Esqueça, pelo menos por algumas linhas, a performance sem pontas soltas, os aéreos gigantescos, o encaixe perfeito nos tubos, as transições cada vez mais limpas entre movimentos difíceis em Saquarema. Filipe é mesmo um surfista incontestável.
Abro o texto de mais uma vitória do ubatubense – a oitava, em nove finais disputadas, e a terceira no Brasil – com um emocionado abraço fraterno, do campeão do Oi Rio Pro, ainda ensopado pelo mar que lhe deu o título, na irmã Sofia.
Um gesto silencioso, que carrega histórias que desconhecemos. A intensidade entre os braços da irmã, a testa franzida, o choro contido. Todas as respostas para a vitória – e as dificuldades – pareciam estar no silêncio daquele abraço.
Na entrevista do título, Filipe começou a falar, sem dar detalhes, que “vem sendo um ano bastante duro, na vida pessoal, um ano realmente difícil, mentalmente”, quando foi tomado pela emoção, até o entrevistador Peter Mel mudar o rumo da prosa.
No Instagram, a mãe, Mari Toledo, não escolheu uma foto de aéreo, ou da multidão, para ilustrar o post do filho campeão. Preferiu a singela imagem do abraço.
E disse, entre outras palavras: “sabe quando você vai a um show ver uma pessoa que gosta se apresentar? Então, você nunca vai saber o que está passando na vida dessa pessoa. Você vai lá vê-la e nem imagina os bastidores, nem imagina o que se passa, e espera sempre o melhor dela, né? Pois bem, hoje, estou muito agradecida a Deus pela força que te deu, @filipetoledo.”
Filipe aparenta ter vivido muito mais que o drama público, meramente esportivo, das falhas em Margaret River de algumas semanas atrás. Numa subversão da frase batida de Shakespeare, há muito mais coisas entre as vitórias e as derrotas que qualquer um de nós é capaz de imaginar. O não dito costuma prevalecer.
Por tudo isso, a vitória na Barrinha, neste fim de semana, foi uma autêntica redenção.
Filipe não teve moleza. Pegou Adriano de Souza numa das ondas em que o campeão de 2015 mais domina, a do Point de Itaúna. Encarou novamente Kelly Slater, desta vez nas direitas da Barrinha, numa das poucas condições de mar em que o americano ainda consegue jogar duro com qualquer gigante. No dia decisivo, antes da final, passou batido pelo veloz Kanoa Igarashi (um supreendente top 5) e com alguma folga pelo sempre competitivo Frederico Morais, cuja campanha fez valer cada letra do convite para o evento. Na última bateria, o agora constante e sempre muito talentoso Jordy Smith foi a vítima. Num mar cada vez mais difícil, estava mal posicionado quando Filipe surfou a melhor onda da bateria, com direito a tubo e aéreo gigante. Depois, o brasileiro fechou a porteira com uma segunda direita, em duas manobras.
Na areia de Saquarema, o bicampeão Filipe virou um semi-Deus, um surfista entre o céu e a terra, um brasileiro capaz de dar a certeza da alegria aos milhares de torcedores presentes na decisão. Dentro d’água, com aéreos cada vez mais altos, o ubatubense também está fora do chão, em algum lugar desconhecido aos demais mortais, especialmente em ondas de alta performance.
(Um parêntese para Jordy, finalista, e para Kolohe Andino, que também esteve bem na etapa, parando na semifinal para o sul-africano. Ambos os surfistas se curaram de um mal que os assolou em outros tempos: a enorme variação de resultados. Jordy tem uma final, dois terceiros e um quinto em cinco etapas; Kolohe, duas finais e um terceiro e um quinto. Os dois surfistas trabalham diligentemente, com o remédio da constância, para engordar a lista de candidatos ao título de 2019. Isso, claro, se o havaiano John John Florence, líder isolado mesmo após nova contusão, permitir.)
A multidão de Saquarema teve tempo, ainda, de saudar dois grandes surfistas: JJF e Kelly Slater. Pena que tenham saído da prova cedo – o primeiro, porque contundiu-se; o segundo porque sucumbiu ao campeão, e estava no lugar certo na hora errada.
Isso mesmo, na hora errada. A WSL, no que talvez tenha sido o maior erro de chamada da história da etapa brasileira na elite do circuito mundial, decidiu fazer o call das baterias de oitavas de final masculinas no início da tarde de sábado, horas depois de o mundo assistir – ao vivo ou pelas redes sociais – a um raro espetáculo de surfe na Barrinha, com condições comparadas a Off-the Wall e Backdoor nos melhores dias.
As questões logísticas são importantes, desde que não impeçam que os melhores surfistas do mundo se alinhem para a disputa no melhor mar da temporada. Se impedirem, tudo perde o sentido. Melhor enterrar barracas de praia na areia, alugar umas cadeirinhas e chamar juízes para assumirem velhas papeletas a perder, literalmente perder, o que seria um inacreditável show de surfe.
A rádio corredor nos sugere que o grande entrave foi a estrutura de transmissão via web, hoje muito complexa. Seja lá qual tenha sido a causa, tudo o que resta fazer é construir uma solução que devolva ao campeonato de surfe as melhores ondas.
Quando Kelly e Filipe entraram na água, um forte maral começava seu trabalho sujo de encrespar as ondas e apertar os tubos. Houve tempo apenas para uma mostra do que veríamos em caso de condições clássicas. Seria uma grande homenagem sobretudo ao americano, que fez sua provável despedida de competições em águas brasileiras.
Já John John, pela segunda vez seguida, fica pelo caminho numa onda em que domina mais que seus resultados em Saquarema sugerem – falo, obviamente, da Barrinha, e não do Point de Itaúna. Nas oitavas contra Wade Carmichael, vice na etapa em 2018, ele deu um pequeno show, até se machucar numa tentativa infame de aéreo.
Gostaria de tê-lo visto na água novamente, em condições de mar melhores que as apresentadas no dia decisivo, quando o swell perdeu pressão e a Barrinha virou apenas uma sombra do que pode oferecer aos melhores do mundo.
A janela do evento, aliás, é outro ponto crítico da WSL. Pela enésima vez na história, a entidade opta por encerrar o evento num mar não mais que medíocre, às pressas, muito antes do encerramento do período de espera. Há quem diga que todos chegam loucos para ir embora; outros alegam que é caro demais manter a estrutura ativa por toda a janela; e ainda ouço que alguns competidores curtem quando a janela entre as etapas aumenta um pouco, de modo a facilitar o descanso.
A janela se encerraria no dia 28 de junho. Havia a previsão de um novo swell em Saquarema na quinta, dia 27. A etapa de Jeffrey’s Bay começa no dia 9.
Repito: seja lá qual for a causa da pressa, tudo o que resta fazer é construir uma solução que devolva ao campeonato de surfe as melhores ondas. Simples assim.
A esperada (e justa) finalização da etapa na Barrinha, como em 2018, ampliou o domínio das direitas na temporada. A onda tubular que escorre perto dos molhes da Barra Franca, instalados alguns anos atrás, é especialmente desafiadora para os goofys. Este ano, dos quatro surfistas de base esquerdas que alcançaram as oitavas-de-final naquele pico, apenas Gabriel Medina sobreviveu, mas apenas até as quartas, quando perdeu numa bateria de poucas oportunidades com Andino.
Gabriel, aliás, vive situação curiosa. Atual campeão mundial, frequentemente apontado como um dos melhores surfistas nos eventos de 2019, ele soma, ao fim da quinta etapa da temporada, a metade dos pontos conquistados por seu rival JJF. Em condições normais de temperatura e pressão, isto é, com o havaiano liberado pelo departamento médico, é tarefa desafiadora para o brasileiro recuperar o terreno.
Impossível? Ninguém ousaria dizer, depois do que ele fez ano passado.
Com o título em Saquarema, Filipe responde ao resultado de Margaret River a tempo de avançar, no pelotão da frente, para outra arena em que é dominante: Jeffrey’s Bay. Se voltar a vencer lá, alinha-se ao lado do havaiano na disputa pelo título mundial, cada vez mais fortalecido por abraços fraternos e sinceros.