As ondas do Rancho são iguais, sempre perfeitas – uma direita em pé e uma esquerda mais cheia, num trilho rápido, quase desconfortável, mesmo para os melhores.
O campeão é o mesmo. Claro. Se a onda não muda, se não há variáveis que podem desequilibrar o implacável Gabriel Medina, ele será o campeão.
O desafiante também tende a ser eternamente Filipe Toledo, por seu talento e criatividade, e também pelo brilho nas direitas e limitações nas esquerdas.
As ondas quebram com hora marcada. Do mesmo jeito, na mesma hora, no mesmo lugar, com início e fim claramente delimitados pela estrutura construída.
Qual é a diferença do surfe para o previsível mundo real?
Sentar no fundo à espera de um pulso no horizonte. De uma surpresa. De uma experiência marcante, inesperada, que cola em nossa alma. Todo o resto, os surfistas, as pranchas, a cultura e, claro, as competições, vem a reboque do que é essencial.
Há certa previsibilidade em outras etapas e vitórias, a despeito de, na água salgada, sermos abençoados pelo mandamento de que uma onda jamais é igual a outra.
A diferença é que, no mar, a danada da natureza dá conta de filtrar a necessidade, tanto dos homens quanto de suas organizações, de controlar o destino.
No Rancho, a onda foi desenhada matematicamente, por profissionais brilhantes. Uma obra de arte, se vista isoladamente, em seu formato e extensão. Mas, na exaustiva repetição, na sucessão de eventos, a maravilhosa invenção agride a essência do surfe.
Faço aqui um apelo à WSL, um tanto ingênuo, admito, antes de seguir com os desdobramentos do evento: por favor, encontrem um caminho criativo para construir, pelas próprias mãos, a sagrada imprevisibilidade também na etapa de ondas artificiais.
Vale qualquer caminho – desde os de ordem técnica, como alteração da dinâmica da onda do Rancho, sem direito a treino prévio de ninguém – nem do dono da casa, claro – até a realização da etapa de ondas artificiais em piscinas distintas ano a ano.
Dito isso, vamos à etapa do Rancho. Surfista a surfista, já que as baterias neste caso são apenas um modo formal de agrupar surfistas numa pseudo disputa. Na real, como bem disse o campeão da prova, é preciso se preocupar apenas com a própria performance, e não com adversários.
O letal Gabriel, mais uma vez, mostrou que, em condições idênticas a seus adversários, onda por onda, hoje, tornou-se um surfista imbatível. Além do auge técnico, é um surfista capaz de desprezar a pressão da obrigação de surfar no limite, numa onda difícil, cheia de armadilhas, e diante de adversários dispostos a tudo para barrá-lo.
A esquerda que lhe valeu a maior nota da final talvez tenha sido uma das ondas mais bem surfadas no ano, do início ao fim. A sequência de manobras, as transições, as escolhas de manobras fortes, o kerrupt limpo e até o cutback derradeiro, com reverse na volta, montam um mosaico praticamente perfeito. Uma aula.
Nas atuais condições do Rancho, não vejo um surfista capaz de alcançá-lo.
Filipe, o vice, é um respiro para quem ama o surfe. Mesmo naquela matemática, foi capaz de nos proporcionar momentos mágicos, como o mais limpo club-sandwich que já vi, um encaixe de tubo de layback primoroso e a diversão final do tubo de base trocada, depois de um manobra varial no meio da onda.
Owen Wright, o terceiro, parece ter acordado definitivamente de sua letargia, para o bem de quem gosta de linhas bem desenhadas. Surfou bem mais uma vez. Seu tempo de reação, em 2019, acompanha o do atual bicampeão mundial. Resta saber como ele se comportará nas ondas europeias, onde o parceiro de equipe também brilha.
Griffin Collapinto, o quarto, tem o DNA do futuro do surfe. Ainda erra bastante, mas, quando acerta, assusta os tops do mundo. O resultado na piscina de Kelly, onde a comparação é apenas entre surfistas, não entre ondas, confirma o que se espera dele.
Julian Wilson e Jordy Smith, dois excelentes surfistas, crescem naturalmente quando as ondas são iguais para todos. Jordy surfou muito bem nas eliminatórias, mas não se encontrou na final. Julian fez uma esquerda potente, com a finalização que tentava desde o ano passado, e foi fartamente recompensado por isso. Mas, na direita, onde dominou em 2018, não achou a nota que precisava para brigar pelo título.
Entre os demais brasileiros, destaque para Yago Dora, que fez o melhor tubo de um goofy da história da direita do rancho, e Willian Cardoso, que, embora não tenha ido para a final, ajustou seu surfe potente de base-lip às paredes artificiais do Rancho.
O resultado que não se explica é o de Italo Ferreira, um dos poucos surfistas capazes de ir além do óbvio naquelas ondas. Parece não ter resistido à obrigação de não errar, diante das oportunidades restritas. Nem foi à final, o que subverte a lógica. Tem um talento sobrenatural, mas precisa se esforçar na direção do foco, da concentração, para combater a instabilidade que lhe reduz as possibilidades de briga pelo título mundial desde que começou a vencer provas, em 2018.
A expectativa de evolução, ano a ano, entre os homens, não foi cumprida. O salto foi pequeno para o que se esperava. Um bom momento para falar das mulheres, que deram um salto evolutivo gigantesco. Foi um enorme prazer ver as abordagens corajosas e criativas de Lakey Paterson e Johanne Defay, respectivamente campeã e vice da etapa. O formato da onda pareceu se encaixar como luva no surfe das duas.
De volta aos homens, com a vitória, Gabriel assume, enfim, a ponta da temporada. Nem os desafetos do bicampeão, hoje, deixam de apontá-lo como favorito a mais um título. John John Florence está fora; Filipe luta contra uma contusão; Jordy Smith ainda não venceu este ano; Italo é um fenômeno que ainda sofre com apagões; e os dois novos candidatos na briga em 2019, Kolohe Andino e Kanoa Igarashi, parecem ter perdido o fôlego vencedor com o atropelo do novo líder. Os dois, aliás, decepcionaram no Rancho, onde deveriam estar entre os favoritos.
A dinâmica da disputa do título mundial de 2019 depende muito da recuperação imediata desses adversários. Sorte dos espectadores que a Europa sempre nos reservas grandes surpresas. Resta saber quais surfistas vão se apresentar para a briga com Gabriel – Filipe, Italo e Jordy são as minhas apostas como adversários possíveis.
Que venha a França. Bienvenue, les vagues de Capbreton.