Johnny Cabianca não quer ser um Matt Biolos. O eficiente shaper que desenhou os foguetes dos dois títulos mundiais de Gabriel Medina assume sem medo sua condição de discreto e artesanal. “Recebo toda semana e-mail para fazer pranchas na China, nem respondo mais”, diz, se referindo à massificação da produção asiática.
Em 2019, Cabianca, hoje residente em Zarautz, no País Basco, comemora, sem alarde e com conquistas, dez anos de relação ininterrupta com o número um do mundo. Cálculos de shaper indicam que ele chegará ao fim de 2019 com a marca de 600 pranchas desenhadas para seu único surfista na elite.
Mas por que apenas um? “Não está bom?”, costuma brincar.
O shaper paulista, velho amigo do padrasto do surfista, Charles Saldanha, fez a primeira prancha para a família aos oito anos do pupilo, mas o reencontrou definitivamente no histórico King of Groms, em 2009, na França, quando Gabriel chamou a atenção do mundo com 20 de 20 pontos possíveis na final.
Ali, foi chamado pela primeira vez de “Da Freak Kid” por Martin Potter, comentarista da WSL e ex-campeão mundial. O apelido pouco mais tarde daria nome ao primeiro modelo de pranchas desenhado por Cabianca especialmente para o surfista.
Na entrevista, shaper fala, entre outras coisas, sobre o acordo informal ajustado com a família Medina, a participação crescente do bicampeão subsidiando o trabalho do shaper, as medidas das principais pranchas do título, a amizade com o havaiano Tokoro e a preocupação com a questão ambiental relacionada à produção cada vez mais massificada de pranchas no mundo. Confira.
A rotina de shaper de bicampeão mundial mudou de alguma forma?
A aceitação está sendo maior à marca. Você recebe mais ligações e contatos do que em anos sem título, mas isso não faz muita diferença para mim. Hoje, moro no País Basco e vou uma vez por ano ao Brasil, onde faço pranchas na Pró-ilha, que tem uma estrutura ótima em Santa Catarina.
Tudo isso começou lá atrás, através de sua amizade com o Charles…
Ele era meu sócio e gerente num restaurante em Maresias, muitos anos atrás. Surfávamos juntos. Quando Gabriel tinha uns oito anos, quando eu passava os verões no Brasil, fiz uma pranchinha para ele a partir de um bloco descascado.
Mas o início mesmo completa dez anos nesta temporada. Foi no ano do King of Groms, quando ele saiu da Praia Mole e foi fazer a perna europeia. Charles me ligou, eles ficaram lá em casa, em Zarautz. Nesta época, eu era shaper da Pukas. Fiz as pranchas do meu bolso, decidi fazer um investimento para um amigo. Foram duas pranchas, com duas curvas diferentes. Ele se adaptou muito bem ao modelo com mais curva, e a prancha acabou sendo batizada pelo Martin Potter, que durante o King of Groms chamava o Gabriel o tempo todo de “Da Freak Kid”. Nasceu a DFK. O modelo ainda existe, com o mesmo foil, os mesmos conceitos de concave e transição.
O número de pranchas por temporada vem aumentando?
Até o título de 2014, Gabriel era um dos que menos consumia prancha na elite. Eu fazia cerca de 35 pranchas por ano. Com o título, fiz um acordo para ele ter folga para treino e competição, além da pré-temporada. Chegamos, juntos, ao número de 120 pranchas por ano. Na conta de 2009 ao fim deste ano, alcanço algo em torno de 600.
Com quais modelos você tem trabalhado?
O Gabriel gerou os modelos DFK, The Medina e Bandida. Mas, fora das competições, tenho uma série de summer toys, como fishs, twin fins, funboards e outras, para o clássico surfista iniciante europeu. No Brasil, a distribuição é muito boa tanto para as pranchas hi-perfomance como para os modelos de verão. Na Europa, o mercado está mais escancarado para o produto asiático. Muitos contêineres chegam o tempo todo da Europa, no esquema prancha low cost, sem assinatura de shaper, levando o nome de marcas famosas. Até que são pranchas bem feitas.
Qual a diferença de custos entre seu modelo personalizado e o genérico, da Ásia?
Minhas pranchas hi-performance custam em torno de 660 euros, contra 350 euros da genérica. O surfista precisa optar entre uma coisa e outra.
Como está a sua produção, diante dessa avalanche de pranchas sem nome?
Quando montei a fábrica nova, três anos atrás, tinha a meta de 1,5 mil pranchas por ano. Até hoje, vinha mantendo a média de mil pranchas por ano. Com o segundo título do Gabriel, a aceitação e a procura estão sendo um pouco maiores.
Você pensa em ampliar muito a produção?
Na fábrica que eu tenho, a capacidade é de dez pranchas por dia. Hoje, faço cinco. Por ano, a média é de mil, como já falei, com variações sazonais. Ou seja, tenho capacidade para eventualmente dobrar a produção. Mas os shapers mais badalados têm uma produção muito maior. A marca do Matt Biolos, por exemplo, faz umas 50 pranchas por dia. Já a JS faz em torno de 12 mil pranchas por ano. Eles usam muitos back shapers. A Surfline me chama de underground. Não tenho problema em ser underground. Prefiro realizar meu trabalho de modo discreto e eficiente.
Por isso você opta por se manter apenas com Gabriel na elite?
Quando atletas do tour pedem prancha, algumas vezes eu faço, cobro e sigo adiante. O surfista se espanta com o custo e com o tratamento não diferenciado. Mas isso não é uma regra. Tenho gostado de trabalhar com alguns surfistas do QS. Eles têm variação corporal, exigem mais conhecimento e sensibilidade para fazer as pranchas. E, claro, são sempre extremamente agradecidos.
Como é, hoje, seu contrato ou acordo de prancha com o Gabriel?
Meu contrato com o Gabriel são vários anos de amizade com o Charles, Simone e toda a família. O que existe é a confiança. Há uma liberdade que eu sempre achei positiva. Durante o ano, muitas fábricas do mundo entregam pranchas para ele. Não tem problema: Gabriel prova e me dá o feedback.
Sabemos que há assédio de outros shapers e eventuais críticos, especialmente quando o bicampeão não atravessa boa fase. Como lidar com isso?
O que o Gabriel fez, até hoje, essa ascensão meteórica, ninguém chegou perto. Desde o King of Groms ele vem quebrando barreira sobre barreira, até chegar ao primeiro título, com menos de 21 anos. E não para. Isso ajuda a legitimar o meu trabalho. Em 2012, Gabriel ganhou cerca de 20 pranchas JS. Duas encaixaram e pronto, ele não foi adiante. Comigo, ele tem outro tratamento.
Há um peso em fazer pranchas para o bicampeão do mundo?
É uma grande responsabilidade. Além da prancha, existe toda uma logística de entrega de equipamento ao longo do ano. A minha atenção é 100% no Gabriel. É ele quem leva meu nome adiante, tenho consciência disso. Muita gente me pergunta se tem mais alguém do tour com Cabianca. Eu respondo: “não está bom?”
O Havaí, historicamente, é a única parada em que Gabriel usa outro shaper, o Tokoro. Como é sua relação com ele?
Todos sabem que eu tenho uma grande amizade com o Tokoro. Minha prancha tem muito drive e carve, é muito expressiva para manobras. Na condição clássica de Pipe, Gabriel prefere a prancha de um especialista naquela onda. Ele costuma dizer, brincando, que a Tokoro é um prancha mais dura, que entra na onda na hora certa, caminha bem pelo tubo e te tira de lá. Não tem o que falar, o cara voa na onda.
Mas Teahupoo não demandaria esforço parecido?
Observe como ele mexe a prancha nos dois picos. Em Pipeline, ele se movimenta de modo muito sutil, com curtas transições de borda. Em Teahupoo, ele se movimenta muito dentro do tubo, bombeia de borda para borda de modo muito mais vivo, além de se mover muito em cima da prancha. Em Pipe, isso acontece bem menos.
Quais são as medidas das pranchas mais importantes do ano, etapa a etapa?
As rabetas ao longo do ano todo têm sido round. Faz algum tempo ele optou por esse modelo. A manobra fica mais expressiva, e há maior suporte para curvas de alta velocidade. Ele não perde o drive quando entra de borda, e a rabeta segura a pressão que ele imprime. É importante notar que, quando comecei a trabalhar com ele, em 2009, ele calçava 38. Agora, o pé é 43. Isso também é calculado.
Qual o modelo de Snapper?
Em Snapper, ele costuma usar dois modelos: uma The Medina, 5’10”, 19 3/8, 2 3/8, com 29,5 litros; e uma DFK, 5’11”, 19, 2 7/16, com cerca de 28,5 litros. O que muda entre uma prancha e outra é o concave: a The Medina é mais plana, com saída v-botton, e a DFK é mais “banana”.
Bells?
Em Bells, majoritariamente as DFK , de 6’ até 6’1 ½”. As pranchas, lá, devem ser largas. O modelo fica em 19 1/8, 2 ½, com até 30 litros.
Margaret?
Em Margaret, enquanto rolou, em 2018, ele se adaptou muito bem. O mar é mais pesado, então ele foi bem com uma DFK 6’1”, 19, 2 ½, com 29,1 litros.
Em Saquarema, quais os modelos?
Ele surfou com DFK, de 5’11” a 6’2”, normalmente 19 de largura com 2 1/2 de borda, por volta de 29,5 litros. Nos dias bons ele usou mais uma 6’0”.
Gabriel tem opinado mais nas medidas e modelos?
Até algum tempo atrás, a função era muito do Charles, mas nos últimos anos ele tem se mostrado muito mais crítico e técnico. Sente mais o material no pé. Me fala: “vamos tentar 19 1/8, vamos tentar a medida tal”. Tenho arquivos prontos por etapas, mas ultimamente venho adaptando os modelos com frequência. Fica mais difícil fazer prancha, está muito mais profissionalizado. Mas o Charles ainda dá muitos subsídios.
Na Indonésia, como foi?
Em Uluwatu e Keramas, ele surfou de DFK, de 5’11” a 6’1”, de meia em meia polegada, normalmente com 19 e 2 1/2, de 29 a 30 litros.
O rancho tem outra lógica, pelo fato de a água ter menos densidade? Rolou Epóxi?
Nada. Gabriel só usa poliuretano e fibra, o clássico. Não se adapta ao epóxi. Ele surfou com as pranchas triviais dele. O Charlão observou o Gabriel e, durante os treinos, deu uma solução boa para as duas ondas, que são diferentes. A esquerda é mais deitada, e só oferece um power no finalzinho. Ele usou a The Medina, com 5’10”, 19 3/8 e 2 3/8, com 29,5 litros. Já na direita, mais rápida e potente, Gabriel surfou com uma DFK 5’11”, com 19, 2 7/16 e 28,4 litros. A configuração se parece muito com Snapper, com a diferença que no Rancho ele usa um modelo para cada lado.
A prancha mais usada pelo Gabriel no ano é a da direita do Rancho.
Aí seguimos para a África do Sul…
Lá, o Charles identificou uma diferença na onda. O lip foge do timing do surfista, muitas vezes não empurra a prancha de volta. Para nós, mortais, isso talvez nem seja tão importante. Mas, no topo do esporte, importa. Ele usou o quiver com a variação de tamanho de sempre, mas com 19 1/8 de largura e 2 1/8 de borda.
Em Teahupoo, a medida é a mesma de todos os anos?
As mesmas pranchas, vencedoras. Usa DFK de 6’ a 6’2”, todas com 19, 2 ½, com cerca de 29 litros. Há algumas alterações de transição em relação ao resto do ano. A borda de baixo é mais “dura”. Tenho um pouco de paranoia com esses detalhes.
Quais detalhes?
Cerca de 70% das pranchas do Gabriel sou eu mesmo que lixo, metade das pranchas sou eu também que lamino. Tenho profissionais excelentes nesse trabalho, mas há uma obsessão minha com o mínimo detalhe.
Na França, eu presumo, ele já tem a prancha certa…
Ali, realmente ele está em casa. Temos um grande conforto neste sentido. É a prancha clássica dele para Maresias, a mesma prancha. Uma DFK 5’11”, com 19 e 2 7/16, e 28,4 litros. Às vezes varia até 6’1”, mas ele se sente muito confortável com essa medida.
Em Portugal?
Entendemos que é o mesmo equipamento da França e de casa. Apesar de algumas variações na onda, é um beach break, assim como Hossegor e Maresias.
Das pranchas que você faz para o Havaí, o que ele leva?
Das Cabianca, ele leva muitas 6’1” e 6’2” com 19 e 2 ½. Iguais às de Teahupoo.
Houve alguma mudança mais importante em relação a 2017?
Não mudei quase nada, só detalhes, a partir dos retornos do time. O que alteramos mesmo foi a pintura. Voltamos a usar a bola no meio da prancha, que fez sucesso no primeiro título do Medina. Aí, ele foi campeão mundial de novo (risos).
Para 2019, o que há em vista?
O Charles pede que eu busque atualizações. Estou trabalhando com muitos atletas novos, muitos do Instituto Gabriel Medina, outros da França. Ele exige que eu esteja cada vez mais afiado, acompanhando a evolução do esporte. Tenho me concentrado no aprimoramento de bordas, concaves e curvas. Também tenho estudado ângulos e posições de quilha. O objetivo é aumentar o conforto de Gabriel com a prancha, fazer com que ele ganhe velocidade máxima, com drive, de modo cada vez mais rápido.
Qual o material que você utilizou nas pranchas dos títulos do Gabriel?
Em 2014, eu usava produto brasileiro: bloco Teccel, resina Resana e Tela Texiglass. O primeiro título foi com a matéria-prima mais nacional possível. Ano passado, usamos produtos importados: bloco Arctic Blanks, resina Resana e Tela Hexel. As quilhas são FC2, performer, que leva o nome dele. Gabriel usa a quilha “large” para qualquer condição. A FCS sempre lança quilhas mas ele é irredutível, não larga seu modelo.
Eu queria falar um pouco sobre a questão da fabricação de pranchas…
Sobre o problema ambiental? De fato, é um gargalo não resolvido da indústria.
Depois que eu saí da Pukas, me dei conta da questão ambiental com mais clareza. As grandes fábricas estão com uma produção de resíduo enorme, sem controle. Hoje, existe um certo desrespeito com a ideia da prancha de surfe. América, Ásia e Austrália estão produzindo números exorbitantes de pranchas, que viram lixo rapidamente.
Nos anos 80, havia um ritual em torno da prancha de surfe. Era uma paixão pelo equipamento e um respeito total ao shaper, ao laminador e ao lixador. Hoje, não me sinto mal por fazer apenas mil pranchas por ano. Além do próprio equipamento ter uma vida útil, a cada sete pranchas enchemos um saco de lixo de 100 litros com resíduos químicos. Na Europa, eu pago para descartá-los em local apropriado.
Defendo que sejamos mais conscientes, com produção mais artesanal. Defendo que as pessoas tornem a respeitar a prancha, como nos anos 80, quando venerávamos muitas vezes o único equipamento que tínhamos. A prancha é uma entidade.