Leitura de Onda

Um saboroso déjà vu

Tulio Brandão fala sobre mais uma vitória de Gabriel Medina e a bela campanha de Filipe Toledo no Surf Ranch Pro.

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Gabriel Medina foi mortal no Surf Ranch Pro.

A primeira etapa da WSL no rancho de ondas artificiais é vendida sempre como o evento futurista, a nova fronteira do esporte.

Mas, fora o show proporcionado por uma lista restrita de surfistas liderada por Gabriel Medina e Filipe Toledo, foi uma sucessão infinita de déjà vus, uma repetição monótona que lembrou as rotinas dos conservadores esportes olímpicos. De propósito, talvez.

Surfistas não são acostumados à monotonia (veja, há uma enorme diferença entre a espera de uma onda desconhecida, inesperada, e o movimento repetido de um fólio).

O intervalo entre as ondas de máquina é estupidamente grande – o que gera uma inacreditável sucessão de anúncios, ou melhor, na falta deles, de apresentações de atletas. O jingle de apresentação da entidade vai ficar grudado no cérebro alguns dias.

A maior parte dos surfistas está mais preocupada em fazer a onda sem sustos que assustar os juízes. Os limites continuam sendo pouco explorados. O formato, com pontos corridos e oito finalistas, precisa de claros ajustes.

E, claro, o julgamento, que cometeu erros importantes na etapa, tem um desafio enorme pela frente: dar conta da maior objetividade gerada com o fim da variável das ondas diferentes. Em paredes rigorosamente iguais (ou quase), a mensuração da performance perde um pouco da subjetividade.

Fica mais fácil ter critérios claros, o que aumenta a previsibilidade. Ao mesmo tempo, as imprecisões de julgamento, como ocorridas a meu ver com surfistas como Kolohe Andino e Jordy Smith, tendem a ficar mais expostas. Na vitrine.

Filipe Toledo está num ano impressionante.

Dito isso, vamos à parte saborosa de um rancho que ainda não decolou. Visto por outro lado, a etapa de ondas artificiais também foi interessante, sobretudo ao espectador iniciado, que acompanha a limites sutis do esporte.

A começar por confirmar, mais uma vez, a incrível capacidade técnica e competitiva de dois dos maiores surfistas de onda de performance de todos os tempos, Medina e Toledo.

Ambos se descolaram tão notadamente dos demais surfistas nas ondas de Lemoore, construindo um abismo que agora também é aparente no ranking da temporada, que fica muito difícil não bancar, mesmo com 30 mil pontos ainda em jogo, que o título ficará nas mãos da dupla. A briga será boa, um presente para os espectadores: dois surfistas foras de série, disputando título, no auge de suas carreiras.

No rancho, Gabriel foi mortal. Frio, preciso e criativo, trabalhou o tempo todo jogando pressão em seus adversários, que ainda patinavam no trem acelerado de Lemoore. A vantagem de surfar muito bem para os dois lados, usada estrategicamente, fez a diferença – Filipe, por exemplo, foi mortal apenas na direita; na esquerda, vacilou.

Medina tem a vantagem de dominar todos os atributos necessários às notas altas no rancho: power, manobras aéreas, tubos e regularidade, para os dois lados. Com essas armas na manga, foi irretocável, conquistando a segunda vitória seguida no CT 2018 sem deixar dúvida. O garoto de Maresias é pressão pura até o fim do ano.

Filipe, por sua vez, está num ano impressionante. Não tem sucumbido ao calor de Gabriel em seu cangote. Depois da inédita semifinal no Taiti, finalizou o rancho colado no adversário, e só não foi para o título porque errou a última manobra na esquerda. Talvez, na rodada decisiva, se tivesse optado por um tubo e a última manobra convencional, deixaria um problema gigante para os juízes. Até ali, fizera uma onda irretocável, com variação de manobras fortes e transições perfeitas.

Isso sem falar, claro, na ridícula nota 10 que não quiseram lhe dar. Vai demorar para outro surfista alcançar o nível de Filipinho na onda que lhe roubaram 2 décimos, embora a justiça não fosse suficiente para lhe garantir o título.

Se continuar nessa pegada – e se Gabriel continuar pressionando, sem falhas – o filho de Ricardinho vai chegar ao Havaí com a missão de ir além das quartas-de-final se quiser trocar o descarte. Isso é uma boa medida do ano fantástico de Toledo.

Kelly Slater, dono da bola, terminou em terceiro lugar no evento.

O rancho tem entre seus bons atributos o fato de ser uma espécie de medidor parcial de talentos, ou melhor, da capacidade dos surfistas de se adaptarem a uma onda pré-definida. Não é de surpreender que Medina, um surfista que tirou o primeiro tubo em Pipeline quando fez quartas-de-final no ano de estreia do CT, seja tão dominante ali.

Digo parcial porque há uma leva grande de surfistas que se adaptam especialmente a aquelas condições, como Kanoa Igarashi, que ficou em terceiro. Mas há outros, como Owen Wright, que brilham porque simplesmente conseguem converter o enorme conjunto de técnicas de que dispõem para a adaptação naquela onda. Isso não é fácil.

O outro a ficar em terceiro no leaderboard final foi o dono da bola, Kelly Slater. Depois de se fartar em desenhar sua linha madura nas ondas de sua propriedade, usando todos os ossos, ligamentos e músculos disponíveis, anunciou que possivelmente não vai competir na Europa, com a alegação de contusão. Está a caminho de, em 2019, tirar a vaga de um surfista que se ausentou por estar contundido, Caio Ibelli.

Passei o evento tentando não julgar o maior campeão da história. Afinal, não há como negar, o que ele deu ao esporte é inalcançável aos olhos. Mas não consigo naturalizar alguns comportamentos do americano, em nome apenas de seus feitos passados.

Não entendo por que ele acha normal competir numa onda artificial em que obviamente tem mais horas de treino, provavelmente, que todos os outros atletas somados. E, neste caso, não é porque ele é mais experiente, obviamente.

Não entendo por que ele anuncia aposentadoria no mesmo dia de Joel Parkinson. Não entendo por que ele anuncia a novidade do rancho momentos depois do mais suado título mundial da história, de Adriano de Souza. Não entendo por que ele, aos 45 anos, insiste em se manter no jogo, mesmo de maneira torta.

Julian Wilson avançou forte para as finais, mas não conseguiu, no momento decisivo, acompanhar a pressão do surfe dos dois brasileiros na ponta do ranking.

Só o imagino olhando para 2020, nos Jogos Olímpicos de Tóquio, caso a WSL consiga reverter a ideia louca da ISA, de fazer o evento nas ralas ondas naturais japonesas, e, na sequência, caso o COI decida comprar o projeto do rancho para as olimpíadas. Kelly vai mesmo querer uma vaga na equipe americana? Há legitimidade nisso?

Por outro lado, a WSL tem que arrumar um jeito de legitimar a presença de ex-campeões mundiais recentes como wildcards especiais nos eventos, claro, usando alguns parâmetros e critérios definidos. Seria bom ver Parko, Mick Fanning e outros futuros aposentados eternizando o desenho de suas magníficas linhas na elite.

De volta ao evento de dias atrás, no rancho, entre os outros brasileiros, destaque absoluto para Miguel Pupo, em quinto lugar, que desfilou seu surfe elegante nas paredes levantadas pelo fólio, mostrando que não pode estar fora do CT. Yago Dora também mostrou competência na esquerda e quase ficou entre os finalistas.

Julian Wilson avançou forte para as finais, mas não conseguiu, no momento decisivo, acompanhar a pressão do surfe dos dois brasileiros na ponta do ranking. No jogo justo, vai ter que lutar muito para chegar a Pipeline com chances de brigar pelo título.

Italo Ferreira revelou, na fase classificatória, sua já conhecida excelência no surfe de backside, que lhe rendeu as duas primeira vitórias da carreira no CT, em 2018, ambas de forma magnífica. Na esquerda, contudo, confirmou que, embora tenha o poder letal de manobras de alto impacto e uma assombrosa velocidade, ainda lhe falta algum refinamento de linha. Lembrei-me de Uluwatu. Ele precisa avançar nesse detalhe para disputar o título de forma mais contundente e com conforto no julgamento.

Agora, a Europa. As fichas estão com Filipe e Gabriel, embora matematicamente outros surfistas ainda estejam no jogo. A etapa da França, que começa no próximo dia 3, provavelmente definirá quantos restarão na briga – pode recolocar Julian e Italo no páreo da temporada, ou, caso se repitam os resultados recentes, descartá-los de vez.

Allez!