Leitura de Onda

O domador de finais

Tulio Brandão evidencia os números impressionantes de Filipe Toledo em finais no Championship Tour.

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Em dez decisões disputadas com dois surfistas dentro d’água, Filipe Toledo acumula nove vitórias e apenas uma derrota.

Começo o texto com um postulado: se Filipe Toledo surfasse todas as baterias de sua vida como se fossem finais, ele certamente já teria um título mundial no bolso.

Este fim de semana, no dia decisivo de Margaret River, a luz indicadora de “imbatível” acendeu mais uma vez no prodígio de Ubatuba. A evolução de sua performance foi tão intensa que nem o talentoso Jordy Smith – que também alcançava, no último dia de competição, seu melhor momento na etapa – conseguiu oferecer perigo ao brasileiro.

Os números confirmam a fama de domador de finais de Filipe: agora, em dez decisões disputadas com dois surfistas dentro d’água, são nove vitórias e apenas uma derrota, para John John Florence, numa pesada Bells Beach, em 2019. Não considero outros dois vices, ambos na piscina do Rancho, porque não houve uma final formal, com dois atletas disputando as ondas ao mesmo tempo.

São dados impressionantes – não há outro surfista com a mesma série histórica.

Com o resultado de Margaret, ele se coloca confortavelmente no grupo de surfistas que lutarão por espaço entre os cinco da decisão de Trestles.

Se chegar lá, a onda de San Clemente parece desenhada para o surfe do progressivo ubatubense. E Filipe, como nos lembra o postulado do início do texto, é um gênio de decisões.

Assim como Filipe, Tatiana Weston-Webb se posiciona confortavelmente na corrida pela vaga na decisão de Trestles.

A redenção de Tati

Tatiana Weston-Webb, uma brasileira criada no Kauai que está totalmente conectada com seus conterrâneos do Tour, vivia situação oposta à de Filipe. Ao entrar na água na final com a local Stephanie Gilmore, heptacampeã do mundo, ela lutava contra um amargo histórico em decisões: um 7 a 1 contra, ou seja, sete vices e apenas uma vitória na elite, num US Open realizado no distante 2016.

Antes da final, em entrevista à WSL, Tati deu a senha: disse que estava na hora de mudar essa história. Estava certa e segura de seu surfe na onda de Margaret.

A trajetória dela na etapa justificou a confiança: com um surfe de costas para a onda adaptado a diversas condições de mar, ela escalou sua chave com performances sólidas. Nos dois confrontos mais difíceis, venceu estrelas australianas com somatórios idênticos e excelentes – 16.23, nas quartas, contra Tyler Wright, e na final.

Assim como Filipe, Tati se posiciona confortavelmente na corrida pela vaga na decisão de Trestles. E, na mesma medida, terá a vantagem de usar seus recursos de backside. Não será surpresa se estiver na última bateria do ano, agora mais forte em decisões.

Etapa de Margaret River mostrou mais uma vez a união dos brasileiros no circuito mundial.

Brasil avassalador na Austrália e na temporada

Ao fim de Margaret River, o surfe brasileiro alcançou um recorde inédito na elite, com 100% de aproveitamento nas três etapas realizadas nesta temporada na Austrália e vitórias de Italo Ferreira, Gabriel Medina e, agora, Filipe.

Em 2015, chegou perto, com vitória de Filipe, na Gold Coast, e de Adriano de Souza, em Margaret. A sequência só não foi perfeita, com 100% de aproveitamento em três etapas, porque Mick Fanning venceu no desempate a final com Mineiro em Bells.

O recorde também acontece no ranking. Pela primeira vez, os três primeiros do mundo ostentam a bandeira positivista de Pindorama, num ano em que cinco serão escolhidos para uma final. Com John John Florence no estaleiro mais uma vez, só um acidente tira um dos três surfistas brasileiros da final. Filipe dissipou as dúvidas em torno de sua fase com uma apresentação irretocável no dia decisivo em Western Austrália.

Agora, imagine o espectador australiano, sem máscara e feliz, livre da pandemia que nos assola e, claro, certo de que vive no país que mais incorporou a cultura do surfe. Ele vai à praia em busca de seus ídolos e volta para casa com a seguinte parcial: dos seis troféus disputados na perna australiana até agora, quatro foram levantados por brasileiros, um por uma havaiana e outro por uma estadunidense do continente.

Resta aos aussies a desconhecida (para muitos surfistas, inclusive o líder do ranking, Gabriel) etapa de Rottnest, com sua onda que quebra na Baía de Strickland.

Sem vitórias, em vez de chorarem as derrotas, os australianos parecem ter aprendido a se divertir com o espírito alegre dos brasileiros, tanto durante as provas quanto nas comemorações. Algumas imagens de bastidor de Margaret são desde já históricas, como a da campeã Tati pulando na água para abraçar o campeão Filipe e as inúmeras e divertidas festas – sempre repletas de imagens impagáveis – dos títulos das etapas.

Griffin Colapinto foi consistente, veloz e moderno durante toda a prova.

As surpresas, as apostas e o apagão

Um estadunidense ganha tração na hora certa. Em Margaret, Griffin Colapinto fez pela segunda vez consecutiva um terceiro lugar – importante dizer, num mar completamente diferente do visto em Narrabeen. A técnica e a capacidade competitiva ainda estão em ascensão, mas já começam a se transformar em pontos.

Embora beneficiado pela contusão de Florence, que o livrou da disputa das quartas de final, Griffin foi consistente, veloz e moderno durante toda a prova. Ele traz uma evolução interessante do surfe de borda, com alguns limites ampliados e finalizações brutais em junções pouco convidativas.

Neste ritmo, fez notas altas em todas as baterias disputadas e só perdeu para Jordy no photochart, por míseros 17 décimos, na melhor bateria do ano do sul-africano.

Griffin já se aproxima perigosamente do Top 5, a menos de 2 mil pontos de Jordy, e com vantagem no descarte dos dois piores resultados. Se alcançar o sonho da decisão, estará literalmente em casa. Ele cresceu na onda de Lower Trestles, enquanto seus pais tocavam um surfcamp em San Clemente nos meses de verão dos Estados Unidos.

O outro surfista da semifinal, o rookie sul-africano Matthew McGillivray, apesar de ainda ter algumas pontas soltas em seu surfe, fez boa prova. Logo na estreia, em dia de mar furioso, aplicou uma desconcertante combinação em Conner Coffin e Wade Carmichael. Na sequência, venceu Conner de novo, enterrando o sonho do californiano de subir no ranking, após o inesperado vice de Narrabeen.

No round dos 16, Matthew avançou graças ao vacilo de Kanoa Igarashi, que fez uma interferência ridícula e perdeu a chance de se manter entre os cinco do mundo.

O garoto sul-africano fez um excelente resultado para um rookie, mas Morgan Cibiic, a novidade australiana no Tour, é melhor e mais instigante que ele.

Gabriel Medina não se encontrou nas oitavas de final contra Seth Moniz.

Gabriel, Italo e John John

As semifinais inesperadas de Margaret guardam relação direta com uma sucessão de surpresas em Margaret.

A primeira delas foi o inesperado apagão de Gabriel Medina, que não se encontrou nas oitavas de final e deixou a bateria cair de seu colo. O adversário, Seth Moniz, também foi mal e deixou a porteira aberta para a virada do brasileiro. Gabriel passou boa parte da bateria atrás de uma onda 3.84. Caiu, escolheu ondas erradas, remou errado e, de repente, tocou a sirene. Pronto, o líder do circuito não conseguiu realizar o sonho de fazer todas as finais das etapas da Austrália, como tinha planejado.

Na sequência, veio o surpreendente anúncio da contusão do melhor surfista da história de Margaret, John John Florence, quando já estava escalado para as quartas de final. Ter o havaiano fora foi uma perda irreparável para o evento. Seus arcos de borda plenamente enterrada na água, com a saída da manobra mais veloz do que a entrada, são uma demonstração cabal de evolução do esporte.

As sucessivas contusões do havaiano comprometem uma disputa de talentos que poderia ser histórica. Os amantes do surfe mereciam assistir a uma temporada inteira de rivalidade entre John, Gabriel, Italo e Filipe, todos no auge de suas carreiras. Em 2021, isso estava marcado para acontecer – afinal, ele estão no topo literal.

O havaiano está fora da perna australiana. Agora, é torcer para seu time de médicos e fisioterapeutas conseguirem deixá-lo em forma para o resto do ano.

A Italo, restou enfrentar precocemente Filipe. O atual campeão mundial parecia embalado a caminho de mais uma final – até as quartas de final, era o único surfista a fazer média superior a 15 pontos em todas as baterias, em variadas condições de mar. Está em grande forma, é capaz de vencer, em todas as ondas, qualquer adversário. Mas competição é isso: às vezes a série vai para o rival e você perde por 17 décimos.

A eliminação não foi injusta, foi apertada. Escaldado com o erro de julgamento de Narrabeen, o potiguar ficou visivelmente insatisfeito ao fim da bateria. Só me resta desejar que o potiguar não teorize mais sobre essas derrotas e parta para a próxima etapa leve, sorridente e com asas, como o personagem do desenho da Red Bull.

Filipe ganha confiança para buscar o seu primeiro título mundial.

Filipe, enfim

Volto a falar do prodígio de Ubatuba antes do fim do texto. É, antes de tudo, um alento ver um surfista tão talentoso de volta aos trilhos. E o melhor, vencer sem precisar contar com a sua arma mais mortal, as manobras aéreas.

Filipe mostrou (mais uma vez, é preciso dizer) que seu surfe de borda tem grau de letalidade semelhante aos dos reverses. Não é, faz tempo, um dependente de rampas.

Mostrou, também, como se ganha uma final quando se tem um dom incomum: sem contar com a prioridade. Enquanto Jordy Smith esperava a maior da série, o brasileiro desenhava seus mais bonitos arcos nas paredes intermediárias de Margaret.

A vitória lhe fez um enorme bem e, claro, trouxe de volta a confiança que pode transformá-lo, sem qualquer exagero, num surfista imbatível em algumas arenas.