista o circuito é e me fez perder o interesse pelos campeonatos.
Adoro o nível absurdo das performances, mas não tenho mais saco para o jogo político. A WSL é uma empresa, que visa o lucro e o seu próprio desenvolvimento. Eles não aguentam mais ver brasileiros sendo coroados ano após ano. Isso é ruim para os negócios, porque eles precisam de público em outras partes do mundo também.
Ou seja, em última análise, o objetivo final não é levar o surfe ao extremo, que é o que me interessa nas competições, mas usar o esporte para fazer a empresa crescer ao extremo, o que acontece com todas as dimensões da vida social sob a égide do capitalismo, aliás.
Assim, além de surfar muito, você precisa estar alinhado com os objetivos empresariais de WSL no momento. Perdi o tesão total.
E como jornalista, o que mais te incomoda na comunicação do circuito mundial da WSL?
A mesma coisa, eu diria, e o quão vaidoso e encerrado em si mesmo o mundo do surfe se tornou. Não existe o conceito de Aloha no sentido literal do termo: amor, compaixão, afeto, paz, respeito e a alegria de dividir o oceano com outros irmãos e irmãs. Aloha é um projeto político progressista de respeito e emancipação, percebe?
Hoje, no Brasil, por exemplo, a maior parte da comunidade surfe é bolsonarista. Com a WSL é a mesma coisa. A WSL cooptou o surfe e o transformou em um produto absolutamente sem alma ou sequer critério de julgamento. Uma desgraça.
Quais surfistas mais admira?
Vou esquecer muita gente, mas o meu favorito de todos os tempos, pelo surfe, pela agressividade e por ser quem ele foi é o Andy Irons. Para sempre. Gosto também do Mick Fanning, Malik Joyeux, Peter Mel, Eric de Souza, Alemão de Maresias jogando a galera nas bombas e vibrando pelos amigos, Pedro Felizardo e os meus amigos, que surfam meio metrinho de onda fechando, no frio, com fralda de criança cheia de merda boiando no canal e, mesmo assim, continuam amarradão.
Antigamente, as marcas internacionais do surfe eram bastante inspiradoras e mesmo quem nunca havia pisado na areia gostava de parecer que era surfista. Hoje, não se vê mais tanta gente vestindo Billabong ou Quiksilver. Ao que atribui essa mudança?
As pessoas buscavam esse aspecto de rebeldia, liberdade, atitude e contracultura que eu mencionei. Hoje, o surfe foi totalmente cooptado e isso não existe mais.
Quais suas viagens internacionais e quais picos mais gostou de surfar?
Costa Rica, Peru, México, Indonésia, Austrália, Cabo Verde, Nicarágua, Panamá etc. Acho que eu mais gostei de surfar o Outer Reef de Popoyo, na Nicarágua, e as Mentawai, na Indonésia, ondas como Bankvaults, por exemplo.
Entre tantos colunistas e gente da mídia do surfe, quais caras mais curte?
Gosto do Edinho Leite, Bruno Bocayuva, Vivian Mesquita e Roberta Garcia (que trabalham comigo no ICL) e Joe Turpel.
E fora do ambiente do surfe, quais jornalistas te inspiram?
Nossa. Muita gente. Meus amigos Leandro Demori, Xico Sá, Chico Pinheiro, Vivian Mesquita, Roberta Garcia, Helga Simões, Gabriela Varella e Mário Magalhães. Gosto do Reinaldo Azevedo, Leo Sakamoto, Kennedy Alencar, Luis Nassif, Flávia Oliveira, Marcelo Lins, Julian Assange etc. Tem muita gente.
Onde gosta de surfar, no Brasil e no exterior?
Maresias e Guarujá. México, Indonésia, Panamá e Nicarágua.
Tanto no ICL, quanto nos Galãs Feios, a atitude é de cobrança e de crítica aos governantes. Vocês sofrem muita pressão por isso?
Nenhuma pressão. Nunca sofri nenhum tipo de pressão por parte de absolutamente ninguém. Sempre me conduzi da forma que achei adequada e sempre disse o que achava pertinente.
Neste mundo de aparências dominado por redes sociais, de que maneira encara esta realidade?
Eu uso as redes sociais para divulgar o meu trabalho, basicamente. Raramente publico algo pessoal. De vez em quando eu posto uma foto de surfe ou um vídeo de skate, mas não exponho as pessoas que eu amo etc. Acho que cabe a cada um saber como usar os recursos que a tecnologia oferece na medida do que é saudável e do que você quer fazer da vida.
Você toparia trabalhar na Rede Globo?
Depende. Do projeto, da ocasião. Do meu nível de liberdade para articular as minhas ideias. Acho bem difícil, porque eu trabalho com emancipação popular e pensamento crítico e, em algum momento, isso acabaria esbarrando na orientação editorial deles.
Largaria tudo para uma surf trip?
Largar tudo, não, porque eu amo o que faço, mas estou organizando a próxima trip, sim. Surfar é uma parte gigante de quem eu sou.
Como surfista você é um cara mais de direita ou de esquerda?
Como surfista, eu gosto de ondas para os dois lados. Como pessoa, estou à esquerda no espectro político e ideológico, porque luto por um mundo menos desigual e violento.