O título de Filipe Toledo, que confirma a condição de melhor surfista da temporada de 2022, é resultado de uma série de atributos combinados. Muitos deles, como o talento, a velocidade e o refinamento de movimentos, são conhecidos.
Mas, desta vez, ao ver Filipe refletido no troféu da WSL, quero falar sobre coragem.
Sim, coragem. Abandone um pouco o significado mais frequente desta palavra, que no surfe serve para qualificar destemidos, atirados, essas bravas figuras que nem sempre compreendem os riscos que correm em fundos de coral afiados.
Coragem tem um segundo significado, talvez mais nobre, por ser fruto de uma construção diária, silenciosa, sem tapinha nas costas, sem elogios. Diz o Dicionário Oxford, na mais complexa acepção da palavra: “firmeza de espírito”.
É isso que Filipe teve para seguir em busca do título depois de estar tantas vezes no páreo e ver o caneco escorrer pelas mãos – como em 2015, quando chegou vice-líder em Pipeline e viu Adriano de Souza ultrapassá-lo num mar ordinário.
Ele precisou de coragem também para seguir sempre em frente mesmo com o desconfortável selo de único dos garotos de ouro do Brasil ainda sem caneco, a despeito do extenso número de conquistas de etapas.
Depois de Trestles, Filipe chegou a impressionantes 13 vitórias na elite, atrás apenas do tricampeão Gabriel Medina, com 17 conquistas, e do 11 vezes campeão Kelly Slater, com 56, entre os que ainda estão ativos. Muito antes de conquistar a temporada de 2022, o ubatubense já tinha bem mais vitórias em etapas que o bicampeão em 2016 e 2017, John John Florence, e o campeão de 2019, Italo Ferreira.
A ausência de títulos de Filipe desde 2015, quando venceu três provas, revela um histórico problema de constância de resultados do surfista que, em 2022, foi rompido de modo contundente, com seis finais e três vitórias em 11 etapas (incluída a decisão).
É preciso, ainda, um espírito firme de propósitos para manter a chama da competição acesa mesmo depois de ver o nascimento dos filhos Mahina e Koa. Não preciso ir longe para lembrar a aposentadoria precoce de Julian Wilson, por anos a fio um candidato real ao título mundial, diante das demandas de pai de família.
A coragem também é parceira quando se enfrenta um dos piores adversários da vida, a depressão, como contou Filipe em reportagem recente no UOL. A montanha russa de medos e alegrias do surfe desmontou a cabeça de Filipe, que, assim como Gabriel Medina, optou acertadamente por recorrer à ajuda de um profissional em saúde mental para dar a volta por cima e voltar a sonhar com o título.
Filipe, como todos os corajosos de alma, também tem medo. Sofre constantes críticas, inclusive desta coluna, pela aparente falta de reação diante do desafio de se provar em ondas mais agudas, como Teahupoo. Em seu último encontro, este ano, congelou numa bateria, recuperou-se na outra, e assim seguiu em frente para Trestles. Foi massacrado nas redes sociais, essa praça pública de linchamento virtual, pela gente corajosa que prefere a vida no conforto do anonimato e do sofá de casa.
Mas, sobretudo, é demonstração de coragem plena manter-se digno, ao lado de Ananda e da família, sem se perder nas inúmeras armadilhas de celebridade, sem assumir postura arrogante ou agressiva, diante de tantas pedras de todos os tamanhos no caminho do título mundial.
Essa combinação rica de talento e imperfeição, da qual somos feitos, foi revelada no breve diálogo filmado entre Ricardinho Toledo e seu filho, logo depois do título:
– Você é campeão do mundo, cara! Você tá entendendo isso?
– Não, ainda não!
Na areia, a grande família Toledo se debulhava em lágrimas, amigos se abraçavam, e o circo da WSL, enfim, premiava, sem medo de cometer injustiça, um dos mais impressionantes surfistas da história. Todos ali, nas pedras de Trestles, sabiam que o ubatubense já tinha créditos mais do que suficientes para o seu título mundial.
A melhor de 3 em Trestles
A final jogou holofote sobre uma das mais importantes características do surfe de Filipe: a capacidade de equilibrar fluidez e movimentos finos com manobras potentes, em transições limpas e bem desenhadas. Foi Mick Fanning, um defensor da mais bem acabada escola australiana, que marcou o detalhe do flow no surfe do campeão, quando comentava a decisão ao lado de Kelly Slater.
O título de Filipe é uma defesa explícita da necessidade dessa conciliação, um libelo pela necessidade de surfistas da elite correrem a onda sem quiques de prancha, sem linhas forçadas e, ao mesmo tempo, sem deixar de promover manobras fortes ou inovadoras. Deixem o surfe com pontas soltas para nós, amadores.
Na final, contra Italo Ferreira (que merecerá boas linhas adiante), Filipe estava em casa, com o mando de campo. Ali, ele conhece os atalhos: a segunda onda da série, a intermediária mais encaixada, os movimentos que mais se ajustam às ladeiras divertidas de Trestles. Botou a “bola” no chão, optou por um potente surfe de borda combinado a ataques de lip com inversão de prancha, errou muito pouco.
Do lado de lá, estava um Italo em transe, disposto a tudo para subverter a ordem de favoritismo declarada pelo ranking da temporada.
Se fosse em outra arena, numa etapa ordinária, a bateria seria resolvida no detalhe. Do lado de cá, na conta final ainda vi pequena vantagem para Filipe – pela tal obrigação do flow, sobretudo na onda de Trestles.
Mas houve, sim, certo achatamento de ondas do Italo na final, o que de certa forma oficializa – embora de forma não declarada – uma vantagem dada ao líder da temporada no WSL Finals. No masculino, acontece pela segunda vez.
Aqui, um disclaimer: o “critério WSL Finals” não tira um milímetro do mérito de Filipe.
(Curiosamente, o feminino, este ano, viu a incrível saga da quinta colocada no ranking ser campeã do mundo, sem qualquer espaço para apelação. Pelo menos na fatídica quinta-feira passada, na Califórnia, Stephanie Gilmore, que esteve apagada durante a temporada, surfou muito mais que todas as suas adversárias. Agora, é a maior campeã da história, com oito canecos na sala de casa.)
Italo em transe
Italo Ferreira é um capítulo à parte obrigatório em Trestles 2022.
Não gosto da ideia de chama-lo de brabo – sempre achei uma armadilha o autoelogio no fundo da prancha. Nas finais da semana passada, Italo mostrou que não precisa adjetivar-se: basta ser ele mesmo, o verdadeiro, possuído por uma vontade avassaladora de vitória, dono de um talento natural bruto quase mágico, capaz de transformar qualquer lixo de onda numa nota excelente.
Italo transformou em pó as gigantes expectativas de seus adversários. Sufocou grandes rivais na corda. Na hora mais importante do ano, os celebrados Kanoa Igarashi, Ethan Ewing e Jack Robinson caíram atordoados, perdidos, nocauteados diante de um boxeador mortal. Os três rivais erraram numa frequência muito maior que a habitual, pressionados pelo ataque do potiguar nas ondas.
A panela de pressão de Trestles fez renascer em ebulição o campeão mundial de 2019.
A tragédia do formato do WSL Finals
A vantagem do surfe sobre os outros esportes é ainda encontrar lapsos de sinceridade pulsante nas entrevistas. Stephanie Gilmore tinha acabado de fazer história ao sair da primeira bateria para o título, com duas escovadas na líder Carissa Moore, quando decidiu falar sobre o formato em entrevista à repórter da WSL:
– Eu não gosto desse formato, o título tinha que ser dado à melhor do ano em todas as ondas, mas agora eu adoro! – disse ela, com o eterno sorriso no rosto.
A vitória de Gilmore, na quinta passada, foi incontestável. A australiana é uma gigante e, de longe, foi a melhor surfista do WSL Finals. Quem chegou mais perto dela foi a brasileira Tatiana Weston-Webb, que perdeu por muito pouco na segunda bateria. A conquista da octacampeã, portanto, nada tem a ver com a injustiça do formato, que causou um dano irreparável à Carissa, melhor surfista da temporada.
O mínimo que a entidade poderia fazer é reconhecer dois títulos por ano – o de campeão da temporada e o de vencedor do WSL Finals. O título poderia ser unificado, no caso de Filipe, ou não, no caso de Gilmore e Carissa.
Outra ação urgente é acabar com a obrigatoriedade de realizar o evento num só dia, por razões comerciais. Este ano, a entidade botou os melhores surfistas do mundo, no feminino e no masculino, em condições lamentáveis para o pico californiano.
Gilmore, que estudou as ondas desde a primeira bateria, de manhã, chegou às finais muito mais adaptada às condições difíceis que Carissa. Ter chegado às finais em quinto lugar, neste cenário, acabou sendo de certa forma uma vantagem para a australiana
Mas, ao que tudo indica, nada muda para 2023, nem o local de disputa das finais.
Apesar de injusta, a regra vale para todos. É hora de treinar e se adaptar. Como disse Filipe, em entrevista ao Waves, “é mais fácil aceitar do que ficar brigando.”
Ao campeão, que tirou o peso do título das costas, só resta tatuar no corpo o caneco, curtir bastante a família e os filhos e, quem sabe, depois de algum tempo de descanso, sem qualquer pressão, agora sim passar uma férias prolongadas em Teahupoo.
Domínio sem precedentes do Brasil
Com o título de Filipe, o país chega a seu sexto campeonato do mundo, com quatro surfistas guardando canecos em casa. Desde 2014, o título só não esteve entre brasileiros no bicampeonato de Florence.
A despeito do aparente desejo da WSL de construir na temporada alternativas de rivalidade vindas de outras nações, no fim do ano o ranking está novamente dominado por Pindorama. Temos o campeão, o vice-campeão, cinco surfistas entre os 10 primeiros do mundo e tudo isso sem contar com o tricampeão mundial Gabriel Medina, que este ano competiu em apenas três etapas.
Em 2023, não será surpresa ver, além dos recorrentes Filipe, Italo e Medina na disputa pela vaga nas finais, novidades no pelotão da frente, como Miguel Pupo e Yago Dora. Na fila do futuro, já temos o excelente Samuel Pupo, que brilhou como estreante do ano neste temporada. O domínio parece longe de acabar.
Boas ondas a todos.