Foram três segundos.
O que significa esse quase piscar de olhos num universo de 30 minutos – ou largos 1.800 segundos – marcados no relógio? Por que a série veio exatamente naquele momento? O acaso, sim, é capaz de construir as mais saborosas histórias. Três segundos bastaram para que o pulso fortuito do oceano alcançasse Kelly Slater e o mundo se deleitasse com mais uma saga do maior surfista da história.
Kelly Slater estava em seu reino, Pipeline, a caminho de mais uma derrota precoce na carreira, desta vez nas oitavas de final, contra o afiado local Barron Mamiya. De repente, nos últimos dedos da regressiva, vem a melhor da série, com diversos bônus: o tubo de costas para a onda, o requinte de sair sem mão na borda e, no sorriso pós-baforada, a certeza de que algo mágico estava a caminho.
Kelly já venceu de todas as maneiras em seus 56 triunfos – mas há uma forma especialmente emblemática, que se repetiu dias atrás em Pipeline e, imagino, seja a sua preferida: é uma espécie de odisseia do herói, quando as conquistas épicas vão se sucedendo de modo dramático e, quando nos damos conta, a praia inteira está em transe, enlouquecida, torcendo cegamente pelo mocinho americano.
Na Pipeline de 2022, a odisseia começou quando faltavam três segundos para o fim de sua bateria de oitavas de final. Depois disso, desconfio que até Seth Moniz, o brilhante vice-campeão da primeira etapa do ano, estivesse torcendo pelo americano.
São 50 anos.
Não sou muito de textos contaminados de autorreferência. Mas me permito dizer que nasci no mesmo ano do aniversariante deste mês, o quase cinquentão Kelly Slater. Embora eu ainda surfe com alguma frequência e esteja longe de uma cultura sedentária, lido diariamente com toda sorte de dores e limitações impostas pela idade.
Das profundezas das óbvias fragilidades físicas de um cara normal de 1972, ver um surfista cinquentenário dominador num dia massacrante de Pipeline, com aparente vantagem física sobre a maioria de seus adversários com metade de sua idade (ou menos) é algo verdadeiramente inexplicável.
Ele ganhou nas remadas de disputa de onda de Miguel Pupo, na primeira onda que acabou rendendo uma interferência do brasileiro, e de Seth Moniz, que foi mais cauteloso e puxou o bico antes que os juízes marcassem nova penalidade.
1992 dias sem vitória; primeira vez em Pipe em 1992.
A coincidência é para os afeitos à numerologia: Kelly conquistou novamente Pipeline exatos 1992 dias depois de sua última vitória, no Taiti, no longínquo 23 de agosto de 2016. 1992 também é o ano em que, três décadas atrás, o americano conquistava a prova pela primeira de oito vezes ao longo da carreira.
Mas, nessa salada de números, o que importa mesmo é a vontade do surfista de permanecer no tour depois de um jejum de vitórias tão longo, mesmo tendo sido coroado herói do ano por 11 vezes, no inexorável caminho dos 50 anos e sem qualquer sinal evidente de que poderia voltar a vencer.
O que fez Kelly resistir? O sonho das Olimpíadas? A lacuna aberta da mudança de formato, com a introdução da decisão de Trestles? Sei não.
Mick Fanning deixou o tour quando os Jogos de Tóquio já estavam marcados; Julian Wilson abandonou a disputa mesmo sabendo que, apesar de sua má fase técnica, era um surfista capaz de estar entre os cinco melhores do mundo numa decisão.
Kelly resistiu porque não sabe como desistir. “Apenas respire”, ele repetia para si mesmo durante a final, em momentos de dúvida.
Foram segundos, minutos, horas, dias, anos e décadas a desafiar o americano. O tempo é um peso-pesado invencível, sabemos, mas, pelo menos ali, em Pipeline, no último dia 5, o único real adversário de Kelly Slater tombou nocauteado.
Sobre as disputas
Desdobremos o evento. Kelly ofereceu uma exibição completa: excelência para Pipeline, excelência para Backdoor, leitura de onda suprema, domínio absoluto da bola de espuma e técnica rara para ficar no tubo depois da baforada. Mas a arena mais importante do North Shore de Oahu foi palco de outras grandes apresentações.
A começar por Seth Moniz, o filho de Tony e do South Shore, que parou apenas para o campeão, na final. Seth venceu o favorito John John Florence nas quartas de final com o mais impressionante drope daquele evento em muitos anos, numa combinação de coragem, técnica, explosão física e sobretudo técnica. Todo o resto vira detalhe. Agora, quando perguntarem quem é Seth, ele pode simplesmente mostrar esse vídeo.
O garoto havaiano sai da confortável posição de talento do pelotão intermediário para uma surpreendente segunda colocação na corrida de 2022. E ainda não acabou: ele se sente à vontade em Sunset e em outras direitas do tour, vai surfar bem em Teahupoo e G-Land e domina o repertório de manobras aéreas mais progressivas.
Segurem a surpresa. Seth ainda pode brigar por Trestles.
A tempestade de Pindorama, sem sua principal cumulonimbus, Gabriel Medina, mostrou potência e consistência com outras nuvens. Miguel Pupo e Caio Ibelli fizeram semifinal, e os estreantes Samuel Pupo e João Chianca brilharam em fases anteriores – Samuca parou nas quartas e Chumbinho nas oitavas.
Miguel, com muitos anos de North Shore, desenhou trilhos limpos nos canudos por vezes curtos que abriam para Pipeline. Mostrou, além de técnica, consistência competitiva, o que lhe faltava em anos anteriores.
Contra Kelly, na semifinal, embora tenha sido penalizado com uma interferência na primeira disputa de ondas, competiu da maneira certa, sem dar espaço emocional ao adversário. Quase parou o surfista destinado a vencer o evento, mesmo com a metade de uma de suas ondas do somatório.
O americano, desde que vencera Mamiya, vinha passeando na competição sem ser incomodado ou confrontado e, na final, seguiu da mesma maneira, com seu jogo mental que faz o oponente entrar derrotado na água. O ponto fora da curva foi a semifinal – o americano venceu mas saiu da água incomodado, e, por mais que tenha chiado, não há nada de errado nisso. Competição não é confortável, e ele sabe disso.
Caio é cascudo. Ponto. O cara estava fora da elite, vendo tudo de longe, quando seu rival dos tempos de júnior, o hoje celebrado tricampeão mundial Gabriel Medina, anunciou que não participaria das duas etapas havaianas. Caio entrou por uma portinhola para se estabelecer como protagonista em Pipeline.
Ele eliminou um dos candidatos ao top 5 no fim do ano e reconhecidamente bom surfista de tubos, o americano Griffin Colapinto, se jogou em bombas assustadoras e entubou com as mãos para o alto algumas vezes.
Aliás, sobre isso, um breve comentário crítico: é nítida a intimidade do surfista de São Paulo com canudos mais pesados, mas também é notável o espaço de evolução que ele tem para tornar seus tubos mais profundos. Talvez seja o caso de esquecer um pouco os maneirismos de estilo, como mãos para o alto e a olhada para a boca do tubo depois da baforada, e se concentrar apenas no aprimoramento de sua rara técnica de entubar. Pelo talento e disposição, Caio tem caixa para ir muito mais longe.
Por enquanto, o que importa é que Miguel e Caio estão em terceiro na corrida de 2022, muito bem posicionados para o resto da temporada. Caio, por sua condição de convidado, tem a obrigação de mais um excelente resultado em Sunset. Avante.
O garoto Samuca viveu dias mágicos em Pipeline. Praticamente um debutante nos tubos mais famosos do mundo, ele ignorou os holofotes para vencer o sul-africano Jordy Smith. Parou apenas diante de Caio, numa bateria com poucas oportunidades.
A vitória sobre Jordy e a forma com a qual surfou em dias potentes de Pipeline são um alento e tanto ao torcedor que temia pela qualidade de seu surfe em ondas de consequência. Ainda é obviamente cedo para qualquer prognóstico, mas os fatos, como apresentados até agora, sugerem que Samuel Pupo, sim, será um protagonista da elite. Surfou bem sob pressão, adaptou-se a condições desconhecidas e, fora de Pipe, tem vasto cardápio técnico de manobras progressivas.
João Chumbinho fez a final antecipada com John John Florence. A controversa bateria de oitavas de final de João contra João João, com resultado apertado para o havaiano, talvez tenha sido o segundo grande momento do evento, atrás apenas da escalada de Kelly. Um desprendido e talentoso Chumbinho, mesmo diante do melhor surfista de Pipeline, buscou uma nota 10 perfeita e só não ganhou porque estava diante do príncipe mais querido da WSL. De todo modo, por tudo o que fez durante todo o evento, coloca-se desde já na briga por holofotes já em 2022.
Antes de Pipe, o Brasil esteve nas finais das últimas 13 etapas disputadas na elite, numa dominação raramente vista no esporte. Depois de Margaret River, em 2019, Gabriel Medina, Italo Ferreira, Filipe Toledo e Deivid Silva ocuparam lugares em decisões sucessivas. Apesar da quebra da série histórica, o saldo foi positivo para a tempestade, com a afirmação de novos nomes, como Samuel e Chianca, e a recuperação de bons surfistas que estavam escondidos debaixo de maus resultados, como Miguel e Caio.
Por fim, na corrida da temporada, o impossível aconteceu: um surfista de 50 anos lidera o ranking mundial. Convém olhar com atenção para o incrível histórico de vitórias do 11 vezes campeão mundial em Trestles – desde sua primeira vitória como profissional, no circuito americano – apesar da desvantagem nas manobras aéreas.
De volta ao debate sobre o duelo do maior surfista da história com o seu adversário, o tempo, nunca será tarde demais para se vacinar (se é que ele já não está vacinado) e competir na Europa e na Austrália para ampliar a vantagem da temporada.
Por enquanto, que venha Sunset.