Adriano, esta é uma carta de agradecimento.
Começo pelo fim. Obrigado pela elegância de anunciar a aposentadoria na hora certa, antes do ocaso da carreira, quando ainda tinha condições de competir contra os atuais líderes do esporte. A sabedoria está na aposentadoria como uma opção, pela identificação da missão cumprida, pela consciência do tempo das coisas.
Sei que o título mundial de 2015 facilita a ideia de uma trajetória completa, mas nem todo campeão sabe parar no momento certo.
Dou um passo para trás e lembro de sua última grande bateria em Teahupoo, em 2019, contra o embalado Italo Ferreira, que conquistaria o título daquele ano. A aula magna em tubos quadrados teve um peso simbólico importante para você, eu posso imaginar. Era um mar potente, e do outro lado estava uma máquina de moer ondas, um talento sobrenatural em todas as condições.
Você e tantos outros – aqui, sendo justo, cito a seu lado o tricampeão Mick Fanning – tiveram que aprender, com ferramentas convencionais, como surfar aquelas ondas.
Aquela vitória foi, para mim, a expressão mais contundente de décadas de trabalho duro, em prorrogações de temporada havaiana, em viagens antecipadas para as etapas de ondas de consequência, em caldos infinitos. Era como se você dissesse a todos nós que tudo era possível, mas não era fácil.
É claro que não dá para esquecer de sua inesquecível vitória em Pipeline e seus bons resultados nos eventos WQS do mesmo pico, mas sigo com a convicção de que aquela bateria contra Italo foi a demonstração definitiva de um surfista no ápice técnico e competitivo em esquerdas potentes e tubulares.
Vamos esquecer um pouco as contusões, deixemos as agruras no passado.
De volta a 2015, que ano magnífico! O talento, uma exemplar determinação e, talvez, a maior inteligência competitiva a transitar pela elite do esporte alcançaram seus picos naquela temporada.
Assim, sem forçar a memória, lembro-me da fabulosa vitória em Margaret River, contra o (já naquele momento) eleito John John Florence; do intrigante empate (que acabou lhe rendendo um vice no desempate) em Bells, na disputa com o tricampeão Mick Fanning e, claro, da louca redenção em Pipe.
Também me recordo que, naquele ano, apesar de sua magnífica forma, pouca gente apostava em seu título na temporada. Guardei uma declaração sua, de lutar “contra tudo e contra todos”, como um emblema de 2015, como uma lição esportiva da qual o surfe não poderá jamais se esquecer.
Há uma foto, publicada em minha coluna sobre seu título, que ilustra bem o tamanho de sua guerra: os comentaristas oficiais da WSL, tão logo soou a sirene do título, miram com olhares vazios, decepcionados e inconformados, a comemoração. Você venceu a própria entidade que o recebia como surfista.
Se a WSL prestasse mais atenção em todas as camadas das grandes conquistas, construiria sem dúvida uma história incrível em 2015. Seu título é, antes de tudo, o mais bem acabado exemplo de como a determinação e a concentração, quando combinadas com o talento, podem produzir a glória.
Sem desmerecer a história ou os percalços de qualquer outro campeão, você naquele ano deu contornos definitivos a uma das mais ricas e complexas biografias do esporte. Eu confesso que gostaria de ter escrito, com tempo e liberdade, a sua história.
A escada para o título foi construída degrau a degrau, de uma maneira orgânica, como se você quisesse nos convencer de que seu suor era o caminho para a conquista, e que outros poderiam chegar lá se tivessem a mesma vontade.
Alguns tijolos: a caminhada a pé pela estrada de Porto Rico, o nó no jogo mental de Kelly Slater, as muitas temporadas estendidas no Havaí e no Taiti, a resiliência na busca por patrocinadores e, sobretudo, a inteligência aguda para perceber, ao longo de todo o caminho, cada ponto fraco de seu surfe e de sua abordagem competitiva.
Os passos eram dados desde a estreia, com o terceiro lugar na etapa de abertura de 2006, na Gold Coast. Depois do sucesso inicial, veio o choque de realidade, com a consciência da fragilidade em algumas ondas, o trabalho duro e a volta ao pódio dois anos depois, em 2008, com terceiros lugares em Fiji e na França.
No ano seguinte, vi seu primeiro amadurecimento, com três finais, sendo dois vices e a primeira conquista no WCT, em Mundaka, que encerrou longo jejum de brasileiros integrantes da elite. O ano de 2010 foi repleto de quintos lugares – neste tempo já era lugar comum dizer que você estava entre os cinco melhores do mundo.
No ano seguinte, vi você no Jornal Nacional: vitória no Rio e, pela primeira vez na história do país, a liderança da elite do esporte nas mãos de um brasileiro! Lembro-me onde eu estava quando assisti à notícia! E, de quebra, na mesma temporada, ainda venceu seu maior rival, o surfista de Cocoa, numa prova com lindos tubos em Portugal.
Mas o caminho era tortuoso. Apesar da boa forma, os resultados dos dois anos anteriores ao seu título não faziam crer que havia um título mundial a caminho, o que tornaria essa gestação algo bem mais duro. É como fazer nascer um caneco a fórceps.
Em 2013, apesar de uma vitória em Bells e de um vice no Rio, o ano acabou com você em décimo-terceiro. Em 2014, terminar em oitavo parece ter sido o menor dos desafios: o campeão Gabriel Medina direcionava definitivamente os holofotes para si, passando a encarnar, então, a grande esperança brasileira de títulos mundiais.
Eu honestamente não faço ideia do tamanho deste desafio. Como chegar à décima temporada na elite com o sonho vivo de vencer, ainda que sem a simpatia de parte do mainstream do surfe, carregado por patrocinadores nacionais, diante de um novo fenômeno brasileiro que se tornou o primeiro campeão mundial do país e, por último, com o agravante de uma contusão pouco antes do fim da temporada?
Por todos esses anos, eu arriscaria dizer que um de seus grandes adversários foi um preconceito velado, disfarçado de embate cultural. Lembro-me de uma campanha risível para desqualificar as suas comemorações efusivas depois de ondas boas. Muitos brasileiros compraram a ideia colonizada de que deveríamos nos comportar como frios saxões. Aí veio a sua resposta aos críticos: “Não vou mudar. Este sou eu”.
O primeiro soco no ar para comemorar um gol foi de Pelé, em 1959, num esporte inventado por ingleses. Deu no que deu. O surfe experimentou a mesma lógica: você inaugurou o “soco no ar” e, hoje, até o mais discreto saxão, seja ele americano, australiano ou sul-africano, comemora uma onda bem surfada.
Com o livro de regras debaixo do braço, você jogava no limite. Mostrou aos surfistas que para vencer na elite seria preciso deixar de lado o espírito relaxado de Rob Machado. Pera lá, give me five é o cacete!
A WSL, impactada pelo choro dos surfistas de alma cool, acabou mudando a regra de prioridade em baterias de três competidores. Sua fúria competitiva passou a fazer parte do jogo e, hoje, só vence quem deseja muito isso. Passou a valer a “Lei Adriano”.
Teve também o floatergate, depois de sua vitória na Barra da Tijuca, com direito a uma inédita e infame nota oficial da WSL para acalmar os ânimos de insatisfeitos com a sua vitória. Aqui não cabe medir a qualidade das notas, e sim a absurda e desproporcional reação de todo o mainstream do surfe ao episódio. A raiva da turma ocupava um lugar estranho, obscuro, bem diferente de uma simples discordância das notas.
Nesta história contada de trás para frente, eu teria muito mais a dizer, mas prefiro finalizar com lembranças para a história. No início dos anos 2000, você se tornou o mais novo campeão mundial júnior da história. Lembro bem de receber um livreto da Surfer, chamado Hot 100, que apresentava as maiores promessas do mundo. Você abria a publicação, não por acaso, à frente de celebrados australianos e americanos.
Não me esqueço do resto: bateu o recorde de pontos da divisão de acesso, foi o surfista que mais venceu Kelly (11 de 15 vezes), o primeiro brasileiro a liderar o circuito mundial, o primeiro brasileiro a vencer em Pipeline e se incluiu com méritos na lista restrita de campeões mundiais do esporte.
Por tudo isso, poderia ser lembrado apenas pelo seu enorme talento. Mas não: havia muito, mas muito mais a oferecer ao mundo. Obrigado, Adriano.