Leitura de Onda

Procura-se casa em Trestles

Tulio Brandão analisa a vitória de Gabriel Medina em Rottnest Island e a corrida por uma vaga na WSL Finals.

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Com 76% de aproveitamento, Gabriel Medina segue imparável no Championship Tour.

Gabriel Medina venceu em Rottnest Island, mas desta vez a coluna não tratará de uma simples vitória. Somado aos outros resultados na perna australiana, o topo do pódio na selvagem ilha de calcário da Austrália Ocidental ajudou a cimentar, de modo inédito, superioridade atual do brasileiro bicampeão do mundo sobre seus adversários.

No auge técnico e mental e embalado pela energia de um casamento recente, Gabriel escalou de modo histórico a temporada, com duas vitórias e dois vices em cinco provas, numa arrancada comparável à de Kelly Slater em 2008, quando conquistou o nono título mundial, com quatro topos de pódio nas cinco primeiras etapas do ano.

Não dá para desprezar o fato de que isso aconteceu num ano em que o brasileiro se viu no mundo, pela primeira vez na vida, sem seu técnico, tutor e padrasto Charles. Nem tampouco o aperto pelo problema familiar passado pelo surfista, que o deixou triste a ponto de pensar em não competir na temporada deste ano, como ele mesmo revelou na ótima entrevista que deu no pódio de Rottnest.

As alegrias e tristezas dos últimos tempos acabaram fundando um novo Gabriel, que é aparentemente ainda mais mortal. Dono de uma abordagem relaxada, mais próximo dos velhos amigos do Tour, sereno nas entrevistas e com uma fúria competitiva moderada, ele deu um nó na cabeça de seus críticos. Quem estava acostumado a vê-lo como o “Darth Vader” da história, como o cara a quem os mocinhos, a exemplo de John John Florence, deveriam fazer oposição, foi forçado a reconstruir o roteiro.

Nas cinco primeiras etapas de 2020/2021, são 38 mil pontos em 50 mil disputados, ou 76% do total possível para um surfista. A distância para o vice-líder, Italo Ferreira (também num ano brilhante), é de 8.685 mil pontos, e para o quinto colocado, Morgan Cibilic, que hoje ocupa a última vaga destinada a Trestles, é de abissais 17.630 pontos.

A próxima etapa do circuito mundial é no Surf Ranch, onde Gabriel jamais perdeu.

Como já foram realizadas cinco de nove etapas – sem considerar o possível cancelamento da prova do Brasil, diante do status da pandemia do coronavírus – é possível que a última vaga da WSL Finals seja alcançada com pontuação semelhante à que o brasileiro tem neste momento. Cibilic tem 22.290 pontos em cinco provas.

A próxima etapa é no Surf Ranch de Lemoore, onde Gabriel jamais perdeu. Não seria absurdo se, após o resultado da piscina, o surfista decidisse ficar com a esposa, Yasmin, pela Califórnia e alugar uma casa na charmosa San Clemente, à espera de seus rivais, enquanto treina na máquina de onda high perfomance de Trestles.

Mas perder o bicampeão tentando a primeira vitória no Brasil (se acontecer a etapa), deixar de ver sua dominância em Teahupoo ou desprezar a sua técnica em tubos de costas para a onda em Barra de la Cruz seria realmente uma lástima.

Morgan Cibilic aparece como o candidato australiano a ocupar uma vaga na WSL Finals.

Ao evento: duas chaves, duas histórias

A final não foi o ápice do evento. Da chave oposta à de Gabriel, veio o bom Morgan Cibilic, que aponta como o candidato australiano a espetar seu nome na decisão da temporada, embora ainda esteja abaixo tecnicamente dos líderes.

O australiano vinha sendo bem pontuado em suas pontadas verticais, mesmo quando não chutava a rabeta (como fez com sucesso em Newcastle). Na final, esperou por uma onda salvadora da série que possibilitasse pontuar na escala das intermediárias do brasileiro. A esquerda não veio, e a bateria terminou como esperado.

O rookie australiano derrotou o convidado do evento Liam O’Brien, que disse, em entrevista na véspera da final, já estar feliz apenas por ter avançado uma bateria na etapa. Acabou fazendo uma histórica semifinal, e deixou claro que, com alguns ajustes e evoluções, seu surfe se encaixa bem na elite.

Na outra chave, a óbvia final antecipada, entre líder e vice-líder, que só aconteceu antes da hora porque Italo não passou em primeiro na fase 1 e, por consequência da regra, o chaveamento foi alterado.

O potiguar parece ser o único surfista ativo na temporada a ameaçar claramente as vitórias de Gabriel em todas as arenas. Seu surfe elétrico, potente e rebelde é capaz de produzir, a qualquer instante e em qualquer lugar, uma nota excelente. Nas condições das finais de Strickland Bay, no entanto, o potiguar teve dificuldades para se igualar ao surfe de borda de Gabriel, revelado na ótima onda de abertura da bateria.

Italo Ferreira não esteve em sintonia tão fina com as temperamentais ondas de Strickland Bay, mas, se voltar a brilhar, estará no topo novamente.

Sobre o julgamento de Italo

A injusta derrota de Narrabeen e a reação pública do brasileiro ao resultado ainda são vistas no horizonte. Em Rottnest, apesar de aparecer sempre como uma ameaça, Italo, atual campeão mundial, não produziu sequer uma nota considerada excelente (8+) durante todo o evento. Apesar disso, quase faz mais uma final. Fora de série é assim.

Italo não esteve em sintonia tão fina com as temperamentais ondas de Strickland Bay, mas, ainda assim, surfou bem em algumas baterias. Numa delas, contra o australiano Jacob Wilcox, acertou um full rotation gigantesco de backside, com uma aterrissagem impossível, em que conseguiu se recuperar milagrosamente depois de estar com as costas inteiras na água.

A despeito de não ser uma conclusão limpa de manobra, a nota dada, na casa de medíocres 6 pontos, revela muito sobre um olhar mais crítico do julgamento em relação ao surfe do brasileiro. Em minha visão, os juízes têm sido excessivamente críticos, embora eu entenda que o surfe do potiguar ainda tenha arestas a serem aparadas, sobretudo em transições entre manobras de frente para a onda. Seu surfe de backside, por outro lado, é bem mais refinado.

A Italo, resta fazer o que muitos outros surfistas já fizeram, em situações semelhantes. Gabriel, por exemplo, demorou alguns anos para ajustar a linha de costas para a onda, embora tenha vencido em San Francisco e na Gold Coast antes disso. Adriano não era competitivo em tubos para a esquerda – correu atrás e vai encerrar a carreira com excelentes apresentações em Teahupoo e uma vitória em Pipe.

Será que há, além disso, uma punição inconsciente, materializada numa menor boa vontade dos juízes, por causa do episódio de Narrabeen? Talvez, mas não importa. Juízes são humanos e sujeitos a erros. Se Italo voltar a brilhar, estará no topo novamente. A história do potiguar está apenas começando na elite do surfe mundial.

Miguel Pupo teve grandes momentos na etapa de Rottnest Search.

Miguel, Yago e Adriano

Três outros brasileiros viveram grandes momentos na ilha da Austrália Ocidental: Miguel Pupo e Yago Dora e Adriano de Souza.

Miguel e Yago vêm confirmando a boa fase já apresentada em etapas anteriores, com um misto de linha, estilo e modernidade.

Já Adriano de Souza nos lembrou o poder de seu surfe de costas para a onda e só parou para Italo, em bateria apertada, que poderia ter ido para qualquer lado.

Gabriel e Italo parecem já distantes demais do resto do pelotão em busca de uma vaga em Trestles.

A corrida pela vaga em Trestles

Gabriel e Italo parecem já distantes demais do resto do pelotão para perder a vaga na decisão de Trestles. Sem contar com os dois, sobram três vagas que serão disputadas onda a onda até a etapa de Teahupoo, última da temporada.

Filipe Toledo só perde a vaga para si mesmo. Depois de uma vitória maiúscula em Margaret River, perdeu precocemente em Rottnest, arena em que poderia brilhar, numa temporada até agora de altos e baixos. É dominante na próxima etapa, no Rancho, ficando atrás apenas de Medina, e pode aparecer bem também no Brasil, se a prova acontecer, e nas intermináveis direitas do México.

Ainda tem tudo para chegar entre os cinco. Se chegar, pelo histórico no pico californiano, é favorito ao título do ano.

As duas outras vagas, no entanto, parecem uma bola quicando sem ninguém dizer que é sua. Jordy Smith, hoje em quarto lugar, está sempre entre os melhores, mas seu histórico ruim em arrancadas sob pressão faz com que a vaga não esteja certa.

Cibilic é um garoto ambicioso, que funciona aparentemente bem sob pressão, mas terá surfistas mais experientes e maduros no seu encalço. A ardilosa onda da piscina, com sua cara perfeitinha, mas cheia de armadilhas, será o próximo teste para a sua capacidade técnica e competitiva. Adaptar-se ao novo é requisito de top 5.

John John Florence, contundido, parece mesmo fora da disputa.

À espera de qualquer tropeço, há uma fila boa: os americanos Conner Coffin e Griffin Colapinto, o nipo-americano Kanoa Igarashi, o australiano Ryan Callinan, o brasileiro Yago Dora, o português Frederico Morais e até o também aussie Julian Wilson, um craque que faz a temporada mais apagada e desinteressada da carreira.

Jordy Smith é um dos candidatos a uma vaga na grande final do CT 2021.

Dos dois americanos, prefiro Colapinto, mas o surfe de borda de Conner interessa particularmente os juízes.

Igarashi ainda abusa do surfe de fundo de prancha, mas quando acerta pode ser mortal – especialmente em ondas pequenas como a de Trestles.

Callinan surfa muito de costas para a onda, mas não o vejo na disputa. Kikas é um enxadrista, embora sofra com a ausência de algumas manobras no repertório.

Julian é aquilo: pode terminar o ano com uma sucessão de derrotas precoces ou acelerar para disputar a vitória em picos como Barra de la Cruz e Teahupoo.

Agora, Yago. O garoto fez o surfe mais completo de Rottnest Island – não apenas por ter acertado a melhor manobra do evento, mas sim pelo conjunto da obra. Só perdeu porque errou sucessivamente nas quartas de final contra Italo, ainda que o potiguar não estivesse no topo de seu surfe. Tem um repertório completo, com um cardápio variado de aéreos; faz um dos melhores carvings do mundo de frente para a onda (com arcos mais limpos, por exemplo, que os de Gabriel e Italo); e domina a arte do tubo. Este ano, ganhou uma dose de espírito competitivo.

Se apertar o ritmo, disputa em igualdade com os melhores uma vaga nos top 5.

Piscina de pressão

Agora é a hora do Rancho, prova muitas vezes monótona, que tem como maior virtude expor os surfistas à pressão de não poder cometer erros diante da escassez de oportunidades. É um teste e tanto para os nervos dos melhores do mundo.