Este texto poderia começar com um caminhão de adjetivos sobre o surfe de Italo Ferreira na vitória de Bells Beach. Monstruoso, impactante, vertical, veloz, potente, surpreendente, progressivo, divertido, seguro, inesperadamente limpo. Mas, muitas vezes, palavras que qualificam algo não são suficientes para descrever uma conquista.
É preciso fazer o exercício inverso da simplificação. Saiu de Adriano de Souza a mais lúcida sentença, no apertado Instagram, do que se viu nas águas de Victoria: “(Italo) foi contra a praia, a publicidade, e o surfe venceu.” Perfeito e sem adjetivos.
Vamos ao saboroso exercício de desdobramento da frase de Mineiro.
“Foi contra a praia.”
No lado oposto da final (taí boa hora de espetar uns adjetivos), o inspirador Mick Fanning disputava sua última bateria como integrante do WCT, em casa. Australianos, contentes em ver seu último tricampeão do mundo na velha forma, apinharam-se nas escarpas de Bells para assistir ao que alguns imaginavam ser o conto de fadas perfeito.
Mesmo os mais conservadores movimentos do australiano eram comemorados como gol, numa demonstração de apoio só vista em areias brasileiras durante etapas do circuito mundial. Urros justos, legítimos.
Mick é um baita surfista, um cara legal, um exemplo na alegria e na tristeza. Um generoso gentleman, num esporte acostumado a comportamentos tribais. Se a nova geração usá-lo como referência, estaremos mais bem parados nas próximas décadas.
Podem se guiar pela sua atitude otimista, por sua gentileza transbordante, pela reação mesmo nas derrotas mais sofridas, que lhe custaram títulos mundiais. Podem se guiar pelos arcos, pela linha, pela maestria na escola de surfe australiana.
Um dos fãs declarados, aliás, estava ao lado dele dentro d’água. Certa vez, em entrevista a Maíra Pabst, editora no site da Red Bull, Italo afirmou se inspirar inteiramente no australiano. Falou em treinamento, foco, disciplina, vontade de vencer. “Eu tento seguir a mesma linha dele”, disse.
Pois então, o tal tricampeão, figura iluminada, estava na final, em seu último suspiro competitivo, diante de apaixonados torcedores. Este é o momento em que olhamos para o feito de Italo, ou mais que isso, para sua capacidade de não sentir a pressão na casa do adversário e, com leveza, pedir aplausos sinceros para seus feitos.
“Foi contra a publicidade.”
Aqui vai uma nota importante: Mick nada tem a ver com isso, mas o conto de fadas de sua vitória estava ensaiado na alma de muitos, inclusive dos donos da bola. A WSL, que vive a vender seu slogan “you can’t script this”, volta e meia não cumpre a promessa. Sabemos disso.
Nada era mais roteirizado que a vitória de Mick. Os anúncios, os enormes banners, as homenagens (todas justas), o viés declarado dos comentaristas, os takes das câmeras oficiais, as entrevistas, toda a carga dramática na praia. Tinha tudo para ser uma despedida bonita, à altura do tricampeão, mas estava mais parecido com um sonolento filme de Sessão da Tarde, daqueles que todos conhecem o final açucarado.
E, claro, eles precisavam combinar com os russos. A começar, com o novo head judge Pritamo Ahrendt, que no início da temporada fez ajustes importantes no critério de julgamento: jogou luz sobre manobras impactantes/progressivas e reduziu o teto do surfe convencional, sem risco. Dar a vitória a Mick seria tarefa difícil no novo critério.
O australiano fez sua parte. Contornou o bowl de Bells com sua linha soberba e bastante pressão, sobretudo nas manobras de borda. Nas junções, muitas vezes aliviou a potência, em nome da onda finalizada. Quando puxou o limite, caiu. Ainda assim, conseguiu brilho e pontos necessários para, de forma justa, alcançar a final.
O outro “russo” era de Baía Formosa. Absolutamente tomado, jogando no limite do bowl o tempo todo, com um poder de finalização ainda não visto em Bells, Italo não estava disposto a ser coadjuvante do roteiro de Bells.
Pela cara de enterro da turma de comentaristas oficiais da WSL, o final não foi o esperado por muita gente. Não rolou o “happy end” pobremente roteirizado, não teve o Mick heroico nos braços dos australianos com o sino nas mãos.
O que rolou, para sorte de quem ama o surfe, foi um fabuloso encontro de gerações, numa inesquecível final, no pico de suas habilidades. Numa leitura melhorada desse roteiro, Italo deu um brilho fascinante à despedida de Mick. Foi uma linda passagem de bastão, de um verdadeiro campeão para um potencial campeão.
Fora d’água, enquanto Peter Mel não se esforçava em esconder o desgosto, Mick festejava com australianos (que entenderam a despedida como algo maior que um vice) e abraçava, também, o seu talentoso fã brasileiro e, agora, candidato ao título.
A turma que chorou com o resultado poderia ouvir o velho Chico Science: “Deixe que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer.”
“O surfe venceu.”
Primeiro, Pritamo venceu. Conseguiu segurar a pressão brutal do ambiente em torno da vitória de Mick e foi justo. Depois, o surfe venceu. Como já dito em outra coluna, os ajustes do head judge deram ao esporte uma nova centelha, um brilho diferente. O surfe conservador parece estar a caminho da extinção, pelo menos na elite.
A WSL deu a vitória ao melhor surfista do evento. Italo, especialmente no dia decisivo, demoliu seus adversários – eliminou dois dos melhores surfistas do evento, Filipe Toledo e Gabriel Medina, além de passar, ao longo do evento, por Ezequiel Lau, que eliminara John John Florence, e Michael Rodrigues. Nas duas baterias de três surfistas, curiosamente, ficou atrás de Gabriel, mas, quando valia a eliminação, manteve a hegemonia absoluta em homem x homem contra o campeão de 2014.
Gabriel, em terceiro, finalmente se ajustou ao tempo da onda de Bells, embora ainda declare preferir Winkipop – é natural que toda a sua geração prefira, pelo tipo de surfe praticado por quem está na ponta. Encontrou espaço para fortes sapatadas nas zonas mais críticas da onda e, nos pontos de espera, surfou na linha pedida por Bells.
Curiosamente, o novo critério pode ter recolocado os goofies no páreo mesmo numa temporada infestada por direitas, por conta da facilidade de encontrar porções mais críticas da onda, com mais verticalidade, surfando de costas para a parede.
Pat Gudauskas, que ficou na semifinal na outra chave, é um dos surfistas a se beneficiar com o novo regulamento. Se no passado a linha quebrada lhe rendia um tampão curto de notas, hoje a busca pelo limite lhe garante pontos preciosos. Ainda será surpresa se for longe no ano, mas, em Bells, surfou muito bem.
Entre os demais brasileiros, uma nota positiva para Filipe Toledo, que fez uma das melhores baterias do evento contra Italo, mas o infernal seed antecipou uma provável final para as primeiras fases. Filipe está no auge da forma, e não chegou às cabeças nos dois últimos eventos por um detalhe. William Cardoso também surfou bem, mas perdeu cedo, no round 3, para Gabriel, por um erro estratégico.
Adriano de Souza, o campeão de 2015, ainda não se encontrou na temporada. Depois de ser injustamente achatado na Gold Coast, sucumbiu aos próprios erros em Bells, mesmo precisando de uma nota muito baixa para passar. Perder assim não é de seu feitio – é hora de se reorganizar mentalmente. John John Florence, o idolatrado bicampeão, ainda não começou a temporada.
Margaret River vem aí, para alegria dos dois últimos campeões do mundo, que já venceram naquelas águas infestadas de tubarão. O provável crescimento dos dois surfistas embolará ainda mais um ranking que se inicia assustadoramente parelho.
Pela primeira vez em muito tempo, não há surfista com dois resultados consistentes após as duas primeiras provas do ano. Owen Wright, que fez boas apresentações, é o mais regular, com dois quintos. Ainda assim, fica atrás de quem tem finais, num ano em que foi ampliada a diferença de pontuação do campeão para os demais.
Em 2018, não há nada perto dos furacões JJ, em 2017 (3, 1); Matt Wilkinson, em 2016 (1, 1); Adriano (3, 2); e Gabriel, em 2014 (1, 5). Está tudo embolado, com dois líderes, Italo e Julian Wilson, e muita coisa para acontecer ainda. Que venha Margaret.