A um minuto do fim da decisão olímpica, o mar encrespado, marrom, desorganizado e ventoso da primeira final olímpica da história do surfe era apenas um confortável ninho dos melhores sonhos de Italo Ferreira e de todos nós, que amamos o surfe.
O espírito do potiguar, sempre vivo e elétrico, explodia em felicidade, com urros carregados de alegria, o dedo indicador apontado para o céu e as lágrimas.
Longe dali, perdidos em seus sofás numa silenciosa madrugada de segunda para terça-feira, mas repletos de Italo dentro da alma, choraram também o shaper artesanal que faz prancha para a molecada, a própria molecada, o surfista profissional vencedor e o sem conquistas, o anônimo amador orgulhoso de suas ondas, o dirigente da associação local, o jornalista de surfe que cobre o esporte para ficar mais perto do que ama, tantos outros.
Eu, você e nossos amigos percebemos que a história íntima do surfe brasileiro estava enfim contada de maneira justa, aos pobres mortais que não conhecem o esporte. Passadas muitas gerações de diligentes surfistas preocupados apenas em deixar apenas um tijolo nessa estrutura, vimos um pequeno gigante finalizar esse castelo.
Para sorte de nossa geração, a mais desejada medalha olímpica do novo esporte foi para um brasileiro de Baía Formosa, no litoral do Rio Grande do Norte. Para um cara consciente de suas origens, que valoriza cada milímetro do que conquistou na vida. Um enorme ser humano. O ouro olímpico caiu bem no peito de Italo Ferreira.
– Eu só queria que minha avó estivesse viva – disse, em prantos, logo após de sair da água, ao repórter da TV Globo Guilherme Pereira, que também não resistiu ao choro.
Como diz uma amiga: quem lembra a avó falecida depois de um inédito ouro olímpico ganha imediatamente um lugar especial no céu e no coração dos brasileiros.
Vão discutir rotação de aéreo em botequim?
A medalha de ouro de Italo e a polêmica derrota de Gabriel Medina – que será discutida adiante neste texto – talvez tenha aberto uma caixa de pandora inédita no surfe, com um possível aumento de popularidade. Mas não será tão fácil. O esporte esbarra em seus próprios limites: dificuldade de aprendizado, subjetividade do julgamento e inconstância de ondas de qualidade em boa parte dos picos do mundo.
A aposta é que haja, sim, uma ampliação de visibilidade e algum aumento do número de praticantes – no mundo, na esteira do surfe como esporte olímpico e, no Brasil, turbinado, claro, pelo reluzente e raro ouro olímpico.
Mas a polêmica sobre um aéreo, não se preocupem, não ultrapassará os limites rasos das mídias sociais, afogadas nas últimas horas por milhões de palpiteiros. O botequim, que está em outro patamar, não será contaminado pelo debate vazio.
Em ondas infames, a energia do garoto de Baía Formosa
Nos dois primeiros dias de evento, Italo acelerou no swell frouxo de Tsurigasaki, com ondas de vento que esfarelavam com facilidade. A decisão de não fazer a prova nas melhores ondas de Fukushima, objeto de minha última coluna, expôs a disputa olímpica às condições muitas vezes difíceis do pico perto de Tóquio.
As ondas do dia decisivo, encrespadas como liquidificador, eram resultado de um tufão que se aproximou da costa. Muitas derrotas poderiam entrar na conta da escassez de oportunidades, embora fosse parte do jogo olímpico lidar com as vagas deformadas que despontavam no horizonte de Chiba.
Um parêntese rápido: o Japão, aliás, como uma ilha, tem uma história íntima com o mar. O país é o único do mundo a ter um feriado que reverencia as belezas e os perigos do oceano, chamado de Umi no hi, celebrado no dia 20 de julho. A iconografia deles não fica atrás: a mais famosa xilografia de mar revolto do planeta se chama “A Grande Onda de Kanagawa”. A imagem, feita em 1831 pelo japonês Katsushika Hokusai, fundador do estilo Ukiyo-e, é parte de uma série de imagens com vistas do Monte Fuji.
Para domar esse tão simbólico mar encrespado, o melhor remédio é a energia corporal de Italo, que, se não fosse surfista, poderia ser ginasta olímpico ou vencer em qualquer outro esporte. A final, neste sentido, contra o japonês de prata Kanoa Igarashi, foi um exemplo de como vencer, antes de tudo, o mar.
Na primeira onda, uma esquerda, Italo atacou um lip grosso de modo desapegado, como é de seu feitio, e teria completado uma manobra impossível não fosse a limitação estrutural de sua Timmy Patterson de EPS, que se partiu em dois pedaços sob seus pés, no momento que a prancha aterrissou pressionada pela onda.
O que seria para mortais o drama de adaptação à prancha reserva se transformou em solução. Na areia, Italo acabou optando por um modelo diferente do que vinha usando, que lhe deu mais fluidez e linha nas quase impossíveis ondas de Tsurigasaki.
É tudo sobre adaptação, desde o isopor do pai usado na primeira onda da vida.
E, assim, mais uma vez, o potiguar foi construindo, onda após onda, sua superioridade sobre o adversário. Desta vez com esquerdas, que estavam fora do script inicial.
Kanoa esgotou sua capacidade de reagir na semifinal contra Gabriel Medina. Na final, de dentro d’água, gesticulava para a areia, como se pedisse a alguém para mudar a inexorável realidade daquele mar. Desta vez, nem os juízes puderam fazer nada.
Igarashi entre dois mundos
Kanoa é um grande surfista, dentro e fora d’água. Disciplinado, dedicado e ético, aceitou a missão dada pelo pai no seu nascimento, quando a família se mudou para a Califórnia, e, sim, alcançou o sonho da elite do surfe mundial. Entre suas virtudes, tem velocidade, dinamismo das manobras, pacote de aéreos e muita consciência tática.
Além disso, sempre foi um atleta querido pela WSL, desde os tempos em que se apresentava sob a proteção da bandeira americana. Com a confirmação do surfe olímpico, optou por exercer a cidadania japonesa para que, assim, se posicionasse de modo confortável em busca de uma vaga olímpica e, em sua segunda casa (a primeira sempre foi Huntington Beach, na Califórnia), brigasse por uma medalha.
Em vez da tradicional flâmula “the stars and stripes”, ele escolheu ser abrigado pela bandeira que representa o “círculo do sol” (Hinomaru), numa estratégia genial que nos ensina um pouco sobre a nova configuração geopolítica do surfe mundial.
O Japão está desde sempre entre os países desejados pela WSL e pela ISA. Tem o público, que não é pequeno, com um raro poder de consumo. Há motivos para olhar para o país-ilha também pela economia, que ocupa faz décadas a lista de mais prósperas do mundo. A cultura de prancha é razoavelmente consolidada por lá. E, ainda, trata-se de uma potência líder na Ásia, continente alvo de qualquer entidade séria.
Ainda que não haja necessariamente qualquer nexo causal comprovável entre as circunstâncias de mercado do esporte e erros de julgamento, tanto na WSL quanto na ISA, e ainda que seja absolutamente legítimo e até necessário que as duas entidades lutem pela aproximação do Japão, acho essa contextualização obrigatória.
Dito isso, os juízes têm sido condescendentes demais com as lacunas ainda existentes no surfe do nipo-americano. Todos os surfistas têm falhas, mas algumas gritam mais alto na elite. É o caso do excessivo uso do fundo da prancha nas manobras de Kanoa, num ambiente em que é mandatório o uso de bordas cravadas na água.
Mesmo que, mais uma vez, não haja qualquer relação necessária com o resultado dos Jogos de Tóquio, é novamente fundamental trazer ao debate esta lacuna. Afinal, a pontuação de um surfista não se constrói na última onda de uma bateria, e sim ao longo de bastante tempo. Os pontos são sempre carregados, em maior ou menor escala, pela construção histórica da reputação de um surfista dentro d’água.
No palco do surfe olímpico, o nipo-americano estava à vontade. Avançou com autoridade em todas as fases da competição, sem sustos ou somatórios baixos, mesmo em condições quase sempre infames. Mereceu incontestavelmente estar ali.
Gabriel x Kanoa
Antes de qualquer coisa, é preciso dizer: Gabriel estava surfando o fino, com a prancha no pé, em plena forma física e técnica. Nessas condições, é bastante difícil não considerá-lo aposta certa para estar, no mínimo, na final olímpica.
A certeza, que se ampliou com o fato de Gabriel ser um surfista reconhecidamente superior a seu adversário na semifinal, virou convicção definitiva quando o brasileiro abriu a bateria com um complexo aéreo full rotation, aterrissando em zona crítica.
Neste momento, ninguém estava preparado para ver o brasileiro fora da final. Kanoa reagiu com uma nota na casa de 7, mas Gabriel ampliou a vantagem com outro full rotation, semelhante ao primeiro, em onda difícil de ser domada.
Mas, de alguma forma, sem que quase ninguém atentasse para isso, a porta ficou entreaberta para Kanoa. As duas notas do brasileiro saíram um pouco abaixo do esperado, o que evitava que o nipo-americano estivesse em combinação.
Igarashi estava vivo e tinha a seu favor dois detalhes importantes: a bateria chegava a seu último terço, quando as notas costumam ganhar maior carga dramática, e, claro, Kanoa surfava em casa, por uma medalha olímpica para seu país.
A oportunidade surgiu debaixo da prioridade do surfista de Maresias, numa onda intermediária, que não parecia propiciar nada monumental.
O aéreo de Kanoa, o mais debatido da história do Brasil, foi muito bem executado, com boa medida de altura e principalmente de extensão, além de aterrissagem perfeita, no flat da onda. Debaixo de circunstâncias dramáticas, numa bateria tão importante, é natural haver uma dúvida inicial sobre o alcance da nota.
Mas juízes servem para dissipar essa nuvem, para colocar a manobra, a onda e o conjunto das duas melhores notas em perspectiva. E isso não foi feito. A decisão, sem fazer qualquer juízo sobre a boa intenção dos juízes, foi absolutamente equivocada.
A semifinal marcou uma decisão inesperada de achatamento de nota dos aéreos full rotation de backside, que vinham dando aos dois brasileiros uma diferença clara em relação aos demais competidores. Não à toa, Italo surfou a final sem voar uma única vez e, na disputa do bronze, Gabriel foi novamente mal pontuado na manobra.
Numa comparação direta com o aéreo mais bem pontuado de Medina, o aéreo de Kanoa leva vantagem na extensão, mas perde em diversos outros atributos:
– Na rotação, uma vez que a rotação do brasileiro foi bem mais vertical, com a rabeta para cima, e sem a mão na borda; enquanto Kanoa usou a mão na borda e realizou uma rotação excessivamente horizontal.
– Na aterrissagem. Embora o nipo-americano tenha alcançado o flat de modo limpo e elegante, estava numa zona fraca de espuma, sem risco de ser atingido. Já o brasileiro aterrissou junto com a explosão da onda, e lidou com isso de modo perfeito.
– No tamanho e na pressão da onda. Que eu saiba, isso jamais saiu do critério.
Além de todas as questões circunstanciais já citadas e que, de minha perspectiva, contribuíram, sim, para a decisão dos juízes, o quadro de juízes sofreu com a mistura de profissionais da WSL e da ISA, com experiências e parâmetros distintos. Prova disso foi a discrepância encontrada entre juízes na onda que selou a vitória de Kanoa. A menor nota foi de 7,5, dada por um português, enquanto um australiano cravou 9,8 na onda – um abismo censurável de 2,3 pontos no julgamento da mesma manobra.
Owen e o pódio
Gabriel ainda sofreria novamente com o quadro de juízes, desta vez na disputa do bronze. A instantes do fim, encontrou um curto espaço para um novo full rotation de costas para a onda, muito bem executado, mas não lhe deram a pontuação necessária.
A aquela altura, o dano da derrota anterior já estava gerado. Achei até surpreendente o fato de Gabriel ter conseguido surfar contra o australiano pelo bronze.
Depois de confirmada a trágica ausência de medalha no peito do melhor surfista do mundo, fiquei especialmente feliz de pelo menos vê-la nas mãos de um grande surfista. Owen Wright é um dos poucos guardiões ativos da escola clássica do esporte, um cara que privilegia movimentos precisos, transições limpas e uso perfeito de borda. Um grande nome, representante de uma nação histórica para o esporte.
O pódio dos sonhos da WSL e da ISA estava formado: um representante do país que atualmente lidera o surfe no mundo; um representante do novo mercado do esporte e, por último, a nação que nos ensinou boa parte do que sabemos sobre o esporte.
Trestles vira uma panela de pressão
A inesperada e injusta derrota de Gabriel nos Jogos Olímpicos aumenta a pressão da WSL sobre as finais de Trestles, num ano de domínio absoluto do surfista brasileiro no ranking do WCT. O surfista tem chances reais de chegar à prova decisiva, contra outros quatro surfistas, com uma vantagem superior a 10 mil pontos (pontuação de uma vitória de etapa) sobre o vice-líder.
Uma derrota na Califórnia, diante de um ano tão especial para Gabriel, já seria algo trágico, pela injustiça do formato. Dependendo das circunstâncias, ou seja, se o mau resultado vier através de um julgamento controverso, o dano pode ser ainda maior.
Não duvidaria que ele cansasse definitivamente desse jogo. Gabriel é rico, está construindo uma nova família e, até agora, passou praticamente a vida inteira entre hotéis e saguões de aeroporto. Para se aposentar, não custa. O surfe sentiria falta.
Algum outro país voltará a vencer?
O domínio do Brasil só se amplia na elite do esporte. Em 2021, nenhum outra nacionalidade venceu entre os melhores do mundo. Já são cinco vitórias no WCT e o ouro olímpico. Será que alcançaremos a incrível marca de 100% no ano?