Miguel Pupo, enfim, reencontrou Miguel Pupo. Aquele moleque talentoso do litoral Norte de São Paulo, expressivo e moderno, vencedor do evento que inspirou a criação da expressão “Brazilian Storm”, o QS Prime de Trestles de 2011, finalmente ficou cara a cara com o maduro Miguel Pupo, um grande surfista de 30 anos.
Quem ama o surfe de linha, finamente executado, torcia silenciosamente por esse encontro entre passado e futuro a cada início de temporada, como se o desencantar deste surfista fosse sempre algo iminente. Mas, coisas da vida, 11 anos se passaram até que, em 2022, Miguel Pupo resolvesse procurar pelo Miggy moleque, atrevido.
Toda a temporada de 2022 do primogênito de Jeane e Wagner foi consistente, é verdade. E o mundo inteiro percebeu a diferença em seu espírito competitivo, preparação, abordagem. Uma faca foi vista entre seus dentes, dizem.
Mas a mais casca-grossa etapa do CT, no Taiti, onde uma parte importante da elite puxou o bico com pavor da onda, foi o palco perfeito para o reencontro de Miguel com a sua melhor versão e, por consequência, com a vitória. O paulista do Litoral Norte venceu, na final, o inventivo local Kauli Vaast.
Sexto no ranking de 2022, campeão na onda quadrada de Teahupoo, a míseros 85 pontos do WSL Finals, reconhecido por toda a comunidade – até pelo Peter Mel (!) – como um grande surfista de linha e de tubos e, por último, mas não menos importante, pronto para dobrar a aposta em 2023: o garoto Miguel voltou.
Na entrevista depois da vitória, ele deu uma pista de quem provocou esse reencontro. Repetiu diversas vezes que jamais tinha treinado tanto na vida numa pré-temporada, dentro e fora d’água. Sem suor, é fato: nem o refino de seu surfe venceria.
Dentro d’água, no primeiro round, não eliminatório, perdeu para Connor O’Leary em bateria apertada, mesmo fazendo a quarta maior soma da fase, um respeitável 15,27. Seu maior aperto no entanto foi na repescagem, quando virou fora da prioridade a pouco minutos do fim em cima de Nat Young.
Nas oitavas, atropelou o pior surfista do evento, o americano Jake Marshall, que vencera Cal Robson na fase anterior com inacreditáveis 2,43 na soma das ondas. Não lembro de vitória com média tão baixa na história do WCT.
Nas quartas, Miguel encontrou um aliviado Kanoa Igarashi pela frente. Dominou tecnicamente a bateria, deixando claro que também poderia estar no posto de finalista de Trestles, perdido para o japonês, com a vitória na fase anterior.
A luta de Kanoa merece registro. Foi buscar a vaga no último suspiro, a segundos do fim, quando estava em desvantagem na disputa das oitavas com Jadson André. Como um clássico surfista “clutch”, encaixou-se num tubaço que mudou seu destino. Na hora mais importante da temporada, não hesitou.
Miguel reforçou sua condição de especialista em Teahupoo na semifinal, ao dominar a bateria com Caio Ibelli, um notório especialista em tubos, que se sente claramente confortável em condições extremas, e que já havia dividido o posto de terceiro lugar com ele na primeira etapa do ano, em Pipeline.
Aqui cabe destacar a inteligência tática do campeão. Ele se posicionou exatamente na mesma faixa do lineup que Kauli, local do pico, quando o taitiano disputou a semifinal com Kelly Slater. O 11x campeão acabou fazendo uma das menores somas – senão a menor – de sua história. A dinâmica dos tubos – que corriam rápidos – dava certa vantagem aos goofys, mas o posicionamento foi determinante para a vitória.
Na final, Miguel não se intimidou diante de Kauli e da enorme torcida pelo taitiano. Abriu na frente e sufocou todas as tentativas de reação do local com scores ainda mais altos, em tubos surfados com maestria. Fez valer a quilometragem na elite e venceu com o excelente somatório de 17,17 pontos a sua primeira prova no CT.
O inventivo menino Kauli e o imortal mestre Slater
Kauli brincou em seu playground predileto, a bancada de Teahupoo. A alegria de seu surfe era um nítido contraponto ao terror vivido por alguns integrantes que estiveram no Taiti este ano. Tirou tubos largos, apertados, longos, curtos e, por duas vezes, trocou de base, ficando de costas para a onda, para atrasar usando o grab-rail.
Foi um movimento tão criativo que trouxe à pauta novamente a discussão sobre o “switch stance”, usado em outros esportes de prancha, como o skate e o snowboard, e ainda não aproveitado com frequência, de forma eficiente, no surfe.
Kelly também brincou no seu playground predileto, Teahupoo. Foi assombroso no maior dia do evento, com performances inspiradoras para as novas gerações. O surfe apresentado pelo floridiano nos faz compartilhar por um momento que seja, com ele, o sonho de uma vaguinha para um surfista de 52 anos nos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, que terá como arena exatamente o pico da Polinésia Francesa.
Só uma coisa é certa: ele surfará bem aquela onda para o resto da vida.
Na esteira do rodado Slater, reapareceu no line up do Taiti um velho conhecido daquelas ondas, Nathan Hedge. O australiano fez um estrago no evento – eliminou o líder do ranking, Filipe Toledo, na repescagem, e o vice-líder, Jack Robinson, nas oitavas. Parou diante de Caio Ibelli nas quartas por um desses acasos do destino, quando precisava de uma nota na casa de 2 pontos para seguir na competição.
Filipe e Jack perdem: um apagado, outro brilhante
Não foi desta vez que Filipe Toledo conseguiu superar suas velhas questões com Teahupoo. Nesse drama sem fim, que só se encerrará quando o surfista decidir imergir na onda de Teahupoo, o líder do circuito mundial passou o round 1 perdido no outside, sem saber para onde remar, no dia de mar mais grosso da etapa. Pegou apenas uma onda, a instantes do fim, somando 1,87.
Na repescagem, no entanto, conseguiu se recuperar bem, fazendo um conjunto de tubos honestos surfados com boa técnica para somar 14,83. Do outro lado, estava Hedge, que marcou 9,43 em sua melhor onda e jogou o surfista de Ubatuba nas cordas, precisando de uma onda extrema, um tubo profundo da série, para virar.
Não há dúvida de que Filipe tem todas as ferramentas para estar entre os melhores do mundo mesmo nas ondas mais difíceis. Ao mesmo tempo, tenho a certeza de que a escolha depende apenas dele, e isso precisa ser respeitado acima de tudo.
De todo modo, após a recuperação apresentada em sua última bateria e a derrota do vice-líder Jack Robinson na fase seguinte, Filipe segue firme para confirmar seu título mundial em Trestles, onde, nas palavras de Slater, “ele é o melhor surfista já visto”.
A atuação no Taiti, noves fora erros e acertos, não manchou a brilhante temporada do brasileiro, que venceu duas provas – mas poderia ter vencido outras, se o julgamento permitisse. É o campeão de fato de 2022, o melhor surfista do ano sem qualquer dúvida, e agora corre para confirmar a conquista no WSL Finals.
Jack Robinson, por sua vez, está no posto merecido de segundo melhor surfista do ano. O australiano vive uma estranha sina de vencer sem ser o melhor e perder quando é absolutamente brilhante. Mesmo diante da reconhecida excelência nos canudos mais contundentes, suas vitórias no CT não tiveram o protagonismo do tubo, e foram conquistadas em condições em que outros surfistas se destacavam mais.
No Taiti, por outro lado, deu uma aula suprema de tubos no primeiro round, em mar gigante, quando despencou, sem prioridade, num tubo quadrado, e saiu depois da baforada, para uma nota quase perfeita. Nas oitavas, perdeu para um inspirado Hedge, em condições menores, simplesmente por falta de boa oportunidade de vencer.
De todo modo, chega a Trestles depois de uma temporada incrível, com duas vitórias, um segundo e um terceiro lugares, além da certeza de que sua abordagem agressiva, desapegada a la Andy Irons, pode surpreender em qualquer onda do mundo. A seu lado, um técnico que parece ter contribuído para fazer a diferença, Leandro Dora.
A tragédia de Griffin, a fortuna de Italo. A hora de Trestles
Num ano em que os dois melhores surfistas do mundo, Gabriel Medina e John John Florence, não estiveram na disputa, o surfista que vence duas etapas – como fizeram Filipe e Jack – deveria carimbar o passaporte para as finais sem problemas.
Pois Griffin Colapinto, para mim o terceiro melhor surfista da temporada dentro d’água, mais uma vez ficou de fora da decisão de forma dramática. Um insosso quinto lugar seria suficiente para assegurar a vaga, mas o destino quis que ele caísse nas oitavas de final diante do ascendente Yago Dora. Desde que voltou de contusão, o brasileiro alcançou outro patamar de surfe e, em 2023, promete aumentar a fila de candidatos ao título. No Taiti, ele também surfou bem, embora eu tenha achado que o americano virou na última onda. A WSL já tinha dado outras viradas a favor do californiano e, desta vez, coisas da vida, resolveu manter a vitória do brasileiro, justamente na bateria que definiria a vaga dele no Finals. Cruel.
O posto acabou caindo no colo de Italo Ferreira, que perdeu precocemente para um inspirado Jadson André, que se consolida, ano a ano, como um especialista nos tubos do Taiti. O campeão mundial de 2019 surfou bem, mas perdeu no detalhe – talvez pudesse ficar mais profundo nos tubos, em especial em ondas da série.
Com os resultados do Taiti, seguem para Trestles Filipe, Jack, Ethan Ewing (que no Taiti perdeu nas oitavas para Kauli), Italo e Kanoa. Há dois locais entre os finalistas: um brasileiro e um japonês. A bandeira americana não estará enfileirada na disputa.
Samuel x Mathew, um brilho da etapa (e da temporada)
Samuel Pupo, o caçula do campeão, encerra o ano de estreia repleto de créditos: além dos bons resultados, que lhe garantiram entre os 10 melhores da temporada, ele conseguiu na última etapa o merecido título de “rookie of the year”, ao ultrapassar Cal Robson no critério de desempate.
Para além disso, Samuca ensina ao mundo que é possível, sim, adaptar-se a condições extremas desconhecidas, como foi para ele Pipe e Teahupoo, utilizando-se apenas das ferramentas técnicas preexistentes. O caçula da Família Pupo encontrou um jeito de encaixar sua prancha nos trilhos de tubos mais pesados com poucos movimentos e por vezes até dispensou a mão na borda, o que é bem mais desafiador.
Deixa, em 2022, a impressão de que alcançará em pouco tempo uma posição de protagonismo na elite: domina manobras progressivas, surfe de borda e, agora, ao que parece, está no caminho certo de avançar em tubos mais pesados.
No Taiti, Samuca perdeu em disputa apertadíssima para o surpreendente sul-africano Matthew McGillivray, que começou o ano como wildcard substituto e conquistou a vaga no resto da temporada ao fazer uma semifinal em Margaret River.
Para vencer o brasileiro, Matthew fez a mais impressionante nota 10 de Teahupoo em muitos anos – uma imagem que certamente será repetida pela eternidade. O sul-africano e nós, espectadores, guardaremos para sempre o momento.
Matthew definitivamente não puxa o bico.
(No feminino, apesar da justa vitória de Courtney Conlogue, eu diria que o troféu atirada da etapa foi para Tatiana Weston-Webb. Tati também não puxa o bico.)
Cinco entre os 10
Encerradas as disputas da temporada, temos o campeão mundial moral, de toda a temporada: Filipe Toledo. Como manda a regra, ele terá que disputar novamente o título em Trestles. Só não nos esqueçamos que o país produziu mais um campeão de temporada – o quarto brasileiro na história a ser o melhor de um ano.
No ranking, o Brasil segue firme também em outras posições: além de Filipe, outros quatro surfistas de Pindorama terminaram o ano entre os 10 primeiros do mundo: Italo em quarto, Miguel em sexto, Caio em oitavo e Samuel em décimo.
Agora, é esperar a sirene tocar na Califórnia e, depois disso, 2023.