Filipe Toledo mostrou “quem manda”. A frase não ficou no discurso de palanque: ele enquadrou a elite do esporte dentro d’água, numa exibição madura e brilhante, na cada vez mais festiva etapa de Saquarema.
Com a vitória, o ubatubense assume o cetro de rei do Rio, ao alcançar sua quarta conquista na prova fluminense, igualando o feito de Dave Macaulay.
Consolida-se, ainda, como o melhor surfista de 2022, com 10 mil pontos de distância para o vice-líder, Jack Robinson, e cinco finais em oito provas, com duas vitórias.
Não custa lembrar que, na temporada passada, na espantosa odisseia de Gabriel Medina, em quase o mesmo número de provas (sete, contra oito já realizadas esta temporada), o tricampeão também chegou a cinco finais e duas vitórias.
O domínio de Filipe aparece também fora dos grandes números, nos detalhes.
Filipe já entendeu que seu surfe é julgado a partir da escala Toledo, e não a partir do parâmetro médio da elite. Precisa, portanto, de um roteiro com uma escalada de drama em três atos.
Escreveu o primeiro ato com um bom surfe executado no opening round e nas oitavas de final, quando venceu, seguro, com somas superiores a 13 pontos.
O segundo ato ficou nas quartas e na semifinal: começou, de uma forma preliminar, contra um crescente Connor O’Leary, quando fez 15 pontos, e, cresceu depois, ao fazer 17 pontos para vencer um dos melhores surfistas do evento, Yago Dora.
Em entrevista fora da água, ele deixou claro: “estou guardando o melhor para a final.”
Para conter o brilho do estreante Samuel Pupo, que fez o que aparenta ser a primeira de muitas finais de sua carreira, cumpriu o teaser anunciado minutos antes.
O grand finale, o terceiro ato do roteiro do ubatubense, foi escrito com perfeição: a 22 minutos do fim da decisão, Filipe já havia somado incríveis 18,67 pontos, o que incluiu uma absurda nota 10 unânime, que premiou o melhor aéreo full rotation do evento.
Assim, com uma história que evoluiu ao longo do evento, Filipe se manteve surpreendente e insinuante. As médias falam por si: 13, 13, 15, 17 e 18 pontos.
É importante, ainda, falar de outro detalhe de Filipe: a capacidade de jogar com a torcida. Faz tempo, ele usa a energia do público para abastecer o seu surfe de energia e confiança. Não sente a pressão. Na areia, sempre ganha a titularidade do coração da galera, a despeito da enorme popularidade do tricampeão do mundo, Gabriel Medina.
Na frente da torcida, não importa a patente: Filipe até agora foi melhor, 4x melhor.
Gabriel Medina mais uma vez parou precocemente na etapa brasileira. O histórico do tricampeão, que jamais fez uma final em casa, não está à altura de seu surfe. A torcida segue a espera de uma conquista catártica, mais uma vez adiada.
Desta vez, ele parou para um inspirado Callum Robson. Ou para uma chata contusão no joelho, depois de uma de suas primeiras tentativas de aéreo. Ou, ainda, para a escolha errada do pico, uma vez que o australiano, que na mesma onda será sempre inferior ao brasileiro, posicionava-se na melhor onda, a aquela altura, uma direita.
Redenção brasileira
Numa temporada de tantos e sucessivos erros de julgamento contra brasileiros, nem o australiano mais cético se surpreendeu com o domínio recorde de surfistas de Pindorama numa etapa da elite: tivemos, pela primeira vez, seis nacionais entre os oito melhores e semifinais apenas com atletas da casa.
O caçula dos Pupo, vice-campeão da prova, é vibrante. Além do notável talento, da facilidade de aplicar manobras aéreas rotacionais e de ampliar o limite de manobras convencionais, Samuel entendeu no ano de estreia que muitas vezes é preciso deixar extravasar a vontade de vencer – isso pode ser a diferença entre vitória e derrota.
O caminho para a final não foi irretocável como o de Filipe – enfrentou a repescagem e fez médias inferiores a 13 pontos em quase todo o evento, à exceção das oitavas de final, quando voou num fabuloso full rotation para vencer, com 17 pontos, Caio Ibelli.
(Caio, aliás, vale um parêntese pelo inacreditável tubo que lhe rendeu a primeira nota máxima da carreira. Lembrou-me Sebastian Zietz em North Point, Margaret River.)
Outro bom momento de Samuca foi a vitória sobre Italo Ferreira. Numa bateria de poucas oportunidades, ele demonstrou que, naquelas condições, já está plenamente apto a vencer, pelo caminho técnico, o campeão mundial de 2019.
Italo, com o terceiro lugar, ganhou mais conforto para a disputa da vaga em Trestles, mas expôs novamente uma lacuna preocupante: a deficiência de frontside em ondas que exigem linha refinada de surfe.
O elétrico surfista potiguar flerta com o imbatível em determinadas condições, mas, para um plano mais ambicioso de atropelar o mundo em muitos títulos mundiais, precisa olhar com mais atenção para essa deficiência.
O curioso é que ele é um cara tão capaz, tão fora do normal em certas circunstâncias, que dispensou a ferramenta do surfe de linha para conquistar o mundo, tanto na WSL quanto nos Jogos Olímpicos. É como um super dotado – que pulou de série e acabou dispensando uma matéria importante no caminho. O mais difícil, ele já sabe.
Yago brilhou mais uma vez, depois de boa campanha em G-Land. Consolida-se como um dos melhores, senão o melhor surfista de base goofy em esquerdas afeitas ao surfe de linha. Sua performance é uma aula de concisão, precisão e plástica. Nas oitavas, cedo demais para essa disputa, fez uma bateria de estetas com o também plástico Ethan Ewing. Venceu por um décimo – aqui não houve erro, mas, o resultado provavelmente teria sido diferente se a disputa ocorresse na Austrália.
Como já dito na última coluna, Yago, dono de uma técnica que a WSL voltou a valorizar, posiciona-se como candidato real ao título em 2023.
Entre os demais brasileiros, vale apontar ainda para Miguel Pupo e Mateus Herdy.
Miguel está na mesma página de Yago em esquerdas que exigem refinamento de movimentos. Evoluiu muito em 2022, sobretudo no que se refere ao aspecto tático. Perdeu as quartas de final para Italo numa bateria quase injusta, em que demonstrou um surfe mais adaptado às condições que o adversário, mas acabou perdendo num daqueles lances mortais de Italo – um full rotation de backside numa direita a instantes do fim, mesmo num mar voltado para esquerdas.
Como na etapa do México, em 2021, o convidado Herdy surfou muito bem. Desta vez, não iria mais longe, não fosse um erro de julgamento na disputa da repescagem, em bateria com Jack Robinson. De todo modo, teve tempo de eliminar, com um surfe de elite, Kanoa Igarashi, que, com o resultado, saiu do grupo de Trestles.
A compensação da WSL (sempre infame)
O Brasil dominou indiscutivelmente a etapa. Mas, um erro, em especial, nos fez lembrar de como a WSL tem falhado em sua missão de entregar uma competição justa, sem variar critérios de acordo com o território do evento.
Herdy liderava, com um surfe mais adaptado às difíceis condições do dia, a bateria das oitavas contra Jack Robinson. A seis segundos do fim, uma série mais ajeitada deforma o horizonte e alcança o australiano, que precisava de um 7,07. No critério daquela bateria, nem o pacheco mais inflamado, se justo, diria que ele não virou.
Mas não. A WSL, provavelmente com medo de protestos do público, jogou mais uma vez contra o esporte ao eliminar precoce e injustamente o vice-líder da temporada.
Carissa, enfim, numa manhã de terral em Itaúna
A final feminina foi dessas baterias boas de ver. A dinâmica da disputa, o surfe das finalistas Carissa Moore e Johanne Defay (líder e vice-líder do ano), a serena manhã de terral nas ondas convidativas de Itaúna (dizem os exagerados que estava melhor que G-Land), enfim, tudo parecia encaixado para um momento sublime.
A segundos do fim, a nota final ao momento mágico: a líder do ranking, que amargava uma sucessão desconfortável de derrotas em finais, rema numa esquerda com a obrigação de um difícil 7,93. Desprende completamente o seu surfe e, de costas para a onda, solta duas pauladas críticas (a segunda desgarrando no limite do controle da prancha) e vence, pela primeira vez na temporada, uma etapa.
Cinco vezes campeã mundial, líder da temporada e garantida em Trestles, a havaiana ainda chora copiosamente ao ouvir o resultado. Sou fã declarado da Carissa.
O ensaio do xadrez de Trestles
O circo segue para J-Bay e Teahupoo antes da final da temporada, mas as vagas e os favoritos começam a se delinear para Trestles.
De volta ao líder e primeiro entre os homens a se alinhar no line-up da onda de San Clemente, o esforço de Filipe agora é para abrir distância como o melhor surfista de 2022 e, com isso, construir o colchão de conforto na avaliação dos juízes para a decisão – na mesma lógica de Gabriel em 2021.
Para isso, seria importante confirmar o domínio do ubatubense apresentado em anos anteriores na etapa sul-africana – para pelo menos manter a enorme vantagem já existente. E, na sequência, superar o desafio de chamar a atenção do mundo em Teahupoo – não precisa vencer em 12 pés, mas é necessário demonstrar desprendimento e disposição de domar o perigo da bancada.
Filipe possivelmente será campeão mesmo sem brilhar em Teahupoo, mas não deixar boa impressão a uma etapa da WSL Finals pode reduzir de alguma forma o tal colchão.
Jack, Italo e Griffin parecem muito próximos da vaga, especialmente porque surfam bem nas provas restantes. Aparentemente há uma vaga mais aberta, que ficará entre Ethan Ewing, Kanoa Igarashi e, vejam só, Cal Robson. Miguel ainda tem chances matemáticas, mas está um pouco mais longe. E, John John Florence, claro, torna-se o favorito a este posto se conseguir voltar de contusão a tempo de J-Bay.
Que soe a sirene na gelada Eastern Cape.