Leitura de Onda

Ponto de mutação

Tulio Brandão faz raio-x do Pipe Masters e destaca evolução das garotas com vitória de Caity Simmers. Ele também analisa participação dos brasileiros e lamenta desistência de Flipe Toledo do restante do tour.

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Caitlin Simmers bem encaixada para vencer o Pipe Pro 2024.

Foi um Pipe diferente, por certo. Sem brasileiros desde as quartas-de-final. Sem Kelly, sem Jack e sem Gabriel, três dos quatro últimos vencedores, no dia decisivo. E, a despeito da belíssima jornada do garoto de Haleiwa Barron Mamiya, que confirma definitivamente a sua posição de fora-de-série naquela arena, pela primeira vez na história o protagonismo do evento ficou com as mulheres.

O Pipe Pro 2024 feminino, vencido pelo fenômeno de Oceanside Caitlin Simmers, ficará marcado como um desses pontos de mutação na história da evolução do esporte, como um marco de ruptura entre o passado e o futuro.

O ataque de Caity, da vice Molly Picklum e de Bettylou Johnson, entre outras, associado à capacidade da local Moana Jones, tem semelhanças explícitas com o “Bustin Down The Door” dos anos 70, liderado por figuras como Wayne Rabbit Bartholomew, Shaun Tomson e Mark Richards. A diferença é que, em 2024, não há o sentido de dominação do arquipélago, e sim a conquista absoluta da onda mais perigosa do mundo, pouco importa a nacionalidade.

Se, em 1975, Rabbit perdeu dentes pela ousadia do texto publicado na Surfer, em que relatava a tal dominação de australianos e sul-africanos sobre havaianos, no evento de 2024, as mulheres, mais inteligentes e precavidas, todas de capacete, passaram ilesas pelos riscos evidentes do fundo de Pipeline.

Já que estamos falando de socos e riscos de acidentes sobre corais pontudos, a performance de 2024 no feminino do Pipe Pro é um tapa na cara definitivo, sem luva de pelica, naqueles que condenaram um dia a realização de eventos para mulheres em Pipeline com o argumento de que o espetáculo era infame e arriscado.

Uma das histórias mais fascinantes dos últimos anos na elite talvez tenha sido o caminho evolutivo das meninas em ondas de consequência. A WSL acertou ao insistir.

Se pode haver algum acidente futuro? Claro, sempre pode. Assim é o surfe, tanto no masculino quanto no feminino. Basta lembrar de João Chianca, ainda no estaleiro.

Havaiano Barron Mamiya supera John Florence para vencer o Pipe Pro 2024.

De volta ao evento masculino, Mamiya finalmente prevaleceu na onda em que sempre foi considerado um especialista. Em 2022, quando furou o bloqueio da divisão de acesso como wildcard em Pipeline, foi eliminado nos segundos finais da disputa das oitavas-de-final por Kelly Slater, que acabaria vencendo a prova. No evento seguinte, em Sunset, novamente convidado, saiu com uma inesperada conquista.

Mamiya, agora com dois títulos em casa, apresenta-se como um surfista que sabe tirar todo o suco possível do conhecimento das ondas de Oahu.

Essa intimidade serviu, sobretudo, para buscar soluções na enorme variedade de condições de mar em Pipeline ao longo do evento. O garoto de Haleiwa achou pérolas em todas as fases – desde o primeiro dia, na não eliminatória, em tubos grossos e baforadas incríveis, até a decisão, um pouco menor e mais afeita à Backdoor (embora as duas notas máximas do evento, de Molly e Mamiya, tenham saído de Pipe). Em todas as baterias, fez notas excelentes ou superiores a 7 pontos.

A adaptação mais fina do local aos diferentes desafios impostos por Pipe em 2024 ajuda a explicar também o fato de três dos quatro finalistas serem havaianos.

O vice da etapa, John John Florence, meu surfista favorito no evento, passeou sem preocupações por todas as condições. Ele fazia prevalecer o fato de estar no quintal de casa. Na final, perdeu precisando de uma nota possível, mas foi traído pelas condições do mar, que se deterioraram durante a bateria.

Fico feliz ao ver JJ de novo nas cabeças. Que a infâmia de 2023, quando os dois melhores surfistas do mundo, ele e Gabriel, não conseguiram sequer chegar ao Finals, não se repita. Ver surfistas completos na onda divertida, mas ordinária, de San Clemente, ampliará a pressão sobre a WSL para mudar o local da decisão no futuro.

Ficaram nas semifinais duas surpresas do evento, Connor O’Leary e Ian Gentil, surfistas que, se não foram brilhantes, acharam soluções competitivas mesmo nas fases com ondas mais difíceis. O’Leary, goofy dono de uma linha fina, apropriou-se de seu bom encaixe aos tubos de Pipe. E Gentil, um regular com base firme, encontrou suas melhores saídas em Backdoor. Entre os quintos colocados, destaques para Leo Fioravanti e Imaikalani deVault, com bons momentos na prova. Os dois surfistas, em nítida evolução, são apostas de boas surpresas na temporada.

Luana Silva, ao lado de Tati Weston-Webb, representaram o Brasil com o quinto lugar no Pipe Pro 2024.

A tempestade brasileira vira um sistema de alta pressão

Fora os dois quintos lugares no feminino, de Luana Silva e Tati Weston-Webb, e um nono isolado de Yago Dora no masculino, a tempestade brasileira estreou sem qualquer potência na temporada de 2024.

Gabriel Medina fez sua pior bateria da história; Caio Ibelli, mesmo surfando bem, foi um dos quatro eliminados do round 2; Filipe Toledo não voltou para a água na respescagem; e Italo, mesmo com uma onda magnífica, perdeu no round 3.

É cedo para falar sobre o fim da tempestade brasileira. Mas, em Pipe, o que se viu foi o predomínio de um literal sistema de alta pressão, desses que dominam a atmosfera e impedem a formação de nuvens mais grossas. O tempo clareou para os outros.

Luana e Tati fizeram uma prova tática, e, embora a chave seja menor, o resultado, dois quintos lugares, a se considerar a explosão de evolução vista na prova, foi satisfatório. Mas há um sinal de alerta claro de que as duas, por enquanto, não fazem parte dessa revolução. Terão que lutar muito para tentar entrar nessa locomotiva do futuro.

Yago teve um ótimo momento na prova, ao vencer o bom estreante Jacob Wilcox. O goofy australiano, aliás, vale a atenção durante a temporada. Na fase seguinte, em condições bastante desafiadoras, contra Mamiya, o brasileiro foi eliminado e acabou como mais um a fazer um somatório inferior a 2 pontos durante o evento.

Aliás, é importante dizer, ao longo do Pipe Pro, em nada menos que 17 ocasiões, surfistas fizeram médias inferiores a 6 pontos na soma das duas melhores ondas. Na maior parte da prova, Pipe não estava amigável.

Mesmo Gabriel Medina, normalmente dominante em condições difíceis, foi achatado pelos tubos e finalizou a bateria com risíveis 2,73 pontos, talvez a sua pior média não apenas neste evento, mas em sua história na elite.

Antes do início da temporada, pelos reports locais e pelo filtro das mídias sociais, o tricampeão parecia em plena forma, maduro e pronto para buscar o tetracampeonato. Para mim, a derrota não o retira desse lugar. Mas, faz tempo, sinto que Gabriel precisa reencontrar o seu espaço mágico, imprevisível, aquela espiral vencedora.

Com a derrota prematura na onda em que é dominante, a etapa de Sunset, onde ele não tem histórico vencedor, ganha um peso maior. Mais que nunca, ele precisa buscar vencer contra todos os prognósticos, como já aconteceu em J-Bay e Margaret River.

A eliminação precoce de Caio foi especialmente dolorosa. O paulista continua sendo um dos grandes nomes de Pipe, mas se viu – um tanto por falta de sorte e um pouco por erros táticos – como um dos derrotados da repescagem. Caio precisa ajustar a conhecida técnica nas ondas do arquipélago a um rigor tático um pouco maior.

Outra derrota a se lamentar foi a de Italo Ferreira. O campeão do mundo e de Pipe de 2019, aparentemente mais feliz, parece ter retomado o surfe energético e surpreendente de cinco anos atrás. No round 3, fez um tubo milagroso para Backdoor, mal avaliado pelos juízes, mas pecou ao não buscar uma segunda onda melhor. Deixou a janela aberta para seu freguês Jordy Smith reduzir um pouco a desvantagem no confronto direto. Bola pra frente. Que siga com a energia vencedora.

Filipe Toledo abandona o Pipe Pro e é massacrado pelas redes sociais.

A intoxicação é das mídias sociais

A polêmica envolvendo Filipe Toledo escapou da esfera esportiva. Ainda que já tenha sido exaustivamente debatida, não vou me furtar a me posicionar. É preciso separar em quatro o debate: o problema de saúde do atleta, o desconforto dele com a onda de Pipeline, a reação nas mídias sociais e o anúncio, neste domingo, de abandono da temporada.

Primeiro, sobre a saúde do surfista. As condições estavam mais grossas, mas não extremas a ponto de impedir um bicampeão de entrar na água. A despeito dos problemas de Filipe em ondas de consequência, não há qualquer caminho justo para duvidar que ele tenha tido, de fato, um problema. E julgar se isso era o suficiente para fazê-lo desistir ou não da prova é irrelevante. Só o que importa é que ele não estava confortável e, por isso, não competiu. Respeitar essa decisão é básico.

Desde os reis polinésios, o surfe sempre teve como valores importantes a bravura e a coragem, o que faz com que os problemas de Filipe em ondas de consequência ganhem uma dimensão maior. Tudo bem se, para você, o bicampeão é um surfista menor por isso. Haverá sempre, por outro lado, quem se identifique com os riscos que ele corre ao buscar manobras de alto impacto. Na defesa dos rankings, Filipe não é um surfista um milímetro menor por isso: venceu nos dois últimos anos não apenas as finais de Trestles, mas os dois circuitos inteiros, com diversos tipos de ondas.

Por outro lado, já expressei diversas vezes minha visão crítica sobre a falta de reação de Filipe ao desconforto com um tipo de onda bastante importante para o surfe de alto nível – tubos grossos em fundos rasos de coral. E, sempre, e, agora, mais uma vez, recomendo uma atenção especial do time dele à questão. Todos sabemos que é possível, sim, identificar as fragilidades, cuidar bem delas e avançar para uma imersão realmente profunda nessas ondas. Esta, sim, seria uma crítica construtiva e justa.

Já a horda raivosa da mídia social e de uma parte da mídia, que se aproveita de um fato para tentar destruir o surfista, é indefensável. Se for uma escolha de Filipe não buscar uma solução para suas lacunas, é obrigatório respeitá-lo incondicionalmente como surfista e como ser humano. O que vi nas redes sociais logo depois do abandono da bateria foi uma expressão de como a maior intoxicação, na verdade, não é de Filipe, e sim dos haters de sofá, covardes, silenciosos e medrosos, que agridem porque a violência é a única forma de esconderem as suas próprias fragilidades.

Filipe anuncia desistência da temporada de 2024

Neste domingo, passada a polêmica, Filipe foi às mídias sociais para anunciar que não mais competirá na temporada WCT 2024. Vai se dedicar, segundo relatou, aos Jogos Olímpicos e a projetos pessoais. Nos stories, informou que a decisão nada teve a ver com o ataque que sofreu nas mídias sociais ou com o resultado de Pipeline, e que a decisão estava mais relacionada à necessidade de descansar e cuidar da família.

Ricardo Toledo, pai de Filipe, informou que o bicampeão estará no ISA Games de Porto Rico, para ajudar o time Brasil a conquistar a terceira vaga olímpica. E deixou claro: “Ele vai se dedicar muito às olimpíadas”, dando um sinal de que talvez o ano sabático esteja também relacionado ao seu desejo de treinar para vencer em Teahupoo.

De todo modo, do lado de cá, como admirador do talento do bicampeão, lamento em muitos sentidos a ausência. Nesta temporada, perdemos o surfista que nos últimos anos elevou o surfe que combina carving e manobras progressivas a outro nível, e que vinha balizando o surfe de excelência, com as duas escolas combinadas, na elite.

O Brasil perde, ainda, o maior dos candidatos ao título de 2024, na temporada que possivelmente será a última com decisão em Trestles, pico em que ele tem larga vantagem sobre os demais adversários.

A decisão abre uma importante janela para novos candidatos. Se o Brasil quiser manter a dominância de títulos mundiais, Gabriel, Italo e Yago, meus três novos favoritos do país para disputar vaga nas finais, terão que suar muito a camisa. A decisão abriu uma avenida motivacional para Ethan Ewing e Griffin Colapinto.

No mais, é respeitar a decisão de Filipe, desejar que ele tenha um ano feliz com a família, torcer para que tenha tempo disponível para projetos pessoais e treinos para as Olimpíadas e, ainda, aguardar a sua volta na temporada de 2025, como wildcard.

De volta a 2024, agora é esperar para ver se a tempestade reaparecerá em Sunset.