Charles Saldanha não é de holofotes. Diligente, disciplinado e obcecado, ele trabalha, ano a ano, em silêncio, na construção de um fenômeno chamado Gabriel Medina, sem se importar com a sombra. Já são muitos os papéis desempenhados, de padrasto e pai, técnico, incentivador, gerente de carreira, amigo e confidente. Se ele não fala, vocês devem saber: Charlão é o pilar de boa parte das conquistas da família. A origem de tudo. Mas o cara não quer essa glória. Quer apenas que o filho continue a vencer.
Conversei com Charles na noite de terça-feira, entre seus compromissos, para tentar entender um pouco de sua perspectiva sobre o ano do bicampeonato mundial de Gabriel e as perspectivas para 2019. O técnico falou sobre as etapas, lembrou a reverência do filho a Mick Fanning e marcou a diferença mais importante entre o Gabriel de 2014 e 2018. Não fugiu, como era esperado, de apontar seus cinco favoritos ao título deste ano e ainda anunciou que eles vão fazer, como nos dois outros títulos mundiais, a pré-temporada nos swells ainda potentes do Havaí. Confiram.
Vamos começar com um rápido balanço do ano do bi.
Começamos, como em 2014, com a pré-temporada no Havaí. Em seguida, fomos para a Austrália, desta vez até um pouco antes do início em Snapper, porque a Rip Curl faria a troca de guarda entre Mick Fanning e Gabriel do surfista número um da marca.
Como está a relação do Gabriel com o Mick? O cara é um exemplo para seu filho?
Sempre foi boa. Desta vez, ele ficou uns dias hospedado na casa do Mick. Gabriel sempre teve o australiano como um ídolo, um exemplo de vontade e disciplina, um superatleta. E as memórias são boas também: certa vez, aos 15 anos, ele chegou à Gold Coast sem prancha. O australiano entrou numa loja e comprou, na hora, uma prancha para ele. No fim da temporada, Mick foi honesto com o Gabriel. Aproximou-se, apoiou o garoto, mas explicou que também era muito amigo do Julian. E disse, então: “que vença o melhor”.
Da perna australiana e do Brasil, só Bells realmente salvou…
Gabriel vinha surfando bem em Snapper, mas perdeu cedo. Fez uma interferência no Fioravanti na primeira onda do ano, que seria um nove, depois passou por ele de novo e perdeu para o Mickey Wright. Em Bells, reagiu com um terceiro. Ali, foi bem interessante, porque ele ficou especialmente focado em melhorar. Prestou atenção no posicionamento, na melhor parte das ondas, entendeu que tinha que aprender. Saiu com o seu melhor resultado naquele evento, um terceiro lugar. Margaret foi pra Uluwatu e, no Brasil, ele fez o primeiro quinto lugar do ano.
Depois, em Bali, havia uma expectativa grande em torno de Gabriel em Uluwatu.
Para Keramas, identificamos que houve uma evolução em relação à última vez que ele surfou lá. Saiu de lá com um nono (que acabou sendo descartado). Em Uluwatu, nos dias de treino, ele e Italo vinham muito bem, com um surfe muito forte. Mas, como era uma janela curta de apenas dois dias, não demos sorte e, no dia, entrou uma ondulação meio torta, que não encaixou bem na bancada. A onda não estava boa para o surfe goofy. A final acabou sendo entre dois regulares, apesar de ser uma esquerda.
Em Jeffreys Bay, mais um quinto…
Perdeu para o campeão da etapa, que estava surfando muito. Não saímos de lá muito preocupados porque sabíamos que as provas restantes eram muito favoráveis.
De fato, Gabriel fez uma assustadora sequência de três vitórias e dois terceiros lugares nas cinco últimas etapas da temporada. Duas delas seguidas.
No Taiti, até pelos resultados anteriores, ele estará sempre entre os favoritos. É uma onda que Gabriel domina especialmente, se sente confortável lá. Aquela virada nos últimos instantes da final foi importante para a temporada.
Na piscina (Rancho), as chances são iguais para todos os surfistas. Quem surfar melhor para os dois lados, ganha. Ele já tinha vencido o evento teste, estava entre os favoritos, mas não vinha sendo apontado como a grande aposta. Surpreendeu os outros, mas estava nos nossos planos vencer lá.
Quando vocês sentiram a proximidade do título?
Foi depois da vitória na Califórnia. Após o rancho, pensei: agora, ninguém segura. Eu tive uma certeza particular disso, pela forma física e pela maturidade dele.
A sequência também foi boa.
Na França, nossa expectativa era ficar entre os três primeiros. Ele ficou em terceiro, não foi ruim. A etapa ressuscitou o Julian, mas saímos na liderança. Mérito do australiano, que estava surfando bem, acertou um aéreo difícil, arriscou tudo. Mas Gabriel fez a lição de casa e saiu de lá com a lycra amarela.
Em Portugal, chegamos sem expectativa de ganhar o título antecipado, mas as coisas foram se desenhando a favor de Gabriel. Ficamos a duas baterias do título. Gabriel perdeu para o Italo, que vinha surfando melhor e acertou um bom aéreo. Não deu, mas por outro lado abriu a chance de o Gabriel se consagrar no Havaí.
Como foi a pressão no arquipélago?
Já tínhamos passado por isso. Os locais têm sido nota dez com a gente, mas a pressão da disputa do título é grande. Chegamos um pouco antes esse ano. Gabriel ficou na casa da Rip Curl em Off the Wall, mas fechei outra casa isolada para a nossa família. Ele se dividia entre as duas casas.
Sentiu diferença na capacidade dele de lidar com a pressão?
Gabriel estava bem mais maduro, centrado, com muito mais certeza, com muita fé. No dia final, ele simplesmente não parecia estar disputando um título mundial. Fica fácil quando o surfista não pipoca na decisão. Ele faz ao contrário: cresce.
Queria que você falasse um pouco sobre as baterias decisivas.
As previsões indicavam que teria onda, o que nos deixou muito otimista, porque, em Pipeline, quando tem onda, o Gabriel entra definitivamente na lista dos favoritos. Em dois anos passados, o swell não vingou e ele não foi longe.
Contra o Conner, ele abriu com duas notas boas, mas não excelentes, e colocou Gabriel em combinação. Qualquer ser humano normal, claro, ficaria nervoso. Não acho que ele seja normal nesses momentos. Ele não se assustou, sabia que poderia fazer notas mais altas. Não errou quando era obrigatório não errar. Aquela direita para Backdoor, a da nota dez, era um rolo compressor quebrando numa bancada de meio metro de profundidade, onde muitos nem remariam. De costas para a onda. Visto da areia, aquilo foi sobrenatural. Impressionante.
A vitória contra o Jordy, diferentemente do que alguns disseram, foi clara. Na comparação das duas ondas do Jordy com as do Gabriel, vi uma vitória por dois pontos. Gabriel fez tubos mais profundos e mais longos. Na onda do Jordy, que seria a da virada, uma onda bonita, ele deixou o bico da prancha para fora do tubo.
Na final, contra Julian, diferentemente de 2014, ele não aliviou depois do título mundial. Mesmo tendo ganho o caneco, ele entrou na concentração máxima. Vinha de duas derrotas naquele pico e não queria deixar passar. Já tinha falado isso antes de começar o campeonato e, como prometido, finalizou o serviço em 2018.
O título no Havaí foi muito bem recebido, a gente soube de muitos que estavam torcendo por ele, disseram coisas bem bacanas para ele. A gente gosta muito do povo havaiano, gente maravilhosa, muito parecida com a gente.
Você viu alguma evolução nele em Pipe entre 2014 e 2018?
O Gabriel agora surfa indistintamente para os dois lados, não há qualquer diferença ou preferência. Ele melhorou no surfe de costas para a onda, em confiança e está mais maduro do que nunca. Não à toa, virou para alguns comentaristas o melhor goofy que já surfou Backdoor. Parece estar totalmente consciente do que precisa fazer para vencer.
No planejamento do ano, na preparação, houve novidade?
Gabriel estava nitidamente mais maduro e disciplinado. Fizemos um esforço grande para livrá-lo de todos os problemas, para mantê-lo focado apenas no surfe. Na parte física, a gente vem controlando o peso dele. Em algumas etapas fica ligeiramente mais pesado, em outras mais leve. No Rancho, segurou a onda na pizza. Em Teahupoo, era bom chegar um pouco mais pesado. A prova de dedicação, eu vi no dia seguinte à vitória no Taiti, quando ele entrou num intenso treinamento físico para a piscina.
Você falaria sobre os possíveis erros?
Sempre há erros a corrigir. Os principais erros, aqueles que poderíamos evitar, nós conversamos muito sobre isso. Depois, escrevo no papel, amasso e engulo (risos).
Como você passou por aquela crise de resultados na primeira parte de 2017? Vocês chegaram a pensar em chamar alguém para contribuir tecnicamente com o time?
Assim como o Gabriel, tenho confiança. Confio em mim, confio nele, ele confia em mim. O meu medo, um medo real, é chamar alguém que algum dia atrapalhe o Gabriel. Não teria qualquer problema em chamar outra pessoa, já até pensei nisso, mas refletimos juntos e não vimos necessidade. Críticas sempre vão acontecer, mas que brasileiro ganhou dois títulos mundiais? Quantos surfistas goofy têm dois títulos? Poucos, e podemos alcançar três. Tenho confiança em todo o time – cada um no seu setor, na sua especialidade. A gente trabalha, se esforça, tenta fazer o melhor. A gente confia que outros títulos virão. No auge da crise, quando pouca gente acreditava, nos fechamos, nos esforçamos mais ainda. A gente estava levantando às 6h, passamos a levantar às 4h. O Gabriel foi claro neste momento: “vamos juntos”.
Na sua avaliação, além de Gabriel, quem são os candidatos ao título de 2019?
O esporte precisa também ser medido na matemática. Por isso, aquele que alcança a conta é favorito. Julian Wilson tem um surfe sólido, é perigoso em qualquer tipo de onda, não se abala em momentos difíceis e tem uma frieza que lembra a do Gabriel. Diria que em 2019 ele é mais perigoso que o próprio John John Florence.
O havaiano, claro, também está na lista. Já ganhou dois títulos e surfa muito bem. É muito técnico, mas evoluiu muito em termos competitivos. Ganhou sangue nos olhos. Talvez não seja tão competitivo quanto Gabriel, mas essa história de que ele é relax não cola. Ele vai querer o terceiro título, não tem esse negócio de ser cool.
Outro candidato é o Italo Ferreira. É um cara que pode ganhar um título mundial a qualquer momento. Sabe surfar onda pesada, tem um backside muito bom, é moderno, frio, um adversário superdifícil para qualquer adversário. Em 2018, ele perdeu cedo em algumas etapas surfando muito bem, por isso não me surpreenderá se vier para tentar o título este ano.
E, claro, ainda tem o Filipinho, um supersurfista. Mesmo que ele ainda possa evoluir, já poderia ter sido campeão em 2018. Esteve perto disso. Estou certo de que ele chega para disputar o título em 2019. É um surfista que, como o Italo, pode ser campeão do mundo a qualquer momento. Não duvido nada da capacidade dele.
Acho que o título fica entre os cinco, mas alguém sempre pode nos surpreender. Não posso dar 20 nomes, senão não seriam os favoritos.
É difícil criticar depois de um título, mas como você viu o julgamento em 2018?
É realmente fácil elogiar quando a gente ganha, mas acho que houve muita melhora, eles estão evoluindo. A gente reclama, acontecem erros, mas na maioria das vezes eles acertam. De algum tempo para cá, entendemos que não temos o direito de reclamar. Há um esforço para acertar por trás do trabalho. Acho que houve uma evolução, não sei se está havendo um trabalho de base, mas só melhoram. São bons profissionais.
O que você achou da indicação de Pat O’Connell como Diretor de Prova da WSL?
Era da equipe da Hurley, era um bom surfista, parece ser um cara muito bom. Se a mudança está vindo para melhorar, será ótimo. Nunca escutei ninguém falando mal dele, acredito nessa escolha, sou um cara otimista. Vejo Pat com bons olhos.
E a preparação para 2019?
Faremos uma preparação física prévia e vamos repetir o Havaí, para treinar, por 15 dias, antes da Austrália. Vamos no começo de março. No fim do ano, se tudo der certo, sairemos do Havaí com o tri na bagagem.