Leitura de Onda

Filipe, Griffin e a trilha de Trestles

Colunista Tulio Brandão analisa performance vitoriosa de Filipe Toledo na etapa de Punta Roca, El Salvador.

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Além da torcida brasileira, Filipe Toledo conta com o apoio de toda a rua em que mora na Califórnia.

Estou no último dia de uma pequena escapada de férias, em pleno voo Houston-Rio. A abafada capital do Texas costuma ser o caminho preferido, sem escalas, de quem sai de qualquer rincão americano para a minha terra. Tem uma turma boa no mesmo avião – de passagem, vi Carissa Moore, além da quase grommet Caitlin Simmers e seu pai, todos a caminho de Saquarema.

Este enorme nariz de cera – nome que velhos jornalistas dão para aberturas de texto sem informação relevante – serve apenas para deixar claro que desta vez vou pedir a licença de fazer um texto mais livre, sem obrigação de análise técnica da etapa.

O descanso, por certo, não alcança o surfe. Dias antes de ver Filipe Toledo demolir Griffin Colapinto no dia decisivo de El Salvador, encontrei o pai do atual campeão mundial na rua em que a família mora, na aconchegante San Clemente.

Ricardinho Toledo é hoje um cidadão perfeitamente integrado à cidade que abriga, hoje, o líder e o vice-líder do circuito mundial. Para mim, além de figura fundamental na construção dos pilares que levaram o filho ao título mundial, ele será sempre o tricampeão brasileiro de um tempo em que a molecada de Pindorama era mais próxima de surfistas da Abrasp.

No meio da prosa, em frente ao portão dos Toledo, um vizinho americano perguntou entusiasmado sobre Filipe, sem medo de declarar a torcida para o brasileiro.

Fiquei surpreso. Ricardinho me contou que a rua inteira torce para seu filho, e que depois do título mundial em Trestles, ano passado, os próprios vizinhos se encarregaram de enfeitar o caminho de Filipe com balões de encher. Fizeram a festa nas colinas de San Clemente.

Não demoro a perceber que a polarização construída sobretudo pelos erros recentes da WSL não faz muito eco nas ladeiras, trilhas e picos da cidade. A bordo de uma veloz Sharp Eye 5’11 swallow gentilmente emprestada pelo Ricardinho, gasto dois dias em Trestles, tempo suficiente para catar meia dúzia de pérolas e trocar uma ideia com locais do pico. Filipe é querido, ponto.

(Aqui um rápido parêntese de agradecimento também ao amigo e bom Rafael Mellin, do Grupo Sal, surfista amador de base firme que fez a loucura de me emprestar uma prancha zero, na caixa. Não fui adiante porque devo pesar quase duas vezes mais que ele.)

Griffin Colapinto, venerado em sua área.

Dentro d’água não assuntei sobre Griffin, que naturalmente é venerado em seu pico original. O atual líder do WCT cresceu, empurrado pelo pai salva-vidas e instrutor de surfe, entre as ondas de Cotton, Uppers, Middles, Lowers e Church.

Noves fora os exageros do painel de juízes, Griffin faz realmente uma temporada brilhante e tem se posicionado de modo bem claro como a primeira chance concreta de título mundial para a área continental dos Estados Unidos desde o décimo-primeiro título de Kelly, em 2011.

Não por acaso, os dois, Filipe e Griffin, estavam na decisão de El Salvador, pelo segundo ano consecutivo. A onda de Punta Roca não é exatamente idêntica à direita de Lowers, onde será realizado o WSL Finals, mas o repertório dos surfistas nas duas ondas é bastante semelhante.

Filipe venceu com sobras a revanche e foi indiscutivelmente o melhor surfista do evento, embora na outra chave Griffin também tenha tido certo destaque, sobretudo pelas médias alcançadas.

Mas, nas condições de surfe progressivo, o brasileiro parece estar em prateleira superior, até pelo olhar dos adversários. Leo Fioravanti foi chamado para comentar a transmissão durante as quartas-de-final entre Filipe e Kanoa Igarashi e não economizou elogios ao atual campeão, deixando sutilmente constrangidos os comentaristas oficiais da WSL. “Ele é meu surfista favorito no tour neste momento. Se eu conseguir executar as manobras como ele faz, ficarei feliz.”

Ian Gentil chega pela primeira vez entre os semifinalistas.

Na final, uma espetacular demonstração da extensão do surfe de Filipe: na abertura da somatória, uma sucessão de pancadas jogando a rabeta, sempre na zona mais crítica e com a maior potência possível. Na segunda onda, como se tivesse ouvido a crítica da comentarista Flick Palmateer, que lamentara minutos antes a falta de variedade de manobras da primeira nota excelente de Filipinho, o brasileiro não repetiu sequer uma manobra, com transições perfeitas e uma linha sem falhas. Deixou Griffin em combinação, a caminho do Brasil. Vi uma sutil raiva no surfe de Filipe, o que é alvissareiro e compreensível, mas sigamos apenas no surfe.

Duas rápidas notas sobre os semifinalistas: Ian Gentil chega pela primeira vez entre os três e Liam O’brien repete o resultado do esquecido evento de Rottnest, em 2021. Dois bons surfistas, que estiveram finamente conectados com a onda de El Salvador. Surfaram no limite, sem abrir mão de seus próprios jogos, e, desta forma, no photochart, com vitórias por um décimo, tiraram do caminho favoritos. O havaiano-brasileiro parou Italo Ferreira nas quartas-de-final e o australiano interrompeu inesperadamente o caminho do compatriota Ethan Ewing.

Essa enorme volta no texto – mais longa que a trilha para Lowers – é útil para entender uma história que parece cuidadosamente costurada para as finais da WSL, em 2023. Os fatos que se desdobraram até agora nos permitem uma construção de confrontação e de resolução de roteiro digna de Syd Field.

Gabriel Medina pode roubar o papel principal em Trestles se ficar entre os cinco melhores do mundo.

É uma temporada que nada tem de “you can’t script this”, mas cabe como uma luva em “Make or Break”: Filipe e Griffin são, cada um a seu modo, os protagonistas de 2023. Dois ídolos, duas bandeiras diferentes, mas, de certa forma, representando legitimamente a mesma cidade, disputam numa grande final o título da temporada.

A história só não está sendo rodada porque o WCT (ainda) não é um reality show.

Gabriel Medina e Italo Ferreira, que não fazem suas melhores temporadas mas estão acostumados aos holofotes, podem roubar a qualquer momento o papel principal de Trestles, caso consigam se manter entre os cinco melhores do mundo.

Italo, por pouco, mas pouco pouco, não fez esse papel em 2022.

João Chianca e Jack Robinson não são exatamente especialistas na onda de San Clemente, mas alguém duvida da capacidade deles de vencer contra todos os prognósticos?

Há ainda Ethan Ewing, dono de um surfe refinado mas incompleto, que vem sendo valorizado num ano que ressuscitou o surfe conservador, além de defender a mais forte bandeira do tour.

E por fim, John John Florence. Basta uma centelha de inspiração do havaiano para ele se colocar em posição de disputar vitórias nas três últimas etapas e pular para as cabeças.

Uma disputa interessante se desdobra nas três últimas etapas antes de Trestles. Filipe e Griffin parecem fadados ao protagonismo, e outros seis surfistas lutarão pelas três vagas restantes.

O atual campeão mundial tem larga vantagem no Brasil, tanto pelo histórico de vitórias como pela habilidade de crescer perto da torcida, e divide favoritismo em J-Bay, pela maturidade de seus arcos, mas costuma sofrer para fazer resultados no Taiti.

Italo Ferreira é outro que não pode ser subestimado numa eventual final em Trestles.

Griffin tem contra si péssimos históricos em Saquarema, em J-Bay e no Taiti, com nonos lugares como melhores resultados em todas as arenas, mas nunca esteve tão bem tecnicamente. Não seria surpresa vê-lo em posições melhores em todas as etapas restantes da temporada.

Os outros seis, vocês sabem, estão ali prontos para tentar recuperar o empoeirado slogan da WSL e dar uma nota de surpresa a uma temporada até aqui tão roteirizada.

Antes do fim deste texto torto, passo para dizer que as linhas retas de Trestles estavam infestadas de pivetes louros, loucos para roubar a coroa das gerações futuras do Brasil. Dei uma ainda rápida passada em Oceanside, a tempo de conferir um bem organizado Campeonato Americano Júnior. Pela renovação que vi nos últimos dias na Califórnia, há pelo menos uma certeza: passou da hora de Kolohe Andino pedir o boné na WSL.