Um título conquistado de forma tão imperativa por Gabriel Medina – cinco finais em sete provas, quase 12 mil pontos de vantagem sobre o vice-líder e vitória nas duas baterias do WSL Finals – tem muitas leituras.
A primeira delas, óbvia, é a de que o tricampeonato (14-18-21) leva o surfista a um salão nobre na história do esporte, reservado a poucos e gigantes. Gabriel já tinha se dado conta disso – repetia, em todas as entrevistas depois do título, os nomes de Mick Fanning, de Tom Curren e até do piloto de F1 Ayrton Senna.
Há outra constatação bastante objetiva: ele tornou realidade, para quem acompanha o esporte faz tempo, a um dia ingênua fantasia de ver um surfista brasileiro se tornar o maior base canhota da história, à frente de mitos como Tom Carroll, Damien Hardman, Barton Lynch e Mark Occhilupo. Gabriel é a redenção goofy do Brasil e do mundo.
O título carrega também a consolidação de uma certeza particular, que por enquanto não é unânime: o novo tricampeão é muito mais que o melhor surfista do mundo em atividade. Pelo modo como domina diferentes ondas, pela assombrosa fúria competitiva, pela forma como disputou os títulos nas últimas sete temporadas – e, por vezes, pelas circunstâncias de suas derrotas – Gabriel caminha a passos firmes para se tornar o surfista que mais impactou o esporte depois de Kelly Slater.
Poucos arriscam a comparação, uns pela liturgia diante do inalcançável feito do 11 vezes campeão, outros pela rejeição à ideia de um brasileiro neste lugar. O gigante Mick Fanning, um raro campeão a conciliar larga generosidade e espírito vencedor, é um deles: já elevou o ex-companheiro de equipe ao olimpo algumas vezes.
A posição na história não significa invencibilidade. Gabriel tem a companhia de outros fenômenos, que combinam talento e capacidade de vencer em medidas bastante semelhantes às do tricampeão. A saber, Filipe Toledo, o vice-campeão do mundo, e Italo Ferreira, o terceiro colocado no ano e medalha de ouro na primeira competição olímpica de surfe. Em outra caixa, também cheia de potência, está o bicampeão John John Florence, surfista de talento mais “natural” a passar pelo planeta, um cara que se distancia dos adversários à medida que o lip engrossa.
JJ pode ocupar esse espaço, mas precisa vencer as contusões e, depois disso, ampliar a capacidade em ondas mais ordinárias. Não sei, sinceramente, se ele quer isso.
Outra leitura do tri é um jogo de adivinhação: qual será o próximo sonho de Gabriel? O desejo dos três títulos, coisa antiga, acabou eternizado na última frase do livro que conta a história da conquista de 2014.
Agora, tricampeão, realizado profissionalmente, recém-casado e possivelmente perto de anunciar a paternidade, o mundo do surfe especula o futuro do campeão.
Muitos apostam na busca pelo pentacampeonato, de modo a consolidar, desta vez com números, a posição de surfista abaixo apenas de Kelly Slater. Mas há quem faça uma aposta mais singela: ele só deseja ficar em paz. Afinal, o ano de Gabriel acabou se revelando uma odisseia bem mais dura e acidentada do que sugeriram suas vitórias.
Três fatias de Brasil
O domínio brasileiro consolidou um cenário visto pela primeira vez na decisão de Pipeline em 2019: a torcida dividida. O WSL Finals – que este ano, para sorte da entidade, teve os mesmos vencedores que os da temporada – nos mostrou que, pelo menos no masculino, será rotina ver finais disputadas por brasileiros. A meu ver, a única exceção, hoje, capaz de furar essa bolha, é JJ, caso esteja em plena forma.
Isso gera uma divisão do país em torcidas – nesta terça-feira, por exemplo, houve quem lamentasse muito a derrota de Filipe Toledo e quem estivesse torcendo para Italo contra todos os outros. A torcida brasileira foi fracionada, e vai seguir assim.
A disputa esquenta também dentro d’água. Na semifinal de Trestles, Italo, logo depois de concluir uma boa onda que o recolocava na disputa com o favorito da torcida, Filipe, fez um sinal de silêncio para a praia. E, na piscina de ondas, no meio da temporada, Gabriel percebeu a torcida declarada de alguns compatriotas presentes na elite também pelo ubatubense residente de San Clemente.
Em Trestles, o surfe perfeito encontra o surfe mortal
Filipe Toledo é um surfista supremo. Na decisão de Trestles, teve uma grande janela de oportunidade para o primeiro título da carreira. Visivelmente superior, combinava manobras de borda enterrada e aéreos de rotação com uma mistura de elegância e potência difícil de ser alcançada por algum adversário. As transições entre manobras eram limpas; o tempo de onda, perfeito. Variava movimentos.
Mas, na final, havia um rival mordido pelo regulamento do ano e, ao mesmo tempo, capaz de virar o jogo com algo extraordinário. E, assim, com um aéreo gigante e um backflip, o surfista de Maresias conseguiu jogar Filipe nas cordas, com a obrigação de acertar o golpe mortal para virar o jogo. O ubatubense não conseguiu.
Em 2022, Filipe terá nova chance de brigar pelo título, num ano repleto de etapas em que já venceu e é sabidamente especialista, como Peniche, Bells, Margaret River, Trestles (de novo), Saquarema e Jeffreys Bay. Diria, a julgar pela temperatura atual, que ele é presença praticamente certa, de novo, na final.
Italo Ferreira treinou muito para Trestles, mas não foi capaz, com as condições de mar da semifinal contra Filipe Toledo, de encontrar uma solução que pudesse romper a diferença existente entre seu surfe e o do ubatubense no pico californiano. O terceiro lugar na final, o segundo lugar na temporada e o ouro olímpico são os resultados mais importantes de mais um ano mágico para o potiguar.
Conner Coffin deu algum trabalho para Filipe na segunda bateria do masculino, enquanto Morgan Cibilic parecia grato apenas por estar presente naquele lugar. O americano e o australiano cumpriram papéis coadjuvantes, aproveitaram os minutos de fama e, se não houver surpresas, não estarão mais na disputa por títulos futuros.
Na final feminina, Carissa Moore, depois de um susto inicial, conseguiu unificar o título da decisão e da temporada. A justiça foi feita. Tati Weston-Webb fez uma excelente temporada, e o vice para o Brasil, diante da evidente superioridade da havaiana no tour, é um grande vitória. Tati chega à temporada de 2022 em outro patamar.
Antes do fim, uma dúvida: depois de críticas e da manutenção dos resultados da temporada, resta saber se a WSL vai realmente manter, como indica o calendário, a etapa decisiva também em 2022. E, se mantiver, onde vai montar o tal circo.
Ainda este ano, é hora de acompanhar a briga de foices dos eventos Challenger, que serão importantes para definir os demais classificados para 2022. A janela da primeira prova, o tradicional US Open, em Huntington Beach, se abre agora, no dia 20.
Esperaremos a próxima sirene tocar, sempre.