Margaret River nos lembrou Adriano de Souza, campeão por lá, com sua velha máxima “preciso ser melhor que meu adversário apenas durante os 30 minutos de bateria”.
Jack Robinson é um fora de série em ondas tubulares, mas a segunda vitória da carreira no CT veio, tal como a primeira, em evento em que não era dominante.
Mesmo em casa, Robbo não parecia estar entre os melhores. Venceu à moda Mineiro, sem ser necessariamente o destaque, mas com somatório para, exatamente como o campeão mundial de 2015, bater o melhor surfista de West Australia e bicampeão da prova, o havaiano John John Florence, em final disputada na direita do Main Break.
Uma importante diferença na comparação com o surfista brasileiro é o status junto ao painel de juízes. Adriano não teve vida fácil no tour. O australiano, por outro lado, tanto no México quanto em Margaret, venceu baterias controversas e foi recorrentemente avaliado com boa vontade. Na primeira vitória, ainda em 2021, a maior dúvida ficou na final, contra Deivid Silva. Agora, em casa, o resultado mais duvidoso pintou nas oitavas de final, contra Barron Mamiya.
O julgamento, aliás, merece uma atenção especial, ainda neste texto.
Na final, apesar de mais uma vez haver ondas sobrevalorizadas do australiano, a vitória, pela troca de ondas entre os dois surfistas, foi justa. John John Florence fez a maior nota da bateria, mas não esteve a altura do que apresentou no restante da etapa, deixando escapar mais uma vitória óbvia na carreira.
Ainda assim, é preciso deixar marcado, Florence esteve mais uma vez alguns degraus acima dos adversários – ninguém é capaz de encaixar um arco com borda enterrada nem parecido com o do vice-campeão na selvagem onda de Margaret.
Uma nota rápida: achei bem ordinário o aéreo de Robbo na final, sobretudo pela aterrissagem em cima da onda, mas o conjunto de suas ondas foi vencedor. Apropriou-se de modo inteligente do íntimo conhecimento do pico.
Na semifinal, apropriando-se dessa escolha de ondas superior, ele já vencera Ethan Ewing, outro surfista com arcos mais bem desenhados durante a etapa. O virtuoso surfista de North Stradbroke Island, aliás, com mais um terceiro posto, confirma as expectativas geradas. Encaixou seu talento no universo competitivo da elite.
Na outra chave, Florence demoliu o bravo Matthew McGillivray com uma soma quase perfeita, inalcançável. Estava tão acima dos demais que se descuidou na final.
Matt é uma história à parte na etapa. Chegou à Margaret perigosamente perto da degola e saiu com o terceiro posto na prova, a vaga garantida no resto da temporada e o título de “clutch” de W.A. (“Clutch”, no basquete, é o jogador capaz de decidir o jogo com uma cesta nos últimos segundos).
Matt estava à beira do cadafalso, a três minutos do fim, nas oitavas de final contra Kanoa Igarashi, acossado pela prioridade do japonês, num mar-liquidificador. Precisava de um 5,57 – nota aparentemente ordinária, mas não naquelas condições. Veio a última onda da série, visivelmente sem espaço para o surfe, fechada, e Kanoa liberou a vaga torta sem medo do adversário virar o placar.
Matt remou na onda, cavou na base e escalou, totalmente desapegado e sem qualquer traço de medo, para uma assustadora batida-floater na junção. A prancha, disse ele na entrevista pós-bateria, chegou a sair do pé. Mas voltou a tempo do sul-africano seguir na prova e escapar do corte.
Às vezes, uma junção aterradora e deformada pode valer a história de uma carreira.
Entre os surfistas que ficaram nas quartas de final, destaque para Italo Ferreira, o brasileiro mais bem colocado, em sintonia com a pesada e difícil onda oferecida por W.A. Um quinto lugar certamente não estava nos planos do campeão mundial de 2019, mas foi o suficiente para posicioná-lo finalmente entre os cinco melhores surfistas do ano, dentro do grupo que disputará o título novamente em Trestles. Apesar do avanço no ranking, o resultado acende um sinal amarelo: pela primeira vez em muito tempo, o Brasil fica sem representantes nas semifinais.
Chumbinho, a face mais infame do corte
João Chianca estaria, numa avaliação crua de performance, entre os 10 melhores surfistas da temporada. Com algum conforto, eu diria. Mas, este ano, de modo não planejado, a WSL – com o apoio dos surfistas, é bom que se diga – tomou medidas que feriram gravemente a capacidade de estreantes competirem na elite.
Assim, Chumbinho enfrentou Italo cedo demais. Assim, entrou no corte.
Já era difícil antes, quando só havia a dificuldade da regra do seeding combinada ao julgamento subjetivo do esporte. Este ano, de uma só vez, como já explicado na última coluna, a entidade eliminou o seeding reward, justa recompensa dada ao surfista vencedor do primeiro round e, ao mesmo tempo, aplicou um corte bruto antes do meio da temporada.
Aqui cabe dizer que as duas medidas foram aprovadas, em 2020, pelos próprios surfistas, através da entidade que os representa, a World Professional Surfers (WPS). A decisão pelo fim do seeding reward, de modo inacreditável, foi tomada pelo grupo, ainda que fosse recomendável manter a recompensa. Já o mid season cut surge como uma ferramenta aparentemente comercial da WSL, como um marco de meio de temporada, capaz de atrair a atenção do esporte para disputas dramáticas.
Margaret River, que pagou caro para ser a etapa escolhida para o corte, acabou vendo poucas disputas dramáticas dentro d’água. Quase todos os ameaçados sucumbiram precocemente, muitos no round 32, pressionados pela iminência da degola ou mesmo pela inferioridade técnica.
O corte de meio do ano, somado ao fim do reposicionamento, é um erro que desequilibra a justiça da disputa e impacta a carreira de quem lutou a vida toda por um lugar no CT e não conseguiu desfrutar de uma temporada completa – seja para ganhar fôlego na briga pela vaga, seja para fechar com patrocinador.
As decisões, no entanto, foram pactuadas no “surfer’s agreement”, contrato entre surfistas e a entidade, com essas cláusulas. A WSL é uma empresa com obrigação de gerar resultado, numa louca busca por ferramentas que produzam esse fim. Todos os movimentos recentes, que assustaram muita gente, surgem como estratégias para turbinar um esporte que ainda não obtém margens sustentáveis de lucro.
Ainda assim, como já dito, não concordo com parte desses movimentos, sobretudo as que afetam de algum modo a dinâmica e a justiça do esporte. Além do corte do meio do ano e do fim do seeding reward, há ainda conflitos aparentes de calendário nas três divisões (QS, Challenger e CT) e uma vantagem absolutamente insuficiente do líder do ranking mundial na disputa do título na WSL Finals, entre outras questões.
É preciso buscar caminhos mais inteligentes para levar o esporte adiante. O tempo dirá se a entidade evoluirá suas estratégias. A primeira mudança a acontecer deve ser a volta do seeding reward, já em 2023, segundo informou a entidade.
Dos que caíram para o Challenger, para mim, alguns outros surfistas farão falta, além de Chumbinho: Owen Wright, especialmente em G-Land e Teahupoo; Yago Dora, injustiçado pela contusão e, até agora, sem pronunciamento da entidade sobre o futuro do surfista; Imaikalani deVault, com seu surfe bonito, embora ainda com lacunas aparentes; e Deivid Silva.
O bom surfista paulista, que merece um parágrafo à parte, foi impactado por problemas de saúde da família no início do ano. No entanto, na etapa decisiva, em Margaret, parece ter ficado psicologicamente bloqueado diante do desafio de brigar pela vaga num mar assustador e selvagem de 15 pés. Acontece, nada mais humano que isso, eu ficaria congelado. Mas pode custar uma vaga, como aconteceu.
As ausências de Frederico Morais, Leo Fioravanti, Carlos Munoz e Lucca Mesinas serão sentidas especialmente pela importância geopolítica para o surfe. Europa (Portugal e Itália), Costa Rica e Peru precisam circular com mais frequência na elite. Destes surfistas, lamento especialmente a má sorte de Munoz, que saiu contundido ainda em Pipeline, mesmo tendo vencido a sua bateria anterior.
Lutar é a rotina de Jadson André
Jadson André jamais teve vida fácil na elite. Aprendeu, e realmente ensina isso ao mundo, que nenhuma resistência será capaz de conter a sua vontade de estar lá. Estreou em 2010 no CT, ano em que conseguiu sua única vitória na elite, e, desde então, só esteve fora do circuito em 2013 e 2018.
O potiguar está longe de ser o melhor surfista da elite. Mantém algumas lacunas visíveis para um atleta do CT, sobretudo nas transições entre manobras, mas compensa todas elas com uma entrega total, única no esporte. É mal julgado com uma frequência preocupante, mas não perde o foco. Em Margaret, fez mais um de seus milagres diários, ao escapar da degola na última hora, e só não foi mais longe porque, novamente, os juízes achataram vergonhosamente as suas notas.
Jordy Smith, que venceu sem merecer a bateria de oitavas de final contra Jadson, é uma sombra do surfista de linhas elegantes e potentes que já encantou o tour.
Outra bateria controversa foi a que eliminou precocemente o líder do ranking, Filipe Toledo, que mais uma vez vinha surfando consistentemente, em disputa com Nat Young. Três juízes deram a vitória ao brasileiro, mas outros dois baixaram a escala a ponto de eliminá-lo, por três centésimos. O julgamento das etapas australianas foi especialmente confuso. Erraram realmente na mão. Feio.
G-Land com “G” de Gabriel?
O tricampeão mundial Gabriel Medina, enfim, está de volta. Escolheu retornar numa onda que parece inteiramente afeita a seu surfe, G-Land. É um candidato óbvio ao título da etapa, o que pode resultar numa espiral positiva rumo a uma surpreendente vaga em Trestles, mesmo com cinco paradas a menos que seus rivais. Se ele ao menos tentar o feito, já ajudará bastante a dar um sabor à temporada de 2022. De todo modo, mesmo se não ganhar nada, a WSL já o garantiu como wildcard ano que vem.
Que toque a sirene na Ilha de Java.