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WSL: promessas de ano-novo

Tulio Brandão revela qual seria a sua lista de desejos, caso fosse possível propor mudanças para a WSL em 2022.

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Os cinco melhores do mundo na temporada 2021 disputaram o título mundial em etapa única, no WSL Finals.

Este texto começa com um óbvio disclaimer: não tenho mandato para fazer resoluções de ano-novo para a World Surf League, nem acredito muito em promessas miraculosas de virada de ciclo. Normalmente prefiro jogar minhas fichas na transformação pelo trabalho, pelo processo – pelo caminho, e não pelo fim.

De todo modo, convém flertar, com cuidado, com desejos, mitos e fantasias. Afinal, como diz o velho galego, “no creo en las brujas, pero que las hay, las hay”.

Então, como se fosse possível desejar mudanças para a WSL em 2022, eis minha lista:

1) Que tome decisões menos verticais e mais colaborativas

O método “goela abaixo”, como foi criado o evento WSL Finals, diz muito sobre os líderes da entidade. Em nome do entretenimento, os donos da bola esqueceram-se de consultar e se sentar com os protagonistas do espetáculo, os melhores surfistas do mundo, para ao lado deles alcançar um formato minimamente justo para a decisão.

Dos cinco melhores do mundo de 2019, pelo menos três se manifestaram publicamente contra o formato que estreou em 2021. Gabriel Medina, que viria a ser campeão, soltou o verbo sem medo contra a decisão da entidade, antes do início da temporada. Italo Ferreira também foi crítico, e até Kolohe Andino, antes da contusão que o impediu de competir na temporada, reconheceu que o desenho da competição era injusto. Logo ele, local de Trestles, que teria muito a ganhar com o formato.

Aqui não cabe condenar o formato de “finals”, e sim dizer que uma mudança desse porte precisaria ser discutida com quem seria diretamente impactado, até para permitir ajustes finos necessários. A suposta vantagem de o líder decidir em melhor de três, por exemplo, não é um benefício real, à medida que o outro finalista, o desafiante, dispõe do mesmo benefício de poder perder a primeira bateria.

A WSL tem estufado o peito para dizer que, agora, age como uma empresa. Pois é, decisões colaborativas são parte da boa governança e condição essencial a qualquer companhia séria na terceira década do século XXI. Se existir um conselho deliberativo, como manda a boa prática, que surfistas tenham assento garantido nesta mesa.

Trestles, na Califórnia, foi o local escolhido pela WSL para a decisão do título mundial em 2021.

2) Que recoloque competidores e competições no pedestal mais alto

Não é raro, inclusive no mercado do surfe, que CEOs, CFOs, CMOs e outros gestores cheios de siglas do mundo corporativo se percam em algum lugar entre as metas de mercado e os valores essenciais do negócio. Bom, no caso da WSL (e, antes disso, da ASP e da IPS), o tal propósito de marca é, ou deveria ser, pelo menos primariamente, o surfe e a competição. (Depois, a conservação ambiental, como veremos a seguir).

Em dois atos distintos em 2021, a WSL deu indícios de estar perigosamente distante do que realmente importa.

A primeira derrapada aconteceu na estrutura do evento, como bem marcou o comentarista Marcelo Boscoli, no programa “Por Dentro do Tour”. A bancada de comentaristas oficiais da entidade é, agora, virada de costas para as ondas, como se, para eles, ver ao vivo as performances não fosse mais tão importante.

Nesta simbólica reorganização de palanque, esqueceram-se do principal.

O outro escorregão, este mais grave, foi a tentativa de tungar as vagas que sobrariam no ranking dos eventos Challenger. Nas letras miúdas do sempre surpreendente livro de regras, caso um ou mais surfistas já classificados pela elite terminassem também entre os 12 no ranking dos eventos Challenger, as vagas seriam tomadas pela WSL, que as usaria segundo “critérios próprios”, não definidos.

Em outras palavras, o surfista que dedica a vida ao esporte, que rala desde as categorias de base para alcançar por resultados e méritos próprios a sua vaga, perderia o posto para alguma celebridade com muitos seguidores no Instagram.

Num movimento importante, os competidores fizeram um abaixo-assinado com mais de uma centena de adesões em protesto contra a nova regra. A WSL acordou para o problema e recuou, dando a vaga, ao menos nesta temporada, para os surfistas que estavam posicionados no ranking. O detalhe, no entanto, é que a regra ainda parece não ter sido definitivamente alterada. Só deixou de ser aplicada em 2021. Em outras palavras, a polêmica pode voltar na próxima temporada.

Importante lembrar que os competidores dedicam a vida ao esporte e ralam desde as categorias de base, para alcançar por resultados e méritos próprios as suas vagas na elite.

3) Que seja mais profissional e transparente com seus dados públicos

Aqui, relato uma experiência bem particular, de jornalista ao solicitar dados à entidade. As informações mais importantes estão concentradas na matriz. E é ali que mora o problema, Em todas, repito, todas as minhas últimas abordagens à entidade, não obtive a informação necessária à produção do material jornalístico.

Qualquer entidade do mundo que se pretenda minimamente séria dispõe de uma estrutura de comunicação capaz de disseminar sistematicamente histórias, dados e conhecimento sobre o esporte que defende. Não é o caso da WSL.

Um exemplo foi um pedido singelo, quase banal, em 2015, durante a produção do livro sobre o primeiro título mundial de Gabriel Medina. Solicitei à entidade os confrontos diretos atualizados do surfista de Maresias com os demais competidores da elite. Era um dado automático, caso a entidade dispusesse de um banco de dados organizado e/ou tivesse profissionais prontos para esse atendimento.

Mas não. Apelei, primeiro aos responsáveis pela comunicação, depois a diretores diversos, sem sucesso. Adiaram, protelaram e não entregaram a informação.

Este não é um exemplo isolado: há inúmeras outras histórias de informações não obtidas, a partir de pedidos de diversos amigos jornalistas. Uma importante ressalva: a despeito das enormes lacunas da WSL global, que concentra a maior parte dos dados, a comunicação do escritório brasileiro costuma ser diligente, quando dispõe da informação. Em outras palavras: a falha do sistema está mesmo na matriz.

Em tempos dominados por algoritmos e ciência de dados, a WSL perde, ainda, grande oportunidade de organizar a sua linda história em números e de produzir novas informações e recortes inteligentes a partir do conhecimento disponível. E, claro, ao não distribuir fartamente a informação, amarra o esporte a limites estreitos.

Andy Irons durante Billabong Pro 2006, em Teahupoo, Tahiti. Preservar a história do esporte é fundamental, bem como organizar e produzir novas informações a partir do conhecimento disponível.© ASP / Tostee
Andy Irons durante Billabong Pro 2006, em Teahupoo, Tahiti. Preservar a história do esporte é fundamental, bem como organizar e produzir novas informações a partir do conhecimento disponível.

4) Que cumpram as promessas do PURE e ampliem a pesquisa na entidade

O programa de conservação e meio ambiente da WSL apresentou um ambicioso programa de neutralização da pegada de carbono da estrutura da WSL. Quando li sobre o tema, em 2019, fiquei realmente impressionado. Neutralizar um circo que se desloca, em bando, por todo o planeta, durante boa parte do ano, não é fácil. Dois anos depois, não há qualquer resultado desse esforço apresentado publicamente. Quem vive do mar deveria saber os danos de se fazer green washing.

A WSL tem nas mãos um ouro em forma de oceano. A entidade está presente em boa parte dos mais valiosos patrimônios naturais marinhos do mundo. É preciso ampliar muito, com parceiros reconhecidos, a produção de conhecimento científico para favorecer a conservação desses patrimônios. E, ato contínuo, formar os melhores competidores do mundo para transformá-los em disseminadores dessas mensagens.

Surfista pode e deve ter, sim, uma segunda missão nobre, além de remar nas melhores ondas: conservar os oceanos em que ele habita para as gerações futuras.

Se provocar a transformação, numa só tacada, a WSL constrói reputação, chama as melhores empresas do mundo e, por tabela, atrai dinheiro para perto do esporte.

A sugestão, por fim, é que abandonem fórmulas batidas de entretenimento. Não queremos ser UFC. O caminho é buscar nossa legitimidade. Precisamos valorizar o surfe que nos formou, a competição que nos reuniu e o oceano que nos abrigou.

A WSL tem nas mãos um ouro em forma de oceano. É preciso ampliar muito, com parceiros reconhecidos, a produção de conhecimento científico para favorecer a conservação desses patrimônios.Divulgação / WSL Pure / Cestari
A WSL tem nas mãos um ouro em forma de oceano. É preciso ampliar muito, com parceiros reconhecidos, a produção de conhecimento científico para favorecer a conservação desses patrimônios.