Leitura de Onda

Choque de Italo

Colunista Tulio Brandão celebra vitória de Italo Ferreira e também analisa atuação do vice-campeão Yago Dora e outros brasileiros na Praia de Itaúna, Saquarema (RJ).

0
Campeão do Rio Pro 2024 em Itaúna, Saquarema (RJ), Italo Ferreira cativa o público com seu carisma.

O choro compulsivo agarrado à bandeira, os socos de alegria no piloto de jet-ski, o sorriso escancarado a cada aéreo bem sucedido, a marca registrada do mortal do palanque para a areia, o olhar terno e emocionado de seu Luizinho, os antigos amigos que ainda o cercam e agora o ajudam, a conexão íntima com o povo da praia.

Não, a potência de Italo não está nas inúmeras bebidas energéticas que toma por dia, embora exista uma verdadeira conexão entre ele e sua a marca patrocinadora, a Red Bull. Há algo no modo como o potiguar encara a vida, com verdade, intensidade e sem filtros, há algo no modo como expressa seus desejos, de forma clara e sem filtros, que se transforma em eletricidade e, por tabela, em vitória.

Junte isso a um talento extraordinário, a um equilíbrio quase sobrenatural e, claro, à sua obsessão declarada pelos treinos e pela forma física plena e pronto: temos um campeão da etapa brasileira do WCT, especialmente numa temporada com pressão redobrada pela quantidade de surfistas disputando, onda a onda, uma vaga no Finals.

O mar, na final, não ofereceu as oportunidades devidas a Italo e Yago Dora, mas essa tal potência interna do potiguar tem lhe dado uma capacidade de garimpar pontos necessários à vitória mesmo em momentos críticos e decisivos.

Quando não há muitas oportunidades, ou quando a pressão estoura a tampa da técnica, ele tende a ter vantagens sobre todos, repito, todos os demais adversários.

Yago Dora, surfista mais completo do Rio Pro 2024.

Yago, em sua segunda final consecutiva (tanto na etapa quando na temporada), foi o surfista mais completo do evento e, no pós-corte, é o mais brilhante até agora. Inventivo, absurdamente técnico e, agora, mais competitivo que nunca, o curitibano tem sido capaz de produzir notas excelentes com a mesma facilidade em tubos, no velho surfe de borda ou em manobras aéreas. Está escrevendo, com a borda fina de sua Lost, uma das mais incríveis histórias da temporada: sair da última vaga no corte para uma posição de disputa real pelo título mundial é um feito digno de livro.

De volta a Italo, se eu pudesse escolher um momento simbólico para demonstrar seu pulso elétrico de vitória, esse choque que enfraquece adversários, escolheria as duas primeiras ondas da semifinal contra Griffin Colapinto. O americano, dono de um bom histórico contra brasileiros, tinha acabado de parar o tricampeão Gabriel Medina. Italo abre com um full rotation, mais que full, com volta cristalina na base da onda, e em seguida surfa uma onda maior para fazer uma rasgada e um belo floater. Griffin até buscou recuperação, mas parecia enfraquecido pela eletricidade do adversário.

Na outra semifinal, um Jordy Smith em forma esplêndida deu enorme trabalho a Yago. A onda com uma sequência limpa de manobras de borda potentes do sul-africano merecia mais que um 8,4, mas Yago, melhor e mais moderno, soltou o seu jogo de todas as maneiras e conseguiu, no fim da bateria, suas duas melhores ondas, a última delas, um 9,33 apenas com o uso de borda.

A despeito das declarações infelizes de Jordy fora d’água, é um enorme prazer vê-lo renascer depois de longa hibernação. O sul-africano é um importante representante da escola clássica do surfe, de manobras bem desenhadas e transições limpas. É essencial manter viva essa técnica, de modo a equilibrá-la com o surfe progressivo.

Gabriel Medina fica nas quartas de final do Rio Pro 2024. 

Gabriel precisa reencontrar a fúria competitiva

Tricampeão mundial, vida financeira resolvida, em paz novamente com a família e dono de um status de celebridade que nenhum outro surfista conseguiu alcançar, Gabriel Medina parece viver um dos anos mais tranquilos e felizes de sua vida. Ele é um vencedor, o maior vencedor do país, não há dúvida, e não há nada de anormal em tirar um pouco o pé do acelerador, da obsessão, em nome da saúde mental.

Eu faria o mesmo.

Mas, no ambiente altamente competitivo do WCT, com uma pá de novos surfistas dispostos a matar e morrer por um título mundial, só vence quem deseja muito a vitória. O sucesso conversa com algum grau de obsessão, de modo a permitir que você reduza os espaços de seu adversário mesmo em condições desfavoráveis a seu surfe.

Gabriel não esteve, mais uma vez, entre os melhores de Saquarema. Não é a onda mais afeita à sua técnica, todos sabem, mas muitas outras já não foram um dia.

Depois de um bom round 1, quando fez uma das maiores médias da fase, o tricampeão venceu apertado, num resultado controverso, Cole Houshmand. Eu teria dado a vitória ao americano. Nas quartas, não ofereceu grandes resistências a Griffin e sucumbiu à incapacidade de achar alternativas nas péssimas condições de mar daquele momento.

Talvez seja uma grande motivação que o faça recuperar a velha fúria, como aconteceu, por exemplo, no ISA Games de Porto Rico, em que, em nome da última vaga para o sonho olímpico em Teahupoo, ele venceu todas as infinitas baterias do evento e, de presente, ganhou dos astros uma combinação de resultados lhe assegurou a vaga.

Mas Gabriel tem tanta capacidade de vencer que, mesmo numa temporada sem sequer uma final até a última etapa, pode perfeitamente buscar o quatro título mundial. As condições ainda são favoráveis: disputará, nos próximos dias, o ouro olímpico como um dos favoritos destacados em sua onda preferida e, na sequência, viaja para decidir uma vaga no Finals em outro pico em que é absoluto, Cloudbreak.

Talvez valha se mirar no exemplo de John John Florence, que, em silêncio, faz seu melhor ano da história no WCT e está muito perto de se igualar a seu maior rival. O havaiano sabe que, ao fim e ao cabo, essa ainda é a maior disputa da elite.

Rio Pro 2024 no Point de Itaúna sofre com mar flat ou storm.

Um apelo à WSL América Latina

A etapa brasileira do WCT poderá sempre ser vista de vários ângulos. Foi, em certa medida, sobretudo a comercial, um sucesso absoluto, com a ampliação do número de ativações de marca, o lançamento de um mascote, festas e eventos durante toda a semana, a areia de Itaúna absolutamente apinhada de gente no dia decisivo e, no dia seguinte, uma foto em seis medidas (toda a extensão) de Italo na capa de O Globo.

Um sucesso de exposição de marcas, que tem sido creditado a Ivan Martinho, presidente da WSL na América Latina. Eu entendo e me sensibilizo com todas as necessidades comerciais de um evento como a etapa brasileira do WCT e aplaudo o trabalho bem feito, que tem contribuído, acessoriamente, até para a revitalização da Vila de Itaúna, em Saquarema.

Há, contudo, uma ponta solta importante, que pode ser emendada sem dano aos demais interesses: a onda. O point de Itaúna, pelo menos como alternativa única ao evento, não tem dado conta de entregar ao core do negócio, ou seja, o público que acompanha o esporte e, claro, os surfistas da elite, o melhor espetáculo.

Este ano, a etapa sofreu com uma janela conturbada de swells, com flat e storm no mesmo evento, mas, no último dia, a etapa perdeu uma oportunidade de ouro de entregar uma disputa histórica. Enquanto no point, os melhores do mundo buscavam parcas oportunidades de ondas sem qualidade, ali do lado, a Barrinha, que no passado era apresentada como palco alternativo do evento, quebrava em condições épicas.

Entendo o desafio de manter e, eventualmente, ampliar a força do evento brasileiro, mas é possível, sim, com criatividade e trabalho, incluir a Barrinha neste pacote. Deixo esse apelo à WSL América Latina. Quem em 2025 tenhamos um evento ainda mais bem sucedido comercialmente, mas com mais possibilidades de ondas de qualidade.

A blitz goofy do Brasil para o Finals

Deixemos os Jogos Olímpicos para o próximo texto. O que os três brasileiros de base no pé esquerdo estão fazendo na temporada pós-corte é assombroso. E, para desespero de quem está na briga, a última etapa será numa esquerda tubular, mas também afeita a manobras, que talvez seja a onda mais claramente vantajosa ao surfista goofy na temporada. O atropelo é uma possibilidade concreta.

Na corrida, Italo pulou para quarto do mundo, empatado em pontos com o terceiro, Jack Robinson, e, agora, está muito bem posicionado, com um pé na última edição do WSL Finals que será realizada em Trestles, na Califórnia. Suas credenciais são bastante objetivas: é Pipe Master e venceu a última etapa taitiana, em condições épicas.

Yago, para mim o surfista mais completo do momento e mais encaixado na proposta da onda de San Clemente, vive um ano esplêndido. Em sexto no ranking, vindo de duas finais seguidas, funga no cangote de Ethan Ewing, a apenas 300 pontos, e está pronto para vencer também em ondas tubulares. Demonstrou isso este ano em Teahupoo.

Um pouco atrás, em oitavo, está Gabriel, a 3 mil pontos do quinto colocado, mas reconhecidamente o melhor surfista do mundo em Cloudbreak. Ninguém ousaria descartá-lo da briga, a despeito da distância para o top 5.

As vagas possivelmente serão decididas em confrontos diretos, diante do número reduzido de surfistas pós-corte, o que aumenta ainda mais a expectativa. Sorte da WSL, que sem querer pode produzir uma última etapa mais empolgante do que a própria decisão do título mundial.

Mas, antes de tudo, que toque a sirene olímpica.