É a primeira onda da temporada de 2018 do mais importante surfista do Brasil, numa Snapper Rocks vacilante e com poucas oportunidades. Depois de uma violenta batalha de remada pelo direito ao pico, Gabriel Medina rema, aparentemente em vantagem, e faz uma onda soberba, com direito a tubo, roundhouse cutback e uma sequência de fortes batidas, que lhe renderiam, até então, a maior nota do dia.
Seria uma estreia e tanto, não fosse por um detalhe. Seu adversário, o italiano Leonardo Fioravanti, fustigado pela desvantagem na guerra de braços e cotovelos pelo melhor posicionamento, travada instantes antes, encontra um inesperado espaço para, numa manobra esperta e questionável do ponto de vista ético, dropar atrás do brasileiro, forçando os juízes a deliberarem sobre o incidente.
Depois de alguns minutos, veio a decisão da torre: interferência de Gabriel.
Vou dividir a análise em partes. Primeiro, o ponto de vista da regra. Depois, a perspectiva da estratégica de Gabriel. E, por fim, a palavra de amigos jornalistas e especialistas, cujas opiniões eu respeito muito.
Quem pega onda sabe que, no mundo real, a artimanha praticada por Leo é chamada, sem hesitação, de boia, ou “snaking”. Basicamente, é um movimento de má fé de tomada do pico no momento em que o outro surfista se posiciona para descer a onda. É como se você “roubasse” a prioridade do surfista enquanto ele lê a onda.
Ocorre que, no livro de regras da WSL, o artigo do capítulo de interferência sobre “snaking” sugere que, para se caracterizar a penalidade, infrator deva entrar na onda depois do interferido. O trecho do artigo faz referência a penalidade “mesmo que o outro surfista possa subsequentemente entrar na onda atrás do surfista original”, mas é omisso quanto à possibilidade de haver “snaking” com dois surfistas entrando na onda ao mesmo tempo, como aconteceu ontem, em Snapper.
Embora a regra seja nebulosa, não há dúvida de que, do ponto de vista ético, a atitude do italiano é claramente questionável. Se foi uma reação justa a uma agressão prévia do brasileiro, como algumas pessoas sugeriram, a agressão deveria ter sido punida previamente. Gabriel deveria ter sido penalizado antes de remar para a onda.
Para mim, no entanto, pareceu um jogo agressivo de lado a lado.
Ao não punir o suposto primeiro ato irregular e se omitir diante de uma evidente má fé no segundo ato, a World Surf League (WSL) fica numa situação sensível. Escancara a janela para um padrão de comportamento mais agressivo em situações similares, de pré-prioridade. Não seria surpresa se, nas próximas baterias e etapas, Gabriel, reconhecidamente ultracompetitivo, adotasse a mesma tática do italiano, respaldado por essa jurisprudência perigosa aberta pela liga.
A saída óbvia, já apontada por alguns amigos, é simplesmente eliminar essa disputa inicial, que costuma gerar batalha de remada e agressões de lado a lado. Se forem ágeis, resolvem o problema ainda nesta temporada, para não dar margem a novos confrontos. Os espectadores, afinal, querem ver surfe, não brigas.
Superada a questão da regra, é importante falar da estratégia de Gabriel.
Nesse quesito, há uma unanimidade. Gabriel não precisa entrar nesse jogo arriscado para vencer etapas e títulos mundiais. Entendo a perspectiva histórica, de ele já ter sido vítima disso no passado, de ser um alvo preferencial por ser um surfista reconhecidamente talentoso e competitivo. Mas, ao aceitar a guerra de braçadas com um surfista de qualidade inferior, reduz sua diferença e amplia o seu risco.
Na competição de surfe, Gabriel tem as cartas mais valiosas, todas associadas ao talento. Quem está nessa situação, deve medir os riscos de aceitar outros jogos que não sejam exclusivamente o confronto entre ondas. Não se trata de uma postura covarde, não se trata tampouco de condenar a fantástica fúria competitiva do campeão do mundo de 2014. Seria impossível, ele é feito disso. A ideia é direcionar essa energia a estratégias mais seguras, que reduzam o risco de vitórias esperadas.
Como o assunto era muito rico em interpretações, decidi ouvir alguns amigos especialistas que eu respeito especialmente sobre o assunto. Gente de diversas matizes, que concorda e discorda com elegância, apta a comentar se houve “snaking” e fazer outras considerações.
Leiam:
Marcelo Trekinho – surfista profissional
“Vi interferência. Disputa de bateria, Medina achou que o cara não fosse entrar na onda, só que o cara entrou. Medina estava mais bem posicionado mesmo, acho que o Fioravanti não iria fazer aquele tubo, mas foi disputa de início de bateria, sem prioridade. O Leo se aproveitou e passou o Medina na disputa, para ficar dentro do pico. Numa bateria sem prioridade, quem está mais para dentro do pico tem o direito da onda. O Leo, no caso, ganhou na remada, um pouco. Medina estava até na frente, mas na última hora o Leo deu um jeito de passar o Medina e pegar a onda. Mais ou menos a mesma coisa que o Kelly fez com o Andy, em Pipe, se não me engano em 2003. Kelly tentou passar o Andy, pegou a onda e o havaiano puxou o bico. Era bateria de quatro, sem prioridade. No fim das contas, o Leo ganhou na remada. Achei um lance normal.”
Guilherme Aguiar, surfista, pesquisador em oceanografia e presidente da Federação de Surf do Estado do Rio
“Pelo o que conhecemos de ‘snaking’ como está escrito na regra, o que o Leo fez não foi de fato um ‘snaking’. Mas, foi uma jogada tão antiética que não estamos acostumados a ver na primeira divisão. A última que me recordo foi aquela famosa do (Kelly) Slater X (Shane) Beschen na década de 90. Não quero julgar sem saber o que rolou na disputa que antecedeu o ato, ou mesmo sem saber o que existe entre eles. Mas, tenho certeza de que, se não fosse contra o Medina, o Léo estaria sendo mal falado. E se fosse o Medina fazendo isso então… Seria julgado como o maior mau caráter. Infelizmente existe tanta antipatia contra o Medina (sem entrar no mérito da razão por isso) que essa atitude do Leo passou praticamente em branco.”
Ader Oliveira, editor-global do Portal Waves
“Analisando a imagem filmada mais do alto de Snapper, notei que o Gabriel começou a remar primeiro e o Leo veio logo depois, dando a volta rapidamente e forçando o direito de ir na onda. Como essa volta aconteceu em plena onda (bem no início), não um pouco antes, como estamos acostumados a ver, gerou dúvida em muitas pessoas, inclusive em mim, mas o livro de regras foi favorável ao Leo. Se os juízes avaliassem que houve snaking, nenhum dos atletas seria punido, já que a performance do Gabriel não foi prejudicada pelo Leo. De qualquer forma, achei também que o Gabriel remou de uma maneira que deu espaço para o Leo dar a volta nele. Quanto à repercussão, acho que o fato de o Gabriel ser um ícone do esporte e já ter essa fama de brigar pela primeira onda da bateria acaba pesando e gerando polêmica em situações como essa. Quem acompanha o Leo sabe que ele também é um cara extremamente competitivo, voraz, mas não tem o mesmo peso que o Gabriel, os holofotes não estão sempre voltados para ele, por isso a sua postura na água também não foi tão crucificada pelas pessoas. Os dois estavam brigando pelo pico, e não o Gabriel sozinho.”
Edison Leite Jr, o Edinho, jornalista da ESPN
“Fosse no free surf, daria para dizer que houve ‘snaking’, mas creio que a distância que o italiano ficou, para dentro do pico, e o tempo de entrada na onda (os dois subiram praticamente juntos) pesaram a favor do Fioravanti. Prevaleceram as regras, e não a ‘justiça’ e/ou a etiqueta.”
Marcelo Andrade, comentarista do programa “De olho no tour”
“Na minha opinião, foi interferência do Medina. Não achei ‘snaking’. Snapper é point break, e quem fica mais para dentro do pico tem a prioridade. Para o Medina, não vale a pena ficar em disputa acirrada sem prioridade. Ele tem um nível técnico muito melhor que a maioria dos seus adversários e só tem a perder, como aconteceu ontem. A WSL fez uma nova regra depois dos confrontos Toledo x Igarashi, mas não conseguiu coibir essa disputa inicial. Acho que deveriam entrar com uma prioridade pré-estabelecida pela ordem do ranking. (No caso daquela bateria), o Medina teria a primeira, o Ítalo a segunda, e o Fioravanti a terceira.”
Renato Alexandrino, jornalista de O Globo
“Me pareceu que Medina deu mole. Achou que já havia vencido a batalha pela onda com o Fioravanti, e não viu o italiano dropando mais atrás. Se não havia prioridade na bateria ainda, erro dele. Fiquei com a sensação de que o Fioravanti usou a arma que Medina normalmente usaria. Dá pra imaginar o Medina dropando lá de trás, do pico, mesmo sem saber se faria a onda, para causar a interferência no rival.”