O mundo pode ser duro até com surfistas pagos para seguir o circuitos dos sonhos. Caio Ibelli que o diga. O cara vinha prestando serviços dignos no CT desde 2016, quando levou o rookie of the year, até que ano passado, quando treinava no intervalo do evento de Margaret, sofreu uma grave fratura no pé.
A tristeza pela contusão só foi aplacada pela certeza de que a World Surf League, entidade que se pretende séria, reconheceria a gravidade do problema e, claro, indicaria seu nome a uma das vagas de “injury wildcard” em 2019.
Kelly Slater já segurava uma das vagas de contusão com suas sucessivas e anunciadas contusões no pé, mas a preocupação ampliou um pouco quando John John Florence anunciou rompimento parcial do ligamento do joelho direito.
Eram dois monstros e um mortal na fila, para apenas duas vagas. Sim? Não. Eram três contundidos para duas vagas de contusão.
A história até aqui sugere o que seria apenas um pequeno dilema para a WSL, que seria resolvido com bom senso e dentro dos critérios que definem as duas vagas, que não por acaso são chamadas de “injury wildcards”.
Afinal, a contusão de Ibelli era grave, possivelmente a mais grave.
As dúvidas sobre a legitimidade de Ibelli foram definitivamente dissipadas, pelo menos aos olhos de quem é justo, quando Kelly Slater não manteve seu discurso de pé.
Dias depois de anunciar que não participaria da etapa de Keramas, em Bali, apareceu para surfar um swell gigante em Cloudbreak, na sua preferida Fiji.
O pé do americano estava bom para bombas de 20 pés, não para ondas glassy de 6 pés. Na ocasião, o 11 vezes campeão do mundo disse que estava apto ao surfe, mas não teria como alcançar um nível competitivo.
O depoimento, se não me engano dado à Stab, continha uma armadilha. Salvo em ondas de sua especialidade, como o Rancho e Pipeline, o americano, prestes a fazer 47 anos, sofre para “alcançar o nível competitivo” mesmo sem contusão anunciada.
Algum tempo depois, na etapa da piscina em que ele curiosamente divide sociedade com a WSL, Slater reapareceu, soltinho, lépido e fagueiro, para fazer um terceiro lugar na onda em que treinou mais que todo mundo junto.
Ato contínuo, ele desaparece de novo, para só voltar para mais um terceiro lugar na etapa de encerramento da temporada, em Pipeline, agora com o discurso do pé novo, pronto para fazer a temporada de 2019 – de possível encerramento de carreira.
Aqui, me vem à cabeça o gentleman Mick Fanning. Mas vamos seguir no texto.
Os colegas de prancha não engoliram a jogada de Slater. Antes da perna havaiana, em outubro, durante uma reunião entre a WSL e a World Professional Surfers (grupo que representa os interesses dos surfistas do tour), muitos tops tornaram pública a preferência para dar a vaga de contusão a Ibelli, e não a Slater.
A grita não adiantou. No encontro, a WSL, entidade que deveria regular eticamente o esporte, deu os primeiros sinais de que usaria como critério de uma vaga de contusão o legado deixado pelo surfista na história do surfe.
Em dezembro, veio a confirmação, em nota oficial, assinada por Kieren Perrow.
O comissário do CT alegou que “o processo inclui um conselho independente de revisão médica, que avalia candidatos a partir da severidade da contusão e de seu impacto para competir num nível de Championship Tour.”
Kieren seguiu, obviamente sem mencionar os episódios de Cloudbreak e do Rancho, nem falar sobre a posição do comitê de surfistas: “No caso de 2018, todos os três candidatos foram considerados como severamente contundidos, o que os impediu de competir em múltiplos eventos.”
E, finalmente, jogou a pá de cal sobre Ibelli: “A partir daí, aplicamos nosso critério técnico e o histórico de conquistas – o que inclui títulos mundiais, resultados na carreira, ranking no ano anterior e ranking no momento da contusão”.
Ibelli, possivelmente dono da contusão mais grave e com bons serviços prestados à WSL, perdera a vaga certa de contundido.
A tragédia é ainda maior porque, em nome dos feitos passados do maior atleta da história do esporte, muitos de nós tendem a naturalizar essa decisão infame. Como se não houvesse ética no esporte, como se a lei não valesse para todos.
Depois da histórica rasteira no brasileiro, Kieren tentou expiar a culpa da WSL, ao oferecer a Ibelli a primeira vaga de alternate do CT, fazendo questão de frisar que esse bônus “não era algo que eles garantiam ao terceiro candidato na maioria das temporadas, mas que neste caso é merecido”.
Além da vaga de alternate, mais tarde lhe deram alguns wildcards ao longo do ano.
Mas, a esta altura, o dano estava feito: com a perda da vaga titular, Ibelli não conseguiu fechar patrocínios encaminhados e, agora, terá que lutar, também, contra a falta de uma estrutura ideal para correr o circuito.
Nada que brasileiros não estejam acostumados. É capaz de Ibelli voltar mais forte.