Yago Dora é o Brasil que quase esquecemos existir. O curitibano com alma catarina, vencedor da etapa brasileira do WCT, é uma espécie de marcador genético do melhor do brasileiro: feliz, persistente, criativo, habilidoso, inventivo.
A demora para a primeira vitória na elite fez com que alguns vissem nele um artista que não vence. Um esteta, quase uma Seleção de 82. Mas não: surfistas têm tempos diferentes. Yago precisou das derrotas acumuladas para elaborar seu surfe no modo competitivo e, enfim, romper o bloqueio de vitórias. Agora vencedor e, no momento certo, entre os cinco que se classificam para as finais de Trestles, corre o risco de o campeão de Itaúna incorporar o arquétipo da vencedora Seleção de 70.
A conquista trouxe mais uma novidade: Yago sabiamente não dedicou a vitória a Deus, não disse que voltou do aéreo porque foi iluminado por Jesus. Com todo o respeito ao sagrado que há em todos nós, ele preferiu reverenciar quem, no difícil plano terreno, esteve a seu lado dos momentos mais difíceis até a vitória: Leandro Grilo, o pai e treinador; a equipe; os amigos; o resto da família. Deus é justo: não haveria mesmo de escolher um surfista em detrimento de outro.
O que é certo mesmo é que há certa relação metafísica entre Yago e Itaúna. O talentoso surfista do Sul já tinha escrito seu nome na história do evento em 2017, quando, ainda como convidado, eliminou Mick Fanning, John John Florence e Gabriel Medina para finalizar a etapa em terceiro lugar.
Na final com o australiano Ethan Ewing, ou melhor, no confronto entre as duas mais refinadas linhas do tour, prevalecia as más condições de surfe em Itaúna, numa etapa de pouquíssimas oportunidades de ondas aptas aos melhores do mundo – exceção feita às primeiras horas da manhã do dia decisivo. Itaúna, aliás, reforçou o coro de etapas em que o swell, rebelde, surgiu antes e depois da janela do evento.
No meio da bateria final, no entanto, a centelha de Yago apareceu, em forma de surfe progressivo: um magnífico aéreo premiado com uma nota 10 pelo painel de juízes. Aqui vale detalhar a manobra: primeiro, a cavada aguda, em busca da melhor rampa de uma onda com apenas uma oportunidade; depois, a rotação completa, não muito alta, mas de livro, de tão perfeita; e, por fim, a despencada num abismo que tinha uns três metros de altura até a aterrissagem perfeita, limpa, suave, na base da onda. Não houve qualquer movimento fora do lugar, qualquer desequilíbrio.
Talvez os 10 pontos tenham sido um exagero típico de dia decisivo ou ainda uma chave para destravar a campanha do cooler, mas, mesmo com um ponto a menos, Yago venceria. O que importa, neste cenário, é perceber que o campeão de Saquarema e novo número 5 do mundo traz para o surfe progressivo algo que é frequentemente exigido no surfe de borda: movimentos limpos, sem pontas soltas.
Sim, queremos ver aéreos de rotação limpos, sem solavancos, em transições suaves.
Yago pode levar a Ethan um problema, caso se classifique para Trestles, diante do refinamento de linha bastante semelhante ao do adversário e pela diferença de seu surfe progressivo. Corre o risco de ser um daqueles casos em que, no confronto direto, a virtudes do brasileiro se encaixam bem para derrotar as qualidades do aussie.
A etapa do Brasil marcou, ainda, o resgate dos aéreos. Em várias fases, surfistas como Yago, Gabriel Medina, Samuel Pupo, Italo Ferreira, John John Florence, Rio Waida, Ian Gentil e até surfistas historicamente afeitos ao convencional, como Barron Mamiya, encontraram notas (em alguns casos salvadoras) em manobras aéreas.
O maior emblema da valorização do movimento na etapa, para mim, não foi o exagerado 10 de Yago, mas a nota na casa do 6 concedida a Ethan na mesma bateria. Era um aéreo sem qualquer expressão, sem rotação completa, numa onda igualmente sem pulso. (Se não foi um bom exemplo de valorização do aéreo, talvez tenha sido um bom exemplo da valorização de um surfista.)
Para chegar ao título, Yago superou Florence, que se apresentava como seu concorrente direto pelo cobiçado quinto posto no ranking, com uma vitória numa bateria com poucas oportunidades.
O havaiano fez um excelente evento – ficou com duas das quatro melhores notas da etapa. Na casa dos velhos rivais brasileiros, deu sinais claros de que vai tentar buscar, com o peso de seu surfe, uma das vagas para as finais de Trestles, nas duas últimas etapas do ano.
A despeito de ter recuperado a boa fase, Florence ganhou um belo empurrão do julgamento nas quartas-de-final, no confronto com o conterrâneo Mamiya. Embora o bicampeão do mundo tenha surfado forte, com muita potência, foi surpreendido pela excelente última onda do garoto de Haleiwa, que começa a mostrar uma consistência interessante no tour, depois de um irregular ano de estreia.
Os juízes, no entanto, preferiram ver Florence seguir adiante. Quase sempre preferem.
Do outro lado, ficou na semifinal o aussie Ryan Callinan. Não sou especialmente fã do surfe do goofy de Newcastle, mas ele fez boa prova. Parou diante de Ethan, este sim em fase esplêndida, que mesmo sem fazer seu melhor evento, foi a mais uma final.
Jadson e Samuel, os bons algozes
Fora o campeão, os dois melhores brasileiros na etapa, de longe, foram os convidados Jadson André e Samuel Pupo, que surfaram bem no balançado Point de Itaúna. Com a desistência de Kelly Slater, que mais uma vez alegou problemas de saúde para não vir ao Brasil, os dois brasileiros, com seed baixo, posicionaram-se inevitavelmente no caminho de brasileiros que disputam a ferro e fogo uma vaga na lista de top 5.
Samuca, na primeira fase, perdeu no detalhe, na sutileza de um julgamento que poderia ter ido, sim, para seu lado, na disputa com Filipe Toledo. Na repescagem, tirou da prova Gabriel Medina, que mais uma vez, a despeito da boa fase técnica, parece não encontrar oportunidades de avançar nas etapas. Nas oitavas, Samuel despachou o local João Chianca, que vinha de uma estreia convincente, mas não repetiu a performance. Nas quartas, foi eliminado por Callinan.
Jadson fez um estrago ainda maior. Eliminou o líder do ranking, Griffin Colapinto, na repescagem, e o vice-líder, Filipe Toledo, nas oitavas. Nas quartas, contra Yago, parece ter perdido o timing das melhores ondas e foi facilmente derrotado.
Para completar a lista de favoritos eliminados, Italo perdeu para Mamyia nas oitavas-de-final. Todas as eliminações relativamente inesperadas aconteceram numa sinistra sexta-feira, em que as condições de mar estavam muito difíceis.
Jadson e Samuca venceram com méritos e muito surfe. Deram mais uma prova de que podem voltar a qualquer momento para a elite. Mereceram.
Enquanto parte dos brasileiros que disputa vaga em Trestles saiu de Saquarema em situação mais difícil, a dupla de wildcards por outro lado também acabou tropeçando em seus principais compromissos. Os dois saíram da Vila de Itaúna diretamente para o aeroporto, rumo à África do Sul, na sequência da eliminação da etapa do WCT. Possivelmente cansados e tomados pelo jetlag, acabaram perdendo precocemente na etapa do Challenger de Ballito, qualificatória para o sonho do retorno à elite.
Trestles: muitos bons surfistas para poucas vagas
A corrida para as finais de San Clemente ganhou uma dramaticidade enorme após a etapa do Brasil. Dois surfistas estão seguros na decisão: Filipe, o novo líder, e Colapinto. Outros dois, Ethan e João, estão em posição muito confortável, mas ainda não completamente livres de uma surpresa. A quinta vaga ganhou um novo dono, Yago, e será de longe o maior alvo das disputas até o fim da temporada.
A situação é especialmente interessante porque os dois surfistas mais próximos da porta do WSL Finals, loucos para tomar de assalto os top 5, são os maiores da geração contemporânea, que domina o esporte: o tricampeão Gabriel e o bicampeão John John. Ambos, nas etapas restantes, J-Bay e Teahupoo, surfam especialmente bem.
(Um rápido parêntese sobre Gabriel, que fez ótima apresentação na primeira fase de Saquarema, embora tenha sido derrotado por Yago. Muito tem se falado sobre as novas medidas do quiver do tricampeão, especialmente de sua nova abordagem no surfe de borda de frente para a onda.
Até o tricampeonato mundial, ele usava um modelo 5’11 x 19 x 2 7/16 x 28,6 litros. Quando o critério mudou, houve uma luta para encontrar novas medidas. Fui perguntar ao craque responsável pelos foguetes do tricampeão. Fala, Johnny Cabianca:
“O Gabriel está treinando muito a parte física, baixou para 78 quilos, mais ou menos. Como as pranchas de Margaret River funcionaram com mais de 29,5 litros, aumentei os litros (eram 28,6) dentro das mesmas medidas. Dentro desta nova leitura de onda (imposta) mas mantendo o seu surfe alegre de sempre, esses litros a mais estão caindo bem. Não sei por que estão dizendo que as pranchas têm pouco volume. Pelo contrário. Estão com as bordas mais soft, mas o deck mais flat com mais volume. Andei fazendo micro alterações no outline, bico e rabeta, sempre procurando um conforto maior para ele. Tenho tido excelentes feedbacks. Agora, é esperar por resultados.”)
Abaixo de Gabriel e John John, há, ainda, pelo menos quatro surfistas com chances de beliscar a última vaga das finais: Jack Robinson, Leo Fioravanti, Ryan Callinan e Italo Ferreira. Na conta final, são seis surfistas na porta e outros cinco dentro do quarto de Trestles, sem a menor intenção de ceder o espaço. Vai ser uma briga boa, muito boa.
Agora, um pouco mais sobre Yago: o mais novo brasileiro vencedor de etapa do WCT realinha o jogo de forças para a briga por uma vaga nas finais. É bom surfista nas arenas que restam na temporada e, mais que isso, é excelente em Trestles. Se ele chegar lá com sua linha depurada combinada ao surfe progressivo e limpo, brigará com chances reais de título mundial. E o mais surpreendente: só depende de si mesmo para chegar à decisão, o que é uma vantagem e tanto a esta altura do campeonato.
Logan cai, etapa brasileira sobe
A etapa foi marcada também pela não explicada demissão do CEO da WSL, Erik Logan. A gestão do executivo se notabilizou por decisões controversas, que afetaram profundamente o andamento do esporte, como o corte no meio da temporada e o título mundial decidido num só dia, numa só onda, pelos cinco melhores da temporada, mas ficará eternamente manchada por uma carta infame, destinada aos surfistas brasileiros que se manifestaram criticamente, mas com muita educação, em relação aos critérios de julgamento adotados pela entidade em 2023. No texto, ele os acusava, mesmo sem qualquer possibilidade de estabelecer um nexo de causa entre os dois fatos, de contribuir diretamente para ameaças de morte feitas a Ethan Ewing por conta dos resultados da etapa do Rancho, na Califórnia.
Uns caem, outros sobem. A etapa de Saquarema sai premiada como o mais bem estruturado evento da elite do surfe mundial já realizada em solo brasileiro. Ainda que haja erros técnicos, ao não colocar, por exemplo, um palanque alternativo na Barrinha (o esporte sempre deve ser priorizado quando há recursos) ou ao negar a credencial a jornalistas mais críticos (o contraditório é fundamental para a saúde da entidade), a WSL Latin America conseguiu desenhar um evento que combinou, em doses equilibradas, a atenção aos melhores surfistas do mundo e o entretenimento em inúmeras ativações nas estruturas montadas na Vila de Itaúna. Um sucesso. Saquarema pode se beneficiar bastante desse novo formato, assim como todo o Estado do Rio de Janeiro.
Sei que a etapa não é mais apenas uma celebração-raiz de surfistas, mas o surfe depende dessa inventividade. Quem não sobrevive mais a tantas festas e ativações, tem agora a oportunidade de assistir ao evento no conforto da casa através da boa cobertura do canal Sportv nas areias de Itaúna. Nesta última edição, apenas uma nota negativa, que não é culpa do canal: a melhor onda do campeonato aconteceu no intervalo comercial que a WSL impõe a todas as transmissões durante as baterias, inclusive na final. Ou seja, o espectador não viu, ao vivo, o golaço do Yago. É hora de encontrar soluções comerciais mais inteligentes do que interromper a transmissão do principal circuito de surfe do mundo no meio de uma final.
Que venha J-Bay.