(Olá, amigos. Estamos todos de volta, depois de um ano difícil, diante de um mundo completamente diferente daquele que deixamos em janeiro de 2020, data da última coluna “Leitura de Onda”. O surfe, para nossa sorte, é um esporte possível em pandemias, e o reinício das provas da WSL tornará a vida um pouco mais divertida. Deixo um forte abraço aos leitores que perderam pessoas queridas e um apelo para que todos se resguardem na medida do possível até a vacina. Falta pouco para resolvermos o problema, e há muitas boas ondas à frente. Saúde e força.)
O quintal de casa decidiu fazer as pazes com seu filho mais dileto.
John John Florence conhece desde criança as cores e curvas de Pipeline. É o melhor surfista daquela onda em todas as condições, mas, com lycra de competição e uma sirene limitando sua liberdade, o destino insistia em tirá-lo do topo do pódio.
A redenção apontou no line-up. No domingo, último dia de um evento diferente, que, em vez de encerrar a temporada, iniciou a disputa pelo título de 2020-2021, Florence, agora patrocinado pela própria marca, fez valer a sua mágica contra velhos rivais.
Começo pela final, diante do mais importante adversário, Gabriel Medina. Na entrevista pós-evento, JJ disse que o brasileiro é sua maior motivação para seguir nas competições. Nada mais preciso. São os dois maiores expoentes de sua geração, e, me arrisco a dizer, dois dos melhores surfistas da história do esporte. Contemporâneos.
Até a final, o havaiano era o melhor do dia, com boa margem. Parecia em frequência diferente. Mas uma final com o rival assumidamente mais importante é outra história.
Gabriel abriu pontuando com duas ondas próximas à nota 5, e ampliou a vantagem ao tirar um tubo mais profundo, que lhe rendeu algo na casa de 6 pontos. Tudo parecia caminhar para mais uma vitória do brasileiro sobre o melhor surfista daquela praia, quando, em poucos instantes, a situação se inverteu.
O dilema da segunda onda da série
Mais uma vez, o surfista de Maresias sofreu com a maldição da prioridade. Pipe costuma ser traiçoeira com o dono da preferência da onda nas mãos. Muitas vezes, oferece a segunda da série como a premiada, a mais tubular e definida, e o surfista vive a eterna dúvida de deixar seu adversário remar ou não na primeira ondulação.
O eterno dilema – é preciso dizer, vivido por todos os surfistas – costuma abrir janelas para viradas, e foi o que aconteceu novamente com o brasileiro.
Primeiro, a 12 minutos do fim, deu espaço para o rival pra fazer a sua nota na casa de 6 pontos, com um tubo para Pipeline. A menos de cinco minutos para a sirene, optou por liberar ao havaiano uma onda para Pipe sem tubo na primeira sessão, que acabou reformando mais adiante e lhe rendeu o complemento que precisava. Depois, JJ ainda finalizou com mais um canudinho profundo para backdoor e fechou a tampa.
Gabriel fez a bateria possível. A quatro minutos do fim, exerceu a prioridade, remou na maior da série, entubou profundo, andou bastante lá dentro e, por um detalhe, ficou preso na bola de espuma, num padrão de tubo que costuma completar.
Talvez tenham sido os deuses do quintal, ansiosos para premiar o filho dileto. O mais certo mesmo é que seja apenas mais uma incrível bateria disputada pelos dois melhores surfistas do mundo, que sempre se alternarão na frente.
Gabriel faz seu quarto vice na etapa mais emblemática da elite – uma notícia que pode assustar o leitor. Mas prefiro marcar que o brasileiro alcançou a quinta final em sete anos (2014, 2015, 2018, 2019 e 2020), um feito que o coloca ao lado de nomes como Kelly Slater e Tom Carroll. O garoto que surfava em Paúba virou gigante em Pipe.
Mas, de todos os eventos em que esteve na final, esta edição talvez tenha sido a que Gabriel surfou de modo mais calculado, sem excessos ou brilho. Passou sempre com pontuação suficiente apenas para vencer adversários e, nas seis baterias disputadas, não alcançou sequer uma vez uma nota igual ou maior que 8 pontos – a melhor onda foi um 7.83, na terceira fase, contra o estreante australiano Morgan Cibilic.
O mais louco é que quase vence a final – também sem precisar fazer uma nota 8.
JJ era o nome do dia, e deixou isso claro também para Kelly Slater, que o vencera em uma de suas duas finais perdidas na história do evento. Os rivais estavam na fila.
O local abriu com duas pérolas quase perfeitas contra o maior vencedor de Pipeline. Kelly ensaiou uma reação, mas não alcançou o patamar de nota do adversário. No fim, entrou propositalmente na onda de JJ e foi punido com o zero em todas as suas ondas – o que parece ser a primeira aplicação da revisão de regras de interferência gerada pela comentada bateria de 2019 entre Gabriel e Caio Ibelli.
Para vencer o 11x campeão do mundo, JJ fez soma acima de 18 pontos – nas quartas, ele já tinha chegado perto, com 17,67, para eliminar o consistente Leo Fioravanti.
Quase 50, entre os três do mundo
Kelly vale uma nota à parte. Aos 48 anos – faz 49 no dia 11 de fevereiro – ele chegou à Pipe como se estivesse no auge de seus 20 e poucos. Derrotar garotos em ondas de consequência com esta idade é um feito extraordinário, sobrenatural, que merece muitas reverências e um estudo sobre a fisiologia e a cabeça brilhante deste surfista.
Ele surfou (e venceu) a primeira bateria do evento a bordo de uma biquilha. Nas oitavas e nas quartas, eliminou respectivamente o novo “atirador de elite” em ondas tubulares, Jack Robinson (único além do campeão a alcançar média superior a 18 pontos no evento), e o mais ilustre sul-africano residente de Oahu, Jordy Smith.
Kelly voltou a se impor. E se posiciona, pela primeira vez desde 2013 (quando venceu na Gold Coast), entre os três primeiros depois da etapa de abertura, num ano repleto de ondas potentes e direitas pesadas de alta performance.
Admito que já tinha descartado a presença dele entre os top 5 na decisão de Trestles, mas agora prefiro o silêncio.
Um surfista medido em megawatts
O outro herói da semifinal é a potente usina de muitos megawatts de energia e talento chamada Italo Ferreira, que defendia a lycra amarela com o título conquistado em 2019. O potiguar segue tão ou mais potente, afiado e mortal que sua versão anterior. A lenda de que um título mundial freia os ânimos dos campeões não funciona com o garoto – o que se viu em Pipe foi um trator de cabelo amarelo, barba preta e sorriso branco-mentex atropelando furiosamente rivais pelo caminho.
A energia é tão avassaladora que às vezes afeta adversários – um exemplo, nas oitavas, foi o australiano Ryan Callinan, bom tube rider, que hesitou visivelmente na disputa, mesmo em posição preferencial, ao ver a certeza e a contundência com a qual Italo remava para as ondas. Quando acordou, a bateria já tinha acabado.
É tanta energia que às vezes ele mesmo sofre as consequências. Foi o que aconteceu nas quartas, contra um dos magos de Pipe, Jeremy Flores. Italo mais uma vez achou as ondas certas, mas foi arremessado no fundo de coral e acabou se contundindo nas costas e na cabeça. Falta de sorte. Na semi, contra Gabriel, não era o mesmo. Ainda assim, ficou muito perto de virar na última onda. Talvez tenha lhe faltado o que ele deixou para trás na disputa com Flores: a condição física intacta.
Italo é um surfista muito físico, e sua fama tem sido construída em torno dessa força. Mas é, também, dono de uma raríssima técnica, futurista, disruptiva, que nos revela um sinal de como será o surfe nos próximos anos. A combinação tem sido, até agora, letal para a maioria dos adversários.
Tendo a achar que, com a serenidade trazida pelo tempo, a prancha do potiguar vai ficar menos nervosa. E, assim, seu talento poderá se sobrepor à energia, sem tirá-lo por um só instante da disputa dos próximos títulos mundiais.
Um caminho possível para Filipe
Por falar em pretendentes a um posto na decisão de Trestles, Filipe Toledo, um candidato natural ao título desta temporada pela conexão com a onda de San Clemente, mais uma vez não conseguiu superar a difícil Pipeline.
Em minha última coluna publicada, no início do ano, entrevistei o ubatubense. Ele me falou, a respeito da mesma etapa de 2019: “Em Pipe, percebi o que estava faltando.”
A prematura derrota na etapa que terminou domingo, ainda na fase dos 32, para o italiano Fioravanti, reiterou velhas lacunas. Tudo bem, naquela onda temperamental, jamais faltarão motivos para alguém ser condenado por uma derrota.
Mas nada me tira da cabeça que Filipe poderia ser brilhante também nos mais intensos swells de Pipeline. Tem talento único. Vou repetir, único.
Para isso, uma saída poderia ser seguir o exemplo do mais tenaz dos campeões mundiais, Adriano de Souza, com suas inúmeras temporadas de muitos meses de labuta no arquipélago. Ou mesmo ir mais longe (ou mais perto, dependendo do ponto de vista), como fez Jordy Smith, que optou por morar em Oahu para acabar com qualquer traço de ineficiência em ondas de consequência.
Seria revolucionário, quase subversivo, ver Filipinho trocar San Clemente pelo North Shore. Sei, a decisão da temporada será em Trestles, mas, na boa, o garoto não precisa de sequer mais um segundo na onda californiana durante a vida para confirmar sua condição de surfista mais virtuoso do mundo naquela arena. Não lhe fará falta.
É só uma sugestão, afinal, não há uma fórmula única de sucesso. A saber: todos sabemos que Filipe pode vencer em 2021 até morando no interior de Goiás.
O mundo precisa de pílulas de Crisanto
Três bravos brasileiros, além de Gabriel e Italo, alcançaram as oitavas em Pipeline.
Começo com quem mais me surpreendeu, Peterson Crisanto. Se a farmácia vendesse pílulas de atitude com a marca do Petersinho, eu compraria sem medo. O garoto de Matinhos deu ao mundo uma aula de como abordar com desprendimento os riscos daquela onda, mesmo sem muita bagagem em tubos.
Teve duas oportunidades de virar contra Leo Fioravanti, mas ficou na bola de espuma, talvez pela falta de quilometragem nessa superfície. Foi o suficiente para deixar claro ao mundo que será só uma questão de tempo até se posicionar como ameaça em todas as ondas de consequência do circuito mundial.
Miguel Pupo, que já viveu alguns bons momentos em Pipeline em sua história, chegou faminto ao arquipélago – a rádio fofoca contou que foi um dos que mais treinou. Deu retorno: de volta ao tour, o paulista deixou no passado a excessiva calma que por vezes gerava derrotas e, ligado e concentrado, só parou para o 2x vencedor de Pipe Flores, numa bateria com poucas oportunidades.
E, por fim, Jadson André, que é bem mais que um surfista talentoso e divertido. Trata-se de um monumento à resiliência. Torço declaradamente por seu sucesso.
O potiguar talvez seja o surfista na história da WSL que mais perdeu por décimos baterias. Aconteceu de novo, desta vez na disputa com Kanoa Igarashi, por uma diferença de oito décimos.
Sua melhor onda, um 6,77, poderia ser um caso de estudo pela WSL. Tive dúvidas sobre o julgamento, se considerado o padrão de nota daquele momento. Jadson achou um tubo improvável, saiu surpreendentemente, e, no fim da onda, achou espaço para um aéreo estratosférico. O desafio do potiguar é a transição entre as manobras, quase sempre com a prancha muito nervosa em seus pés.
Então os juízes ficam amarrados entre as duas manobras excelentes, no início e no fim da onda, e uma transição difícil. Para mim, ainda assim, faltou nota.
Não espero um Jadson menos determinado em Sunset. Neste momento, só me vem à cabeça o momento de sua reclassificação heroica, emocionante, na bateria que selou a sua volta à elite, naquela mesma onda potente, faz uns cinco anos. Avante.
No feminino, o primeiro degrau de uma longa escada
No feminino, as primeiras baterias da história realizadas em Pipeline, depois de um ataque de tubarão em Honolua, revelaram-se um difícil desafio. Tyler Wright venceu sem entubar numa arena de tubos ocos. Em geral, as expectativas de performance não foram cumpridas, o que nos revela que ainda há um caminho de adaptação delas às ondas de consequência. Nada melhor que uma competição para apressar a evolução.
Veremos uma nova abordagem em Sunset?
No pelotão da frente do masculino, há algumas dúvidas sobre a próxima etapa. Gabriel e Kelly já declararam algumas vezes não gostar da onda de Sunset – e isso não quer dizer que não saibam surfá-la muito bem. Por acaso, nenhum dos dois surfistas – reconhecidos vencedores em todas as condições possíveis – esteve no topo daquela etapa, seja no tempo que a prova pertencia à elite (sim, Slater já estava no tour nessa época), seja no seu longo período como decisão do circuito de acesso.
John John não tem nada com essa birra, e desponta desde já como favorito em mais esta etapa, com seus arcos afeitos a ondas potentes. A onda também favorece o surfe de Jordy Smith. Os dois já venceram em Sunset. Italo é outro que pode se aproveitar da velocidade de seu ataque de backside.
Mas a tendência é que haja surpresas, sobretudo entre os surfistas que não costumavam precisar da etapa para se manter na elite. Uma coisa é Sunset numa disputa do circuito de acesso; a outra, bem diferente, é a onda dando pontos à elite. Espero novidades na abordagem a aquelas ladeiras – afinal, só a nata estará no pico.
Sobre a volta ao surfe na pandemia, gostei dos protocolos responsáveis da WSL para proteger a saúde dos atletas e de quem trabalha no evento. Testes sistemáticos – teve surfista que fez pelo menos dez exames durante o evento, medição de temperatura, distanciamento social, enfim, a entidade se esforçou de modo competente para tornar o circo novamente possível.
A se lamentar apenas a escolha de Ross Williams, técnico do novo vencedor de Pipe John John Florence, para a função de comentarista. Isso não é sério, definitivamente.