O circo é magia, encantamento, reunião dos saberes populares e das habilidades incomuns. Italo é o circo – o malabarista, o equilibrista, o mágico, o palhaço que faz o velho rir como criança, todos num surfista só. Saiu do picadeiro de Portugal, a penúltima parada da temporada, com o título de campeão, diante de um público feliz.
De quebra, tirou da cartola a surpreendente liderança da temporada. Dois eventos atrás, logo depois da etapa do Rancho, ninguém (a não ser o próprio e seus pares) ousaria cravar Italo na liderança de 2019, a caminho do encerramento, em Pipeline, Oahu.
Apesar de jamais ter feito um bom resultado na onda havaiana, o potiguar é sabidamente um especialista em tubos – já mostrou habilidade em várias arenas difíceis. Terá, a partir do dia 8 de dezembro, uma oportunidade de ouro. Se bamburrar, vencendo mais esta etapa, leva logo dois troféus inéditos para Baía Formosa.
Na final de Portugal, contra o finalmente constante sul-africano Jordy Smith, Italo foi o dono absoluto do palco. A maior acrobacia, ele deu logo na primeira onda: um assustador full-rotation de backside, com pouso perfeito, na base da onda. Nota dez.
Depois, encaixou mais um aéreo rodado de frente para a onda e outro de costas, além de um varial, para confundir a cabeça do público e até dos juízes, que não valorizaram devidamente a última manobra.
Jordy, que abriu com um 6 e pouco, assistiu ao show como espectador privilegiado, sem poder fazer nada. Saiu da água em inapelável combinação.
O sul-africano chega a Pipeline com as maiores chances de título de carreira, embora, dos quatro reais candidatos, seja o que está em pior situação, porque o descarte de seu pior resultado do ano é um nono lugar, enquanto os demais descartam décimos-sétimos.
A temporada de Jordy foi extraordinariamente consistente, com apenas uma ressalva importante – ele não venceu prova em 2019. Jordy provavelmente se mirará no exemplo de Joel Parkinson, que em 2012 chegou ao arquipélago em situação idêntica e saiu de lá com o título da prova e da temporada.
Kanoa Igarashi e Caio Ibelli, os dois terceiros na prova, são lutadores, cada um à sua maneira.
O incansável Igarashi, que vencia Jordy até pouco mais de um minuto para o fim da semifinal, brigava para chegar a Pipe com chances de título. Com a prioridade nas mãos, deixou o sul-africano remar na onda e voar para a virada e, com a vitória de Italo, ficou a mais de 10 mil pontos do potiguar, com os mesmos descartes. Não importa: seja qual for seu resultado em Pipe, o japonês da Califórnia já pode comemorar um ano magnífico.
O resiliente Caio, depois de vencer na polêmica bateria da interferência de Gabriel Medina (que trato com calma abaixo), passou por Peterson Crisanto e apertou a disputa da semi contra Italo, ficando na frente do placar boa parte da disputa. Caio cumpriu sua missão de se manter na elite, mesmo tendo sido afetado por uma decisão controversa da WSL no início do ano (detalhes abaixo).
O bom Peterson Crisanto merece uma nota à parte. Ele vem surpreendendo com atuações consistentes, mesmo em derrotas, e, em Portugal, fez uma bateria magnífica, no round 3, contra Jeremy Flores, francês que vinha embalado com o título em casa. Conseguiu, com o quinto em Portugal, entrar na linha de corte de classificados da elite.
Filipe Toledo perdeu grande oportunidade de chegar de modo mais confortável em Pipe. Nas quartas, fez uma bateria apagada contra Kanoa, repleta de erros incomuns, deixando a impressão de que não está completamente recuperado de suas contusões. Em plena forma, Filipe é barbada nas condições em que foi eliminado.
Agora, em Oahu, estará frente a frente, mais uma vez, com uma possibilidade de redenção em ondas de consequência. Sonho em vê-lo imediatamente no arquipélago, em viagem antecipada mesmo, se entregando sem resistência à potência das ondas havaianas para se sentir realmente em casa durante o principal evento da temporada.
De volta ao dono do circo e da festa, Italo, ele ainda teve tempo de, na premiação, dar um recado sério para o Brasil, sobre o escandaloso e até agora não explicado vazamento de óleo em inúmeras praias nordestinas. Precisamos de mais atitudes como a do potiguar entre os líderes do surfe. O esporte depende de alguns dos mais emblemáticos patrimônios ambientais do mundo, e seus representantes devem se posicionar sempre.
Um pouco sobre a polêmica interferência
Gabriel Medina, o outro candidato ao título, que perdeu a liderança em Portugal, atropelava Caio Ibelli, nas oitavas, quando uma interferência mudou a história da prova.
É preciso separar em potes a história para não comprarmos a briga errada.
Primeiro, a infração. Houve interferência, sim, porque a placa indicava prioridade ao surfista de azul, Caio, e isso define a posição dos atletas. A definição de juiz de prioridade foi correta? De minha perspectiva, não. Em todos os vídeos que vi, em plano aberto, Gabriel estava ligeiramente à frente do adversário na remada de volta ao pico.
Caio sentou antes da hora, num aparente canal, quando não havia onda quebrando no local, com a legítima intenção de tentar obter a prioridade sobre o adversário. Depois, ao perceber a placa que sinalizava a seu favor, voltou a remar ao encontro do rival.
Importante dizer que essa é uma prática normal, comum, do jogo competitivo. Se Gabriel estivesse na mesma posição, possivelmente teria feito o mesmo movimento.
O juiz de prioridade comprou o movimento de Caio.
Em segundo lugar, a reação de Gabriel nas mídias sociais. Para mim, legítima. Ele questionava algo que tinha convicção de estar certo. Usou as imagens do post show para dar a sua versão dos fatos, defendendo a sua posição de não ter atentado para as placas diante da certeza absoluta da prioridade. Fez o seu papel, legítimo.
De todo modo, a seguir a lógica da arte da guerra, o melhor para o bicampeão é tentar, em vez de identificar culpados, saber o que poderia ter feito para prevenir a eliminação, ainda que por um equívoco de terceiro. Olhar para a placa como regra pode ser uma boa.
Num desdobramento quase previsível dos fatos, a onda de haters disponível na internet avançou de maneira infame sobre Caio, com ofensas e até ameaças de morte. Caio, é preciso dizer, nada tem a ver com a eliminação de Gabriel. Fez o que qualquer competidor que se preze, que precisa do resultado, faria: lutou pela prioridade.
Provavelmente os haters, esses idiotas invisíveis da web, não sabem que Caio é um dos mais injustiçados surfistas alinhados na elite de 2020. Este ano, compete como convidado, e não como integrante oficial, porque teve sua vaga tungada grosseiramente por uma questionável contusão do multicampeão Kelly Slater, na disputa pelo wildcard dos surfistas que se contundiram em 2018. A saber: o brasileiro passou a temporada passada praticamente inteira fora da água devido a uma grave fratura no pé direito.
Portanto, antes de o ameaçarem, torçam por ele.
É preciso dizer, para fazer justiça, que as ações de haters estão em todos os lados, também nas concorridas páginas de Gabriel, com milhões de seguidores.
O que a família Medina pensa da polêmica? Conversei com Charles esses dias e a resposta foi curta e certeira: página virada, foco total em Pipeline e numa rotina de treinos que permita a Gabriel chegar a Oahu pronto para brigar pelo tricampeonato mundial. “Ele vai chegar, mais do que nunca, com a faca nos dentes.”
Pipe em chamas
Se não fosse água, Pipeline certamente se incendiaria este ano.
Além de Gabriel, estão na caça ao título, com chances reais, Italo, Filipe e Jordy. Três brasileiros e um sul-africano, a uma distância tão pequena que, em boa parte das combinações de confronto e resultado (à exceção de Jordy), a busca é pela vitória. Quem chegar na frente, ou ainda mais interessante, quem levantar o troféu-prancha do Gerry Lopez, erguerá também o caneco reluzente da temporada de 2019.
Kolohe Andino, com mais um quinto no ano, tem chances matemáticas, embora reduzidíssimas. Entra no grupo quase que para justificar um representante americano na disputa, sem jamais ter vencido uma etapa do CT na vida.
Pipe ainda terá John John Florence. Sim, ele mesmo, o cara que quando saiu da disputa quando liderava a temporada com braçadas de vantagem, está de volta, em casa, recuperado de grave contusão.
O bicampeão havaiano pode ser o fiel da balança na disputa da temporada – o candidato ao título que estiver em sua chave ganha uma pedra gigante no caminho. Não custa lembrar que em tempos recentes retornos de contusão têm se convertido em vitórias. Florence é uma aposta, inclusive, para vencer pela primeira vez o evento.
Agora, é torcer para que ondulações limpem a areia do belíssimo fundo de coral da mais emblemática onda do mundo antes de soar a primeira sirene. O show vai começar.