A promessa é de uma das melhores temporadas da história do surfe, ainda que esta frase seja um velho clichê, repetido desde que inventaram a competição em ondas. Ainda assim, não faltam razões para acreditar que 2023 terá todos os componentes reunidos para dar brilho à competição.
Como sempre, abro a temporada com pílulas de sal contendo prognósticos, apostas, expectativas, pontos de vista e chutes. Também, claro, como qualquer predição, haverá muita imprecisão e tiro na água. Mas sempre vale o exercício. Vamos lá:
– Teremos quatro campeões mundiais em campo, no auge de suas carreiras, em busca de mais um título. Gabriel Medina, John John Florence, Filipe Toledo e Italo Ferreira, surfistas tecnicamente maduros e ainda no pico de suas formas físicas, são desde já mais que prováveis finalistas em Trestles. Se não houver novas contusões no meio do caminho, os desafiantes terão um grande trabalho para ir a San Clemente.
– A luta pela vaga olímpica triplica a importância dos resultados deste ano. Entre os brasileiros, há uma batalha declarada por uma das duas vagas automáticas que estarão disponíveis pelo ranking do WCT. Será preciso estar muito atento à possibilidade de uma terceira vaga, agora possível para o país, em competições da ISA.
– Filipe Toledo tirou uma bigorna das costas com o troféu em Trestles. Mereceu muito a conquista. Um título é, sim, capaz de transformar um surfista. A questão é saber se o relaxamento decorrente vai gerar um competidor mais completo ou um surfista menos interessado. Filipe é favoritíssimo num grande conjunto de etapas, e isso – está provado – é mais do que suficiente para um título mundial, sobretudo com as finais, mais uma vez, marcadas para a onda amigável e caseira de San Clemente.
As circunstâncias – o título recente, as finais marcadas para Trestles, a enorme distância para quase todos os outros adversários em muitas ondas – empurram Filipe inevitavelmente para a condição de favorito a um novo título mundial.
Há, no entanto, um coral pontudo e raso no caminho do surfista. O ubatubense é o único dos três campeões mundiais do Brasil ainda em atividade sem experiência olímpica. Quer muito, natural e merecidamente, o seu lugar em Teahupoo 2024. Ocorre que, a prevalecer seu histórico recente em esquerdas de tubo e consequência, o atual número 1 não iria muito longe se conquistasse a vaga nas Olimpíadas, evento em que o surfe deve ganhar, mais uma vez, uma inédita visibilidade global.
A não ser que decida, por essa inédita circunstância, enterrar definitivamente esta lacuna em 2023, dedicando-se ao aprendizado durante o ano. Como já dito inúmeras vezes aqui, Filipe tem um raríssimo conjunto de técnicas e movimentos que se encaixariam como uma luva na excelência em tubos de costas para a onda.
Em entrevista exclusiva ao Waves, quando questionado sobre Pipeline (onda que oferece, na bancada para a esquerda, dificuldade semelhante à de Teahupoo), Filipe disse que ali era fundamental “reconhecimento do lineup” e “tática”. Eu diria que, especialmente o primeiro item, quando você não é um surfista com facilidade para essas ondas, só pode ser obtido com muitas horas de treino no pico.
– Gabriel Medina usou o ano passado para lidar com um período sabático e a recuperação de uma contusão (a mais importante desde as vésperas de seu primeiro título mundial, entre 2013 e 2014). A luta do tricampeão, agora, está clara: consolidar-se como o segundo surfista mais importante da história. Pode se igualar a Mark Richards já em 2023 e, caso isso aconteça, ainda terá algum fôlego na carreira para tentar o pentacampeonato.
O surfista de Maresias aparenta estar sólido, capaz de manejar melhor o peso das questões familiares recentes, e é o único surfista a exibir algum nível de favoritismo em todas as ondas do tour, o que o posiciona bem para as finais de Trestles. Na onda de San Clemente, será mais uma vez capaz de usar seu arsenal progressivo para se impor sobre todos os outros adversários.
Se não houver contusões importantes entre os melhores do mundo, Gabriel conquista a vaga olímpica e chegará a Teahupoo, em 2024, como favoritíssimo ao ouro olímpico, ao lado do rival Florence. Se Kelly Slater estiver lá, junta-se aos dois.
– Italo Ferreira é sobre intuição e energia. Ano passado, fez uma temporada sem muito brilho, mas acordou em Trestles, onde por pouco não tirou o título de Filipe. Quem o acompanhou pelas redes nos últimos meses, percebeu que a tal centelha que move o potiguar às vitórias está mais acesa do que nunca.
O surfe, bem, o surfe de Italo é sobretudo impressionante. Domina tubos para ambos os lados e é, hoje, sem exagero, o maior showman do tour em manobras progressivas. A única lacuna ainda visível é a costura de seu surfe em ondas de linha, mas já provou ser possível conquistar um título mundial sem esse atributo.
Com o tal brilho metafísico de volta, o bicampeonato é uma realidade palpável.
– John John Florence, em ondas potentes, deveria ser um espetáculo pago. Seu surfe é a expressão mais fina e bem acabada dos violentos swells do arquipélago havaiano.
Encaixa-se em quase todas as ondas – exceção feita a marolas com pouco pulso, onde ele pode ser derrotado por mais surfistas. Além do dom raro, Florence se beneficia involuntariamente de um olhar por vezes encantado do painel de juízes, o que o torna sempre quase imbatível.
O maior adversário dos últimos anos não é Gabriel, Filipe ou Italo, e sim as contusões. O corpo do havaiano vem se revelando incapaz de lidar com a extensão de seu surfe. Em 2023, a primeira vitória será atravessar o ano sem danos físicos. Se isso acontecer, estará com quase toda a certeza entre os cinco de Trestles. Em San Clemente, embora não seja o favorito, terá um caminho aberto para a vitória.
– Não é difícil notar que todos os surfistas acima foram apontados como prováveis campeões do ano, embora só um possa chegar lá. Pois é assim que se faz um ano mágico, com múltiplas – e reais – possibilidades de título mundial.
– Para adicionar ainda mais molho ao ano, 2023 será especial também pelo número de desafiantes ao top 5 aparentemente prontos a um inédito título mundial.
Griffin Colapinto, do ponto de vista técnico, não deve nada a nenhum dos campeões mundiais – pesa contra ele, talvez, apenas a inconstância de resultados. Outros surfistas, como Filipe, já viveram esse drama e o superaram. Em 2022, o americano venceu duas provas e, ainda assim, ficou de fora da decisão do ano.
Kanoa Igarashi, embora um pouco inferior a Griffin tecnicamente, é um surfista letal do ponto de vista tático. Quase não comete erros competitivos e está sempre nas melhores ondas do dia. Implicarei até o fim com seu excesso de uso do fundo da prancha, em detrimento das bordas, mas os juízes parecem não ligar. O Japão, como representante do mercado asiático, é importante para a WSL.
Jack Robinson ganhou incrível musculatura competitiva em 2022 (graças também ao bom trabalho de Leandro Dora) para entrar no seleto grupo de candidatos a título mundial na próxima temporada. É um gênio em ondas agudas e também dono de um vasto repertório de manobras progressivas. Ainda vejo algumas lacunas na linha que faz em certas ondas, mas o australiano parece pronto para desafiar o mundo.
Yago Dora ainda precisa da primeira vitória para deslanchar. Mas, do ponto de vista técnico, e, a partir de 2022, também tático, parece-me se aproximar de modo bastante realista na briga por Trestles. E, se alcançar a final, tem surfe para surpreender. Seu surfe refinado está no auge, e recentemente, surgiu nele uma gana competitiva inédita. Yago é uma aposta pessoal.
– Kelly Slater, com 11 títulos, não está na lista de possíveis campeões do mundo em 2023. Começa o ano, esta semana, defendendo o caneco em Pipeline. Mais uma vez na vida, seu principal adversário será o tempo. Neste velho duelo íntimo com o relógio, perdeu algumas, mas ganhou a maioria.
O competidor mais obsessivo da história abre 2023 com um propósito: conquistar uma das vagas olímpicas para Teahupoo 2024. Deve estar com a saúde na ponta dos cascos, no limite da forma física e focado em não desperdiçar os poucos tiros que terá na temporada para conquistar bons resultados. Ele sabe que fora de ondas tubulares é difícil prosperar nessa idade. O trabalho dele já começa forte, agora, em Pipeline.
Se pegar a vaga olímpica, vira favorito ao ouro. Terá 52 anos, mas o mundo ficará fascinado por mais uma de suas grandes histórias.