Acordei, em fevereiro de 2015, no quarto de hóspedes da confortável casa do Gabriel Medina, em Maresias, com um sobressalto típico de jornalista: apesar da longa bateria de entrevistas para o livro sobre a história do primeiro campeão mundial da história do país, com muitas histórias gravadas na memória do gravador e rabiscadas em blocos de nota, faltara falar sobre um assunto: o futuro.
Gabriel não é um entrevistado fácil. A blindagem emocional que dentro d’água destrói adversários é a mesma que dribla jornalistas com respostas sucintas. É da natureza dele se preservar. Para alcançar frases precisas, é preciso persistência, paciência e tempo. Ou, em alguns casos, a ajuda luxuosa de um anjo chamado Charles.
A família é sua fortaleza, seu império, e, às vezes, seu canal de comunicação. Mesmo a professada fé em Deus serve, antes de tudo, para conectar ainda mais o surfista à mãe, Simone, ao pai-padrasto Charles, e aos irmãos Felipe e Sophia.
Na espaçosa sala de TV da casa, com decoração clara, vista para a varanda e um troféu da velha ASP adornando o ambiente, Gabriel relaxava refastelado no sofá, depois de tomar café, à espera dos compromissos do dia. Com o celular no modo rolagem, um título mundial ainda fresco e a família a seu lado, o papo inicial não rendeu nada.
Charles, que já sabia da demanda, chegou então à sala com discurso provocativo, sabendo que estimularia papilas gustativas do monstro competitivo que habita o filho:
– E aí, Gabriel, e agora, o que você quer da vida?
– Quero ser tricampeão mundial.
Acordamos todos, na segunda, dia 17 de dezembro, quatro anos depois do primeiro título mundial, com a forte impressão de que Gabriel começaria, ali, a desenhar o futuro previsto aos 21 anos. O palco, novamente, era a inalcançável onda de Pipeline, com seus assustadores canudos, sua perfeição instável, seu temperamento forte.
Em 2018, a meta do tricampeonato pode parecer pequena demais para o surfista que, admitem os críticos, está acima de todos os outros na elite. Ledo engano: a estratégia, ensinada por Charles, é fazer Gabriel desejar metas plenamente realizáveis, para aí, então, traçar novos objetivos. Kelly não pensou em ter 11 títulos de cara.
O tricampeonato faz sentido porque Gabriel e Charles miram o domínio entre os surfistas goofys do planeta – o bicampeonato já o igualou aos australianos Tom Carroll e Damien Hardman. Com mais um, ele assume a liderança entre os de base esquerda.
Por mais que possa parecer um exagero, mais um título, a esta altura, seria um detalhe: já são 12 vitórias (dez finais nas três ondas historicamente mais pesadas da elite – três em Fiji, quatro em Teahupoo e três em Pipeline); e, em 2018, mais uma sequência assustadora de resultados: 1º (Tahiti), 1º (Surf Ranch), 3º (França), 3º (Portugal) e 1º (Pipeline). A furiosa arrancada permitiu que ele praticamente dispensasse tropeços de início de temporada. Salvou apenas Bells, com um terceiro.
Para além disso, o que se viu em Pipe nos últimos dias foi um marco no esporte. Pela primeira vez na história, um goofy dominou Backdoor a ponto de oprimir seguida e sistematicamente adversários regulares na onda para a direita. Ele já havia dado sinais claros de domínio – inclusive com uma nota dez também em 2014 – mas, este ano, consolidou definitivamente o pacote completo. É o primeiro a fazer isso.
Eu queria saber o que John John Florence acha disso tudo, mas, curiosamente, mesmo com o campeonato na porta de casa, o havaiano não apareceu para o protocolo de entrega do troféu ao novo campeão. Está na Austrália, em ritmo de treino.
A narrativa de Gabriel no dia decisivo, que apavorou adversários, enquadrou críticos e encantou os fãs, começou com um passeio no round 4, contra Sebastian Zietz e Michel Bourez. Nas quartas, tudo indicava outra vitória tranquila – era o melhor surfista do evento, até então, contra o apenas honesto Conner Coffin.
Uma pausa rápida: a esta altura, no Leblon, Zona Sul do Rio de Janeiro, o Embalo Bar, boteco raiz que reúne surfistas em torno da televisão para o espetáculo da transmissão do circuito mundial, estava apinhado de torcedores. À medida que a tensão aumentava, a torcida da rapaziada do mar ganhava a adesão de novos fãs do esporte – dos gente boa que sempre frequentam o botequim aos sofisticados que normalmente preferem o vizinho Venga, um bar espanhol.
Pois Conner começou muito bem a bateria, com um 6,83 e um 7,43, enquanto o mar parecia virar preferencialmente para Backdoor. Os mortais que roíam unha no balcão do Embalo já não seguravam mais a tensão quando Gabriel despencou na direção de Pipeline, entubou fundo e saiu para um aéreo na junção. Um justo 9,43 e, no boteco, a primeira comemoração de gol. Mas ainda tinha jogo: Conner vinha surfando sem arestas em Backdoor, e a máquina de direitas estava ligada.
Gabriel, no entanto, levou vantagem na disputa de prioridade, já que a volta de quem surfava para Backdoor era mais sofrida. A vantagem veio na hora certa. Quando a bomba do dia para a direita deformou o horizonte, o brasileiro remou “deep”, dropou no crítico e desapareceu dentro do tubo. O Embalo, por instantes, ficou em silêncio.
De repente, Gabriel escapou pela porta de cima, e a torcida grudada no balcão, entre o tradicional ovo rosa e a sardinha frita, explodiu como final de Copa. Nota dez.
Da areia, Julian assistia a tudo atônito. As câmeras da WSL flagraram a expressão no rosto do australiano no momento seguinte ao tubo de Gabriel. Não era a melhor.
Na outra chave, o australiano vinha em outro ritmo, menos agudo, mas competente o suficiente para seguir adiante. Nas baterias do round 3, contra Miguel Pupo, e na quartas-de-final, contra Joan Duru, venceu com adversários precisando de notas baixíssimas – no caso de Pupo, risíveis 2,61. Aí, não vai qualquer crítica ao australiano. Ao contrário: Julian aprendeu a surfar o suficiente para vencer, e isso costuma ser mortal. Ele só foi fazer uma somatória superior a dez pontos no round 4, e, assim mesmo, uma medíocre média de 12,44, que sequer foi suficiente para vencer sua bateria. Passou em segundo, beneficiado pela patriótica inação de Joel Parkinson.
Aqui, vale um rápido parêntese: sou fã declarado nas linhas finas e suaves de Parko. Ele deu uma rara contribuição para o refinamento do esporte, além de todas as suas qualidades técnicas – entre as quais, diga-se, está a excelência em Pipeline.
Dito isso, Parko estava em seu último evento na elite, com a aposentadoria anunciada, lutando pelo título da Tríplice Coroa, em uma das mais simbólicas disputas da carreira. A seu lado, um Julian sem brilho parecia à mercê de ajuda para não ser eliminado.
A ajuda veio. Parko boiou por minutos a fio e, na série que entrou no fim da bateria, deixou a única onda com perspectiva de pontuação para seu “buddy”. A Stab chamou a atitude de “nobre” – eu não iria tão longe, mas não condeno a decisão de Parko. Imagino como ele se sentiria se enterrasse, ali, a esperança de mais um título mundial aussie. Sim, australianos são patriotas e, diferentemente do que muitos podem crer, jogam pela nação. Eu diria que, antes de condená-lo, talvez valha aprender a lição.
O mais bacana em Julian é perceber que seu surfe é modulado pelo adversário. Foi assim que, pressionado por Kelly Slater e Gabriel Medina, produziu suas duas melhores médias no evento. Foi o suficiente para vencer o surfista 11 vezes campeão do mundo.
O americano, aliás, merecia um texto à parte, pelo milagre de, aos 46 anos, eliminar garotos com a metade de sua idade, como Filipe Toledo, num mar absolutamente assustador. E também pelas escorregadas eternas, como atrapalhar a bateria feminina depois de ser eliminado na semifinal, e não escrever uma linha sobre o título de Gabriel, pelo menos até as 15h15 do dia 19, em suas comentadas mídias sociais. Vale lembrar que Kelly escreveu um prefácio cheio de elogios na biografia do brasileiro.
O post de Kelly foi sobre Filipe Toledo, que, aliás, merece todos os elogios pela brilhante temporada. Em muitas ondas da elite, hoje, o filho de Ricardinho é o melhor surfista do mundo, sem conversa. Veloz, inventivo, bom de carving, fluido, é realmente um enorme prazer vê-lo desenhar ondas. Não acho que Filipe tenha perdido o título em Pipeline, onde ainda precisa investir seu tempo, e sim na perna europeia, onde chegou como líder, em ondas que teoricamente é dominante, e saiu com dois décimos-terceiros lugares, sem a liderança.
O post de Kelly, embora elogioso e aparentemente sincero, parece ter a velha manha do mestre dos jogos mentais: a escalada sobre o adversário acompanhada de elogio. Kelly adora surfistas com postura humilde diante dele, e usa isso a seu favor.
Não achei vantajoso. Filipinho poderia atropelá-lo na próxima bateria, exatamente como o americano faria se estivesse em seu lugar. E como Gabriel e Adriano de Souza fizeram com Kelly, em momentos distintos. Os gringos adoram que os brasileiros sejam humildes, mas os dois nos ensinaram que, ali, para vencer, só com o pé na porta.
Filipe talvez seja o mais talentoso, dono do maior dom, o surfista mais fora da curva, mas não tem uma linha naturalmente orientada para Pipeline. Não importa – muitos outros não tinham e venceram por lá, como, por exemplo, o tricampeão Mick Fanning. Basta interromper as férias e gastar o resto de temporada, além do QS no início do ano, em Pipeline, que ele rapidamente se colocará entre os melhores daquela onda.
Em 2019, não é difícil dizer que ele estará novamente, com conforto, ao lado de Gabriel, de Julian e, talvez, de Italo Ferreira na disputa pelo título da temporada.
Mas, em Pipe, no histórico 17 de dezembro de 2018, o dia parecia ser de Gabriel.
Depois de atropelar impiedosamente Conner, o garoto de Maresias partiu para mais uma tarefa que aparentava tranquila. Jordy Smith é um excepcional surfista, de uma casta restrita dos que combinam linha com power de sobra, mas, especialmente em esquerdas tubulares, ainda precisava mostrar serviço. Backdoor estava à disposição de seu surfe, mas o brasileiro vinha mais encaixado que os demais de costas para a onda.
E, claro, como aconteceu em quase todo o evento, o sul-africano apertou o pescoço de Gabriel com duas boas ondas sucessivas, claro, para Backdoor: um 7,33 e um 8,50. O brasileiro, em seu modo mais vencedor da história, respondeu com um 7,17 para Pipe e, como em outras baterias, mais um highscore de costas para a onda: 9,10.
Aí veio a onda que alguns consideraram polêmica. Jordy dropou para Pipeline, botou para dentro e, para virar, precisava de um 7,78. A onda foi limpa, o tubo estava bem desenhado e o narrador Ross Williams cravou que ele trocaria a nota anterior, um 7,3.
Os juízes lhe deram um 7,27, de pirraça. Eu estava na turma dos que consideraram a nota baixa demais, quando um amigo apontou para o bico da prancha de Jordy, que apareceu durante quase toda a extensão da onda. Em outras palavras, faltou ao sul-africano manha para lidar com a bola de espuma na parte mais “deep” do tubo. Juízes punem. Não à toa, o sul-africano não costuma ir longe em esquerdas tubulares.
A sequência foi uma espécie de contagem regressiva de 13 minutos. Os deuses de Pipeline, sejam lá quem forem eles, impediram que entrasse nova ondulação que permitisse ao bom sul-africano a virada sobre o brasileiro.
No Embalo Bar, a contagem regressiva parecia a de um ano-novo, e era mesmo a da consolidação de uma nova era do surfe brasileiro, com dominância nunca vista.
Dali em diante, era quase tudo comemoração, a não ser para Gabriel, que aprendeu com o relaxamento excessivo de 2014 e queria o título do Pipe Masters, em apropriada revanche com Julian. Como em outras baterias daquele dia mágico, o adversário, já declarado vice-campeão do mundo, começou apertando o monstro competitivo, mas acabou sendo engolido. E, mais uma vez, uma onda para Backdoor, de costas para a onda, foi a diferença da disputa.
Numa só tacada, Gabriel conquistou o título mundial; levantou a sonhada prancha dada aos vencedores do Pipe Masters; afastou o fantasma de ser freguês de Julian ao igualar o número de vitórias em finais entre os dois (3 a 3) e, mais que tudo, deu um aterrador recado a seus concorrentes, deixando claro por que está no topo do mundo. Quem quiser arrancá-lo dali, vai ter que ralar muito.
Entre as nações, o Brasil consolida o domínio. Além do título do ano, foram nove vitórias em 11 provas na temporada, a tríplice coroa havaiana conquistada pelo bom Jessé Mendes e o título mundial júnior na conta do talentoso Matheus Herdy.
Mas, hoje, acima de tudo, Gabriel é o melhor. Como admitiu Martin Potter, durante a transmissão online, o bicampeão mundial “está um degrau acima dos demais”.
Está claro: é isso o que ele quer da vida. Feliz 2019 a todos nós.