Este é um texto sobre a odisseia de um artista genial e a redenção de um palco.
Primeiro, Filipe Toledo, o dono do espetáculo.
O garoto foi o protagonista em todos os palcos de Saquarema – nas direitas cavadas da Barrinha, nas esquerdas furtivas do point. Combinou todos os principais elementos do surfe moderno: tubos, carvings agudos, manobras aéreas.
De novo? Isso mesmo, de novo.
Filipe nos força a dizer que ele é o melhor surfista do mundo num cada vez mais largo conjunto de ondas. Não há como negar, ele é firme. Mais incisivo, mais veloz, mais surpreendente e, sobretudo, mais decisivo que todos os seus adversários.
A contundência de seis vitórias em seis finais – não lembro de outro surfista que tenha alcançado essa marca – foi o tema óbvio da entrevista de Strider logo depois do título. Filipe esvazia a pressão da final num raciocínio aparentemente simples, mas bastante inteligente: é a última bateria do evento, não há mais nada a perder. Só a ganhar.
Driblada a pressão, ele se solta e faz, num mar agudo, mas ardiloso, 17,10 pontos, lançando no banco de trás da Kombi o bom Wade Carmichael, que vinha fazendo uma prova consistente, mas na bateria decisiva somou apenas 8 pontos.
– Sou um desses atletas que surfam bem sob pressão. É a hora, o grande show, o meu palco – revelou, com uma sinceridade emocionada, Filipe.
No mar difícil da final, ele faz a terceira maior pontuação do evento, atrás apenas dele mesmo no round 4 (18,33) e de um lampejo genial de John John Florence no round 3 (17,97), ainda na Barrinha, antes de o bicampeão se afundar no point.
Na fase 4, espetou o único 10 do evento em seu nome – o mesmo já ocorrera na prova extra CT realizada recentemente na piscina de ondas de Kelly Slater (leia texto sobre o tema na coluna “Nazaré, o Rancho e a Barrinha”).
É a hora de falar da redenção de um lugar.
Saquarema é uma espécie de guardiã do surfe brasileiro. Brilhou nos lisérgicos anos 70, com festivais gigantes e jovens que sobreviviam a pão, água e otras cositas más. Passada a febre, a cidade se virou do jeito que deu, como sede de circuitos amadores e profissionais nacionais, mantendo-se visível apenas para os surfistas.
No início dos anos 2000, foi sede do CT. Na ocasião, a estrutura foi criticada, mas a onda, sagrada, manteve-se incólume. Voltou para a sombra dos circuitos locais até ganhar uma etapa da divisão de acesso, que fez sucesso. Circunstâncias diversas acabaram por levar, em 2017, a prova brasileira da elite de volta a Itaúna.
Ano passado, Adriano de Souza brilhou num evento de ondas consistentes, mas, em 2018, a cidade adicionou um inesperado ativo ao pacote majoritário de esquerdas do “Point” comprado pela WSL: a Barrinha, direita forte, oca, rápida, com algumas rampas e afeita aos surfistas mais progressivos da elite.
A WSL descobriu ali uma onda contemporânea, a cara do novo regulamento da elite. Na Barrinha, não tem meio termo, é matar ou morrer. As notas revelam um pouco desse fenômeno – notas baixíssimas entremeadas por highscores fascinantes.
Entre os eleitos em algum momento pela onda, vale falar, além de Filipinho, claro, de figuras como John John Florence, Ian Gouveia (em duas oportunidades, uma delas num tubo seguido de uma finalização impossível), Sebastian Zietz, Tomas Hermes e Joan Duru, entre outros. Aliás, Duru e Zietz fizeram uma das melhores baterias de round 2 da história, com ambos os surfistas conectados à Barrinha.
Nos dias de “Point”, entre masculino e feminino, não se pode dizer que Saquarema não entregou o que prometia. Tinha onda, onda consistente, de qualidade, melhor do que boa parte dos dias de evento já realizados no ano em arenas mais reconhecidas.
Some-se isso tudo a um ambiente especialmente leve, com festas, shows, e um público grande, mas mais próximo do surfe que a massa televisiva que invadia o Postinho, e pronto: criou-se o ambiente mágico para o que muitos estão chamando de “a melhor etapa brasileira do WCT da história”.
Sim, foi a melhor até agora, embora esta seja apenas a terceira prova da elite realizada no pequeno município da Região dos Lagos. Foi, sobretudo, um marco na mudança da imagem dos estrangeiros em relação à etapa brasileira. Em vez das tradicionais ironias e reclamações, vimos uma fartura de elogios e declarações de amor à cidade, ao público e às ondas, entre as quais uma do apresentador da WSL Kaipo Guerrero, em pleno debate do pós-evento.
A virada é, sobretudo, uma grande oportunidade para o município. Oxalá a prefeita Manuela Peres tenha lucidez para usar o excelente momento de Saquarema como catalisador de uma transformação pelo surfe e pelo turismo de surfe. A cidade precisa muito aceitar sua vocação, respeitá-la e trabalhar de modo a construir um desenvolvimento mais harmônico e sustentável usando essa ferramenta.
Um bom caso a seguir é o da pequena Peniche, em Portugal, com seus 27 mil habitantes. Eles entenderam que o surfe é o motor da prosperidade local. Desde 2009, ano da primeira etapa do CT em Supertubos, o município vem investindo no esporte e no turismo associado às fartas possibilidades de onda da região. Construíram cultura, geraram recursos, desenvolveram-se.
De volta à Saquarema, valeu prestar atenção às demais histórias da etapa.
Os dois semifinalistas curiosamente chegaram longe sem brilhar, ainda que as ondas premiassem a alta performance.
Julian Wilson, que manteve a liderança da temporada com o resultado, não ultrapassou a casa de 12 pontos nas baterias do evento. Ele parece ter aprendido de vez a velha máxima da regularidade: surfe apenas melhor que seu adversário.
Não seria exagero dizer que, nas três etapas e meia realizadas até agora, o australiano se destacou apenas no dia decisivo da primeira etapa, quando dominou de maneira absoluta os tubos de Kirra, justamente quando ainda estava contundido no ombro.
Na outra chave, Ezequiel Lau, competidor duro, foi apenas um ponto melhor, alcançando 13,60 pontos uma vez, na fase 1. O havaiano, sem fazer alarde, subiu 12 posições no ranking, para alcançar o sexto posto. É um lutador, mas não deve conseguir sustentar o top 10 até o fim da temporada – já sofrerá uma queda com a retomada da terceira etapa, em que ele já havia sido desclassificado.
As quartas-de-final pareciam um sonho para o Brasil. Alinharam na fase quatro surfistas do país, um em cada bateria, o que fez otimistas acreditarem na possibilidade de uma semifinal exclusiva de brasileiros, o que seria inédito no surfe contemporâneo.
O jogo começou favorável com a vitória sólida de Filipe sobre o americano Kolohe Andino, que se adaptou bem à Barrinha.
Começou a degringolar quando Michael Rodrigues, com a prioridade, deixou Julian Wilson virar a bateria a poucos minutos do fim. A despeito do erro tático, Michael teve bons momentos no evento, como em sua bateria contra o português Frederico Morais.
A história seguiu ladeira abaixo com o apagão de Gabriel Medina, que vinha fazendo uma boa prova, embora sem seus conhecidos momentos de brilho. Nas quartas, escolheu o caminho errado ao tentar o jogo progressivo em ondas de baixa qualidade, num momento em que o mar não oferecia muitas aterrissagens seguras para manobras aéreas. Viu o bom de borda Wade esperar as melhores e passear na bateria.
Com o resultado, Gabriel aumenta a pressão por sucesso em casa. Chegou à sétima edição da prova brasileira sem ter feito sequer uma final diante de seu público. Os dois outros surfistas brasileiros vencedores de prova que ainda estão na elite, Adriano de Souza e Filipe Toledo, já colecionam duas vitórias cada. Agora é focar em 2019.
Na última bateria das quartas, Yago Dora, que passava mal, não conseguiu encontrar espaço na Barrinha e foi dominado por Ezequiel Lau. Ainda assim, fez boa prova, adaptando-se, como Filipe, às ondas da Barrinha e do “Point”.
Agora é a vez de Bali.
Filipe não tem sentido a pressão da vitória diante do público. Até hoje, não caiu na armadilha da obrigação do sucesso em casa. Seu desafio, no entanto, é outro: estabelecer ritmo semelhante em novas ondas. Vice-líder, bem perto de Julian Wilson, ele segue para duas paradas fundamentais em Bali.
Na primeira, em Keramas, terá o trabalho de confirmar a performance num tipo de onda que, ao que suas conquistas prévias indicam, ele domina amplamente.
Na segunda, em Uluwatu, o desafio é maior, mas a recompensa pode ser gigante: provar que também pode vencer em tubos para a esquerda e, com isso, minar a possível resistência silenciosa da WSL, talvez nem consciente, a dar o título da temporada a um surfista sem esquerdas tubulares no pacote.
Uluwatu vira uma oportunidade de ouro – é uma onda de consequência, mas na média mais tranquila que Teahupoo e que a agora destituída Fiji. A famosa esquerda da Península de Bukit pode se tornar o ponto de mutação na corrida pelo título de Filipe.
O circuito chega à Bali num cenário especialmente interessante para o Brasil. Três surfistas do país estão entre os cinco primeiros do mundo. Além de Filipe, estão bem posicionados Gabriel e Italo Ferreira. Os três estão classificados para o restante da etapa de Margaret e, portanto, disputarão em Uluwatu.
Gabriel e Italo, excelentes surfistas de tubo, chegam bem à ilha mais famosa da Indonésia. Provavelmente saberão surfar Keramas, de costas para a onda, e passearão confortavelmente em Uluwatu.
A pedra no sapato pode ser o líder Julian, que também competirá nas duas etapas e é um surfista excepcional de tubos – não importa o lado da onda. O australiano, pelo desenho do restante do circuito de 2018, está em posição privilegiada para o título.
A última menção vai para o surpreendente estreante Michael Rodrigues, que, com um surfe alegre e moderno, ocupa hoje a sétima posição na temporada.
Chegou a hora de o circo desembarcar em Denpassar.