Na semana de início da esperada temporada de 2018, com sirene da primeira bateria prevista para tocar a partir do dia 11, publico a quarta e última parte da série “Leitura do ano”, com a análise dos seis melhores surfistas do mundo. As estrelas do circo.
O sexteto é forte. Do sexto ao primeiro, um desfile de notáveis: Owen Wright, Matt Wilkinson, Jordy Smith, Julian Wilson, Gabriel Medina e John John Florence.
A lista restrita dos seis melhores revela um claro câmbio de gerações na elite do esporte. O mais velho da turma é Jordy, que mês passado completou 30 anos; o mais novo, Gabriel, com 24 anos. Se abrirmos a lista completa do CT, Griffin Colapinto, promissor estreante americano, aparece como o caçula, na casa dos 19. Outro talento, o brasileiro Yago Dora, vem pouco depois, com 21. O mais novo na lista dos favoritos ao título em 2018, Filipe Toledo, tem apenas 22 anos.
A velha guarda, cansada mas ainda viva, anuncia aposentadoria, como Mick e Bede, ou resiste, num fôlego final, em posições intermediárias, como Parko. O ancião da elite, Kelly Slater, aos 46, é a única dúvida, já que se machucou cedo na temporada passada e entrou em vaga de contundido da WSL. Não sei do que ele seria capaz se estivesse competido ao longo do ano, mas possivelmente não estaria nesta lista restrita.
Vamos ao grupo:
Owen Wright
“Os médicos esperavam para ver, em diferentes eventos, quando eu ‘quebraria’, ou quando eles teriam que me tirar (…). (A ideia) talvez não fosse surfar todo o ano, era apenas me recuperar na parte atlética, na vida, tudo. (…) Eu terminei em sexto.”
Estar na elite, em forma, em 2018, é um presente para Owen Wright. Surfista completo, de linha refinada e clássica, ele surpreendeu até os médicos em 2017, no primeiro ano de volta ao circuito mundial após o drama que quase encerrou a sua carreira. O depoimento acima, dado ao canal de YouTube da YinYang Needling School, revela muito dessa expectativa reduzida em torno de seu retorno.
Depois de um sexto num ano tão sensível, o que esperar de um surfista imprevisível como Owen? O brilho, como o da vitória em Snapper? Ou a opacidade do do resto de 2017, quando não passou das quartas em nenhum evento?
Num ano especialmente afeito a quem surfa bem direitas, Owen pode crescer com seu backside completo – ainda hoje, o melhor entre os atletas de elite, com poucos movimentos, linha limpa, manobras precisas, fortes e no tempo certo. Uma escola. Até Medina já admitiu se inspirar no surfe do australiano de costas para a onda.
A saída de Fiji naturalmente lhe faz falta, já que foi naquela arena, em 2015, que ele fez duas baterias perfeitas, de 20 pontos, em poderosos tubos. Mas Owen brilha também em cavernas para a direita, como certa vez em “The Box”, no mesmo ano, quando fez mais uma nota dez num pico praticamente restrito a regulares.
Owen é um surfista de verdade, daqueles que sempre aparecem nas condições mais extremas. Falta-lhe algo em condições medíocres, o que acontece mesmo no circuito dos sonhos. Ele chegou a disputar título com Kelly em 2011, quando terminou a temporada em terceiro do mundo. Era, a esta época, apontado como futuro vencedor de canecos. Não aconteceu desde então, mas o australiano, aos 28, ainda tem tempo.
Pontos fortes: Excelência no backside, tuberider, brilho em condições extremas
Desafios: Ondas medíocres, constância.
Matt Wilkinson
“Se ‘Micro’ (Glenn Hall, seu técnico) não estivesse aqui, eu estaria jogando golfe.”
A pérola saiu de uma entrevista de Wilko à Stab, há um ano. O divertido australiano de Copacabana, consciente de sua histórica fragilidade competitiva, adicionou em 2016 a peça que faltava ao seu jogo: o cerebral técnico Glenn ‘Micro’ Hall. No primeiro ano ao lado do enxadrista, liderou por várias etapas; no segundo, também alcançou a liderança, depois de J-Bay, no marco de meio de temporada.
Passadas 22 provas do ‘novo’ Wilko, em 2016 e 2017, e duas temporadas finalizando como top 5 do mundo, está claro que é um surfista capaz de vencer em mais de uma onda e que, sem apagões que ainda lhe assolam, apesar do trabalho de seu técnico, ele pode se manter no grupo restrito dos melhores surfistas do mundo.
De costas para a onda, surfa de modo vertical, num base x lip sólido e muito efetivo, que lhe rendeu duas finais em Snapper Rocks (vitória em 2016 e vice em 2017) e uma vitória em Bells (2016).
Em ondas de tubo, também surfa convincentemente, sempre atrás de pontos suficientes para derrotar seu oponente. Foi assim em Fiji, onde também fez duas finais (vice em 2016 e vitória em 2017).
Em 2018, a perna australiana pode selar o seu futuro. Se for bem, tende a brigar pelos postos que ocupou nas últimas duas temporadas. Se tropeçar e não fizer um bom resultado, corre o risco de ser inapelavelmente atropelado pela nova geração com seed baixo, que vem especialmente sedenta este ano.
Pontos fortes: base x lip backside, verticalidade, tubos
Desafios: manobras progressivas, apagões
Jordy Smith
“Eu ainda não atingi todos os meus objetivos. Continuarei na estrada para alcançá-los. Não há como reduzir o ritmo neste momento, e você apenas tem que provar aos caras que é mais forte(*). Continuar se esforçando o máximo que você puder.”
O depoimento, dado dias atrás em boa entrevista a Craig Jarvis no site Magic Sea Weed, revela um surfista inconformado com a eterna posição de quase campeão. Anos atrás, ele chegou, ao lado do americano Dane Reynolds, na condição de estrela da geração. Desde o início, foi apontado como provável campeão do mundo, mas o tempo passou e, hoje, aos 30, coleciona dois vices (2010, para Kelly, e 2016, para John John Florence) e segue na busca da temporada perfeita.
Tudo levava a crer que a mágica aconteceria em 2017, quando liderou durante parte importante da temporada. Depois de um vice em Trestles, de onde saiu líder, nas últimas três etapas do ano Jordy apresentou sinais de inconstância – com três décimos-terceiros seguidos – e se distanciou do título.
Talento, força, carving, fluidez, inovação. Jordy é um super surfista, talvez o meu preferido, em determinados tipos de onda. Seu jogo de borda é, de longe, o mais poderoso do mundo, o que torna sua linha muito bonita – especialmente para quem gosta de surfe na onda, embora o sul-africano tenha também repertório de aéreos.
Ele tem uma lacuna em ondas tubulares, como Pipeline e Teahupoo. Não que não saiba surfá-las, mas claramente não exibe a mesma contundência que a de outras arenas. Nestes picos, coleciona uma incrível quantidade de décimos terceiros e vigésimos quintos, quase sempre descartes, e uma ou outra vez nas quartas-de-final.
Pouco, para um provável campeão.
Em 2018, com o novo desenho de etapas, Jordy continua forte. A ausência de Fiji lhe beneficia, mas a saída de Trestles será sentida. Se extrair o melhor das ondas que lhe beneficiam, disputará o título mundial mais uma vez. Resta saber, ao fim da temporada, quando a pressão se elevar, se ele terá fôlego para aguentar a fúria competitiva de seus principais adversários. Torço para vê-lo vivo.
Pontos fortes: Potência, carving de excelência, linha
Desafios: constância em momentos decisivos, ondas tubulares
*tradução para a gíria “throw down the hammer”
Julian Wilson
“Sei que posso reunir o que é necessário num ano para vencer um título mundial e sinto que estou me aproximando disso. Sinto que estou no topo de minha carreira, e eu realmente vou dar tudo de mim para isso.”
Julian está na fila faz tempo. Não será surpresa se descobrirmos, em 2018, que a vez dele chegou. O australiano tem o pacote completo: tubo, aéreos, carving. Compete com energia suficiente para ser algoz de super competidores, como Gabriel. A nota de ressalva – se é que há uma nota – é uma opção, em algumas circunstâncias, por abordagens conservadoras, como se esperasse notas de juízes benevolentes.
A final com o brasileiro em Teahupoo, eleita dias atrás pela WSL a bateria do ano, no entanto, é uma mostra de sua capacidade técnica, tática e competitiva.
Seu comportamento por vezes irrita – a reclamação ostensiva na disputa de onda com Gabriel, no Taiti, com as mãos para o ar, como se ele fosse uma pobre vítima do Dick Vigarista, foi infame. E só não rendeu comentários posteriores – possivelmente infelizes – porque ele virou a bateria em cima do brasileiro.
Mas não consigo fazer um mau juízo de valor de um cara que, diante de um aparente ataque de tubarão a um adversário, rema desesperadamente para salvar o colega. Isso não é fácil de fazer – Mick disse recentemente ser eternamente grato a Julian por isso. Ou de um cara que manda produzir uma bermuda rosa com desenho feito pela mãe, que teve câncer de mama, para render fundos a organizações que tratam a doença.
Ele estreará a bermuda provavelmente neste fim de semana em Snapper Rocks, na etapa de abertura do CT 2018. Restam dúvidas sobre seu estado físico, já que lesionou o ombro direito no início do ano, quando andava de mountain bike. De todo modo, está listado na quarta bateria do dia, contra Joan Duru e Ian Gouveia.
A história dos títulos mundiais recentes é quase sempre precedida por um drama de recuperação de lesões. Foi assim com Gabriel, foi assim com Adriano de Souza, e num certo sentido foi assim com John John, que, em excelente texto escrito para o site “The Player’s Tribune”, revelou que uma lesão séria nas costas, que o deixou de molho por quatro meses, modificou completamente a sua mentalidade para a competição.
Não duvide dessa construção também com Julian Wilson.
Pontos fortes: Borda, aéreo, tubos, linha clássica
Desafios: constância para o título
Gabriel Medina
“Eu quero ser tricampeão mundial.”
O depoimento, que encerra o livro sobre a trajetória até o título de 2014, foi repetido ao fim da temporada do ano passado. A frase revela a ambição de um surfista que hoje tem a exata noção de seu potencial nos próximos anos. A conta de três títulos tem uma dupla função: elevar o sarrafo além da medida esperada (Gabriel incorporou a cultura competitiva de Charles desde garoto) e mostrar ao mundo que ele não está satisfeito com as conquistas passadas. Ele sabe exatamente em que lugar pode chegar.
Gabriel vem construindo a carreira entre muitos fãs e alguns haters, mas sem se importar muito com isso. Ano passado, depois de um bom início em Snapper Rocks, onde fez semifinal, arrumou apenas um nono (em Saquarema) nas quatro etapas seguintes. Havia uma crise evidente de resultados. Mas, como diz um amigo, citando Otto Glória, “se ele ganha, é bestial; se perde, é uma besta.”
O paulista de Maresias foi tachado de subcelebridade. Enterraram técnico, exigiram a cabeça do shaper, desconfiaram de seu preparador físico; condenaram seus amigos e seus hábitos. “Como pode um surfista gostar de pagode?”, diziam.
Aí, como tem acontecido sempre que o enterram, ele ressurge com uma série de resultados excelentes, entre os quais duas vitórias seguidas, e chega em Pipeline fungando no cangote do líder John John Florence. Perdeu o título, mas não a moral.
Em 2018, chega à sua oitava temporada na elite (a primeira, pela metade), o que não é pouca coisa. A esta altura, conhece muito todos os picos, a lógica da competição, a dinâmica nem sempre equilibrada da WSL e a maioria de seus adversários. Na pré-temporada, decidiu treinar no North Shore, mesmo lugar do ano em que foi campeão mundial. E, desta vez, foi cedo para a Austrália.
Um vídeo recente dele em Duranbah, pico perto de Snapper onde, anos atrás, já foi realizada a etapa da Gold Coast, dá a medida de sua forma para 2018. Assustadora.
Difícil dizer que ele não está pronto para o bi. Com tanto nome forte no páreo, entre os quais um bicampeão mundial a caminho do auge da carreira, ele tem que começar bamburrando em Snapper, como fez em 2014.
Pontos fortes: Potência, verticalidade, excelência em aéreos, tubos, competividade
Desafios: corrigir erros estratégicos, apurar jogo de borda de frente para a onda
John John Florence
“O oceano é tudo.”
O depoimento é singelo e, ao mesmo tempo potente. Resume John John Florence, explica muito de sua abordagem desapegada, de sua serenidade em ondas críticas. Explica até seus títulos mundiais e a adoração que muitos têm por este havaiano. Muito mais que uma frase, trata-se do título de um texto, assinado pelo próprio surfista no site “The Player’s Tribune”*, que desde já é peça obrigatória para quem quer conhecer um pouco mais desse reservado e fantástico surfista de Oahu.
O bicampeão, como faziam os velhos polinésios, tira o foco de si e joga todas as fichas no patrimônio natural que sempre o rodeou, e com o qual sempre teve que lidar, na alegria e na tristeza. O oceano, para quem mora no Havaí, é uma certeza. John John tem com o mar a relação simbiótica, litúrgica e reverencial do bom povo havaiano – um valor raro e essencial ao surfe, que poderia ser recuperado e tratado com mais cuidado pela WSL e pelos gestores públicos do arquipélago. A turma anda brigando em torno de questões mundanas e prazos.
Em 2016 e 2017, a despeito de polêmicas no julgamento, o hoje bom competidor havaiano foi também o melhor surfista. Venceu porque soube se impor no momento certo, porque se manteve relativamente consistente ao longo do ano. O amadurecimento é visível, não apenas na estratégia em baterias como no refinamento de cada manobra executada – o título de melhor manobra do ano, com a enterrada de borda em Margaret River, é justo. John John está pronto.
O problema de ser o bicampeão, claro, é que o mundo inteiro quer te destronar. A dúvida, em 2018, é se o havaiano, aos 25 e com dois canecos em casa, vai ter fúria para seguir segurando a ponta, resistindo aos ataques cada vez mais vigorosos de adversários como Gabriel Medina, Julian Wilson, Jordy Smith e Filipe Toledo.
Para fazer isso, ele terá que surpreender mais uma vez. A favor dele, a simpatia declarada de todo o mainstream do esporte, o talento e a abordagem vencedora.
John John construiu um estranho espaço entre o ultra competitivo, o sereno e o confiante: “Acho que será bastante divertido, nos próximos dois anos, puxar o limite do surfe”, disse o surfista, em entrevista ao site da WSL. “Eu só quero estar cada vez melhor. Quero ser o cara com quem você disputa uma bateria e parece ser imparável.”
Acho que ele não terá tanto conforto. Que soe a sirene.
*Leia o texto de John John Florence no site “The Player’s Tribune”.