Leitura de Onda

O bom carma de Italo

Tulio Brandão fala sobre a brilhante vitória de Italo Ferreira em Keramas, Indonésia.

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Italo Ferreira assombrou os adversários em Keramas.

Esqueçam ao menos por algumas linhas o que Italo Ferreira fez dentro d’água. Já vimos, revimos e voltaremos a ver muitas vezes, ao longo do ano, uma das exibições mais sublimes já vistas na elite de um goofy em direitas de alta performance.

Prestei especial atenção no que o potiguar aprontava além de manobras.

Fora d’água, saltava, pulava, brincava, distribuía sorrisos. Rezava, concentrado. Estava ali, inteiro, naquele ambiente mágico de Keramas.

Depois de uma onda boa, gesticulava, com humor, para os juízes.

Às vezes, sorria ainda em pé na prancha, antes da última manobra.

Pediu nota, certo de que a receberia. Dez.

Nas voltas ao lineup, durante a remada, vez por outra conversava com ele mesmo, ou com alguma divindade que o protegia.

Deu a entrevista da vitória ao Kaipo Guerrero dançando. Alguém já deu alguma entrevista na história das provas da ASP e WSL dançando? Não lembro.

(A cena, imperdível para quem não viu, poderia revelar um surfista tolo, incapaz de entender o que se passava. Mas não: Italo estava no auge de sua lucidez. Diante da velha pergunta-pegadinha sobre título mundial, o garoto foi absolutamente lacônico e certeiro: “É muito cedo, você sabe o que quero dizer, eu preciso de mais. Calma.”)

A postura positiva e empática do brasileiro é exemplo para os competidores da elite.

Por que marcar essas atitudes? Porque isso tem tudo a ver com a performance dele na onda, tem relação direta com a vitória. Italo construiu, mais uma vez, uma espiral positiva, alegre, elétrica, cheia de energia, expressiva, em torno de sua figura.

Dentro dessa espécie de manto protetor, tudo flui melhor: o surfista alcança o limite de sua técnica, afasta-se de pensamentos ruins; o público o abraça e, por último mas muito importante, os juízes têm suas possíveis resistências devidamente minadas.

A postura positiva e empática do brasileiro, que ajudou a moldar seu surfe e a segunda vitória do ano e da carreira, é exemplo para os competidores da elite. Ou mesmo para nós, amadores, com apertadas sessões de surfe entre os compromissos da vida.

Italo construiu seu próprio ritual, com o bom carma, e o transformou em espetáculo.

O surfe do campeão de Keramas é, desde já, uma dessas imagens que fazemos questão de guardar em alguma memória, em tempos de instantâneos tão efêmeros.

Assombrou adversários. Jordy Smith, na semifinal, levou as mãos a cabeça quando viu o brasileiro fazer um 10 debaixo de sua prioridade. O finalista Michel Bourez, que deixou a bateria numa larga combinação, admitiu que o rival tinha levado o surfe a outro patamar na final. Jeremy Flores, nas quartas, foi o único a não entender o que se passava a seu lado. Reclamou de uma de suas notas, achando que poderia virar.

Surpreendeu comentaristas. Na transmissão em inglês, durante a final, esgotaram a cota de adjetivos possíveis diante da sucessão absurda de ondas excelentes surfadas pelo brasileiro. No post-show, insistiram na história de que surgia, ali, um verdadeiro favorito ao título mundial de 2018, embora a temporada esteja acirrada e totalmente aberta, com uma diferença de pouco mais de 5 mil pontos entre os quatro primeiros.

Encantou o público, claro.

Neutralizou juízes, que na primeira fase, ainda resistentes, mandaram o brasileiro para a repescagem. O comentarista Martin Potter, normalmente econômico, achou que ele tinha conseguido a nota na onda a poucos instantes do fim. Eu também.

A onda nota 10 da semifinal impressionou sobretudo pela altura do aéreo rotacional e, mais que isso, pela forma suave com que pousou na parede.

O maior aperto do brasileiro foi justamente no esquecido round 2, contra o havaiano Barron Mamiya, que perdeu por décimos num julgamento difícil. A bateria poderia ter saído para qualquer um dos lados, sobretudo por causa do primeiro tubo do havaiano.

(Mamiya foi convidado de última hora pela organização depois de, mais uma vez no ano, Kelly Slater marcar e não dar as caras. A vaga seria de Wiggolly Dantas, mas como o americano avisou em cima da hora, tiveram que convidar quem estava mais perto. Kelly, aliás, tem usado a reverência que o surfe tem a ele de forma nada elegante.)

A onda nota 10 da semifinal impressionou sobretudo pela altura do aéreo rotacional e, mais que isso, pela forma suave com que pousou na parede. Mas, ao longo do evento, o que mais marcou o surfe de Italo foi a capacidade de atacar sucessivamente, numa mesma onda, a parte mais crítica, com manobras potentes, ajustadas e precisas.

Em alguns momentos, deu a impressão de que ele fazia outro esporte.

O goofy Italo consolida de vez a impressão de que, numa temporada majoritariamente montada em ondas para a direita, sua técnica incomum de backside, apurada desde moleque nas direitas de Baía Formosa, pode ser o elemento de rompimento que estava faltando para o fim do domínio dos regulares.

Michel Bourez, o vice pela segunda vez em Keramas, é um fora de série naquela onda. Seu surfe potente, de base x lip com manobras de borda enterrada e espaço para tubos profundos, encaixa-se como luva na direita balinesa. Se não fosse o brasileiro, estaria com justiça no alto do pódio.

O taitiano nos ensinou ainda o valor de uma prancha mágica, num momento em que os surfistas chegam com quivers cada vez maiores aos eventos. Depois de trincar ao meio seu equipamento no round 4, ele encontrou um craque local para fazer o reparo e, nas baterias seguintes, voltou para a água com a fibra remendada, sem medo de ser feliz. O conserto aparentemente não afetou a performance – o bom exemplo me deu vontade de consertar a velha prancha trincada que está no fundo do quartinho.

Michel Bourez, o vice pela segunda vez em Keramas, é um fora de série naquela onda.

Mikey Wright e Jordy Smith ficaram na semifinal. Os dois fizeram um evento brilhante, com muitos bons momentos, cada um a seu modo.

Jordy, com sua linha limpa, manobras potentes e encaixe nos tubos, é outro que poderia ter vencido o evento, se não tivesse cruzado com Italo no caminho. No round 4, ao lado de Jeremy Flores, eliminou de maneira convincente e tática Gabriel Medina, que vinha surfando bem. Durante a bateria, venceu uma importante disputa de remada com o brasileiro, que definiu o resultado. Vinha apagado no ano e, ali, num movimento que nada tem a ver com surfe, parece ter despertado. O que acontece fora da onda às vezes é tão importante quanto a melhor manobra do dia.

O sul-africano, que completou 30 anos, ainda teve tempo de destronar Filipe Toledo, que vinha embalado da vitória no Brasil e era apontado naturalmente como um dos favoritos naquela onda. Estranhei a escolha da prancha de Filipinho, uma swallow desenhada para surfe em ondas pequenas, na bateria em que foi eliminado. Pareceu-me solta demais, perdida na onda pequena mas encorpada de Keramas.

Mikey, assim como Jordy, é craque, mas muito mais novo. Aos 21, parece ter se transformado na esperança australiana de títulos futuros, diante dos sucessivos apagões das grandes estrelas, a começar pelo ex-líder Julian Wilson, que perdeu cedo em Keramas, onda que tinha o dever de estar pelo menos entre os três primeiros.

No caminho até a semifinal, Mikey Wright venceu de modo polêmico Willian Cardoso, com uma nota que corrompeu a escala que vinha sendo praticada até então.

No caminho até a semifinal, Mikey venceu de modo polêmico Willian Cardoso, com uma nota que corrompeu a escala que vinha sendo praticada até então. Mas o australiano não tem nada com isso e deixou a impressão de que, se continuar sendo convidado para as etapas, estará sem muito esforço no time fixo da elite em 2018.

A questionar, apenas o critério de escolha de wildcards da WSL. Não há qualquer critério oficial – como liderança de divisão de acesso – que justifique os sucessivos convites da entidade ao irmão de Owen e Tyler. Imagine o que sente Alejo Muniz, brasileiro batalhador e talentoso que lidera o WQS em busca da volta à elite, sem amigos no comando ou família no tour, num momento desses.

Deve ser muito fácil ser australiano, deve ser muito fácil ser Mikey Wright.

“Em Bali, nós acreditamos em carma”, dizia, em loop, o anúncio na transmissão online da etapa de Keramas, que terminou este fim de semana. O Brasil também, sobretudo quando o evento da WSL é em Bali, recanto sagrado do hinduísmo também chamado de a “terra dos mil templos”. Acreditamos no bom carma de gente como Italo.

“Terima kasih”, Keramas. Segue o jogo, agora em Ulu.

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