Não é fácil ser gauche na vida, como nos diz o poema de Drummond. Canhotos gastam a eternidade a desentortar hábitos para se adaptar ao mundo perfeito dos destros.
Gabriel Medina e Italo Ferreira não fizeram a primeira final goofy da história do evento na melhor direita do mundo por acaso. Os dois representam a resistência dos surfistas de base esquerda a um circuito mundial predominantemente orientado aos regulares.
Essa é uma história de adaptação, de esforço e de resultado. Os dois se reinventaram, lapidaram as virtudes preexistentes e, assim, anularam a gigante vantagem da multidão de base destra.
Jeffreys Bay viu, através de dois foras de série, o redesenho do surfe de costas para a onda. A dupla, que já tinha apresentado uma degustação dos novos movimentos nas ladeiras de Bells este ano, consolidou o novo pacote de ataque.
No cardápio, um surfe mais vertical, mais violento, com carvings estupidamente estendidos e, sobretudo, com ataques infames às junções, com voltas grudadas no lip, frequentemente descoladas da parede, aéreas, em ladeiras negativas.
Italo, durante todo o evento, esteve acima da média. Na final, o talento esculpido em Baía Formosa pintava como favorito no confronto com o bicampeão mundial. Vinha de melhores baterias, tinha eliminado com autoridade o manda-chuva do evento, Filipe Toledo, nas semifinais, e ostenta larga vantagem no confronto direto.
Mas havia um bicampeão do mundo no caminho.
Na decisão, Gabriel surfou duas ondas para a história, que impactaram juízes e espectadores pela extensão e potência, pela abordagem desapegada de limites, pela disposição de fazer o que os outros surfistas de base esquerda não tinham feito até ali.
A finalização na primeira das duas ondas surfadas na casa de 9,7 é candidata, desde já, à melhor manobra da temporada – não seria exagero pensar em melhor manobra não aérea de costas para a onda da história.
Os juízes economizaram ao não darem o dez perfeito, sobretudo na comparação com a onda anterior do rival. Não consideraram na nota a extrema excepcionalidade da manobra – como no caso do tubo do Italo este ano em The Box. Sempre que voltarem a falar da onda, perceberão o erro.
É importante notar que a performance de Gabriel na final deixou um monstruoso rival em combinação mesmo com nota na casa de 9 pontos contra no marcador.
O domínio goofy em J-Bay reafirma, portanto, a arte do drible diante da adversidade. O circuito mundial é predominantemente em direitas? Favorece regulares? Sim e sim.
Mas, uma hora, claro, os melhores surfistas de base goofy reinventariam a abordagem de costas para a onda para assumir o comando. O bicampeonato de Gabriel já antecipara essa reação gauche, mas as performances recentes são a confirmação.
Da mesma forma, anos atrás, foras de série de base regular, como Kelly Slater e Andy Irons, aprenderam novos recursos técnicos para assumir o domínio de esquerdas tubulares. O controle de aceleração de grab-rail é um recurso nascido na adversidade.
(Um parêntese rápido: falando em regulares, é lamentável a ausência de John John Florence no resto da temporada. Houve quem defendesse, como o técnico Ross Williams, que o título de 2019 deveria conter um asterisco, devido à contusão do surfista, que liderava a corrida. Loucura. O nível de surfe apresentado em J-Bay fez o mundo não mais sentir a ausência de Florence, embora sigamos lamentando por ele.)
O surfe é fascinante também porque a diferença entre a glória e o esquecimento está no detalhe, muitas vezes fora do controle, até mesmo do campeão da etapa. No pouco falado round of 16, quando ninguém ainda parecia ter se descolado – a não ser Filipe Toledo – Gabriel esteve diante de uma derrota iminente para Ryan Callinan.
O australiano tinha a vantagem no placar e o direito de escolher a onda muito perto do fim, mas entregou pateticamente a bateria ao desperdiçar duas prioridades sucessivas – numa delas, remando sem conseguir entrar, e, na outra, escolhendo uma direita fraca em vez de segurar a prioridade contra o brasileiro no último minuto.
Uma derrota, ali, possivelmente afastaria o brasileiro definitivamente da disputa da temporada. Mas o acaso, ou a misteriosa fé, ou mesmo a amarelada de Callinan, colocou-o de volta no jogo. Gabriel, claro, não desperdiçou as duas chances que apareceram e degolou sem piedade o australiano quase na última volta do ponteiro.
Nas quartas e na semi, aquecendo o motor, o atual campeão do mundo foi superior, respectivamente, a Owen Wright – que havia o eliminado em 2014 – e a Kolohe Andino. O californiano, com o terceiro lugar, tornou-se o primeiro representante dos Estados Unidos a liderar o circuito mundial desde o fim da era de dominação de Kelly Slater.
Kolohe, a despeito de sua notada evolução, precisa se conscientizar da fragilidade de sua posição de líder se quiser o título da temporada. Houve quem dissesse que sua bateria contra Gabriel foi mal julgada, mas não. É preciso ir além de alley-oops repetidos e sem tanta expressão em ondas intermediárias e sem risco.
Especialmente contra o trio brasileiro (Filipe, Italo e, agora, Gabriel), a vitória virá se ele provocar surpresa, se realmente impactar juízes. E, também, se tiver muita gana, porque a turma de Pindorama está fungando em seu cangote.
Talentoso, Kolohe só precisa soltar as amarras que por vezes limitam a variedade de seu surfe em baterias. E, claro, vencer etapas, se quiser o título.
Na outra chave da semifinal, ficou o grande favorito do evento, Toledo. O ubatubense surfou o fino nas ladeiras africanas, mas boiou muito na bateria e viu Italo fazer um 9,5 e comemorar a la Cristiano Ronaldo, no estilo “eu estou aqui, eu estou aqui.”
Às vezes, me desespero com a excessiva tranquilidade de Filipe em momentos cruciais. É surpreendente, naquele mar da África do Sul, que ele tenha surfado apenas duas ondas em 35 minutos de semifinal. Entendo que seja criterioso na escolha, mas precisa fazer girar um pouco mais suas oportunidades, em tentativas, para achar as certas. Afinal, é um dos poucos surfistas capazes de fazer notas máximas em ondas ordinárias.
Filipe segue bem posicionado para a temporada, na vice-liderança, colado em Kolohe. Em alguns dias, enfrentará o desafio de provar, mais uma vez, sua consistência em ondas de consequência, depois do revés sofrido em The Box.
Se passar com um bom resultado pelos canudos de Teahupoo, como fez ano passado, segue firme para disputar com algum conforto o caneco no fim do ano.
O Taiti testará também a vocação e sobretudo a constância de Italo, atual quarto do mundo, que, apesar da reconhecida técnica em tubos mais agudos, ainda não passou das quartas de final no rolo compressor polinésio.
Diante do que aconteceu na África e do histórico de resultados recentes no Taiti, todos os candidatos ao título – do líder Kolohe ao sexto lugar Jordy Smith (que perdeu grande oportunidade em casa) – devem se preocupar com o surfista que ocupa, atualmente o modesto sétimo posto da temporada.
Desde 2014, Gabriel, bicampeão da prova, só não esteve na final de Teahupoo uma vez, quando perdeu numa semi controversa para John John Florence, em 2016.
Será que Gabriel vai repetir a escalada de 2018? A resposta está guardada na bola de espuma dos tubos cristalinos da Polinésia Francesa. A ver.