Do Oiapoque ao Chuí

Decifrando o nosso litoral

Professor Luciano Zasso analisa as peculiaridades de cada tipo de swell que quebra no litoral brasileiro.

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Entre outubro e março, as potentes ondulações que chegam a Fernando de Noronha (PE) são o melhor exemplo da ação dos swells gerados no distante Atlântico Norte.

O extenso litoral brasileiro, em seus mais de 8.500 km do Oiapoque (AP) ao Chuí (RS), apresenta uma infinidade de possibilidades de boas ondas – tendo em vista uma série de características e particularidades locais associadas, dentre outros fatores, à diversidade geomorfológica da costa e às dinâmicas oceânica e climática.

Primeiramente, vamos analisar quais são os aspectos da dinâmica oceânica e climática que interferem diretamente nas ondas que quebram ao longo do nosso litoral.

Para isso, consideramos dois fatores que estão diretamente relacionados com os padrões da dinâmica atmosférica e consequentemente com a movimentação oceânica. Eles interferem diretamente nas características das ondulações ao longo do vasto litoral brasileiro: a rotação da Terra, que gera uma movimentação contrária nos fluídos (oceanos e atmosfera), e a circulação dos ventos (massas de ar) em escala global.

Importante ressaltar que há relação direta entre a rotação e a circulação dos ventos e das correntes oceânicas, principalmente nas regiões entre a Linha do Equador e os trópicos, onde o movimento contrário – chamado força de coriolis – é mais forte devido à alta velocidade de rotação da Terra nesta zona do planeta.

Considerando os fatores acima, e analisando globalmente a movimentação das massas de ar, percebemos três grandes padrões de circulação dos ventos na atmosfera terrestre, os ventos de leste, próximos às zonas polares, que, apesar de gerarem ondulações, ficam restritos as regiões próximas da Antártida e do Ártico, que pouco ou nada interferem nas ondulações que chegam à costa brasileira. Em contrapartida, os ventos de oeste são componentes importantes na geração de ondulações de grande magnitude ao redor do planeta e que frequentemente chegam à costa brasileira com significativa intensidade.

São os ventos de oeste que atuam no Cinturão Tempestuoso do Atlântico Sul, junto às zonas de baixa pressão, ocasionando fortes tempestades e que formam os grandes swells que atingem a costa sul, sudeste e esporadicamente a costa nordeste brasileira, principalmente nos períodos de outono e inverno.

Entretanto, os ventos de oeste tendem a gerar e propagar ondulações na direção predominantemente contrária ao litoral do Brasil, sendo que a maior parte destes swells se deslocam diretamente para costa oeste dos continentes, atingindo com grande energia e período, no caso do Atlântico Sul, a costa oeste do continente africano, uma vez que o litoral brasileiro está voltado de “de costas” para essas ondulações.

Com relação ao terceiro grupo de ventos gerados pelo movimento das massas de ar, podemos afirmar que são diretamente influenciados pela força de coriolis. Como vimos, isso é a resposta dos ventos e consequentemente das correntes oceânicas e ondulações ao movimento de rotação da Terra.

Trata-se dos famosos ventos alísios (ou trade winds, em inglês), que são predominantes o ano inteiro na costa nordeste do Brasil. Os ventos alísios são gerados pelo Anticiclone do Atlântico Sul, um imenso centro de alta pressão que impacta inclusive setores costeiros do sudeste e sul, principalmente na primavera e verão. Por serem ventos de menor energia, que se propagam próximos ao litoral, geram ondas menores, com período reduzido, conhecidas por vagas.

Cabe salientar que, na maior parte das estações, os ventos gerados por esse sistema assumem uma direção “maral”, ou seja, do mar para a terra, deixando as ondas frequentemente mexidas.

Circulação Atmosférica: figura esquemática mostra as áreas de atuação dos ventos globais associados com os sistemas de alta e baixa pressão.Reprodução / Geografia 3 Ciclo
Circulação Atmosférica: figura esquemática mostra as áreas de atuação dos ventos globais associados com os sistemas de alta e baixa pressão.
Sistemas de ventos e pressão atmosférica atuando próximos à costa brasileira: observar a tendência dos ventos de oeste propagando as ondulações na direção oposta à costa brasileira.Reprodução / Windy.com
Sistemas de ventos e pressão atmosférica atuando próximos à costa brasileira: observar a tendência dos ventos de oeste propagando as ondulações na direção oposta à costa brasileira.

Dessa forma já podemos definir dois sistemas distintos de ondas que chegam até a costa brasileira: os swells, gerados por sistemas de baixa pressão advindos do Cinturão Tempestuoso do Atlântico Sul – e empurrados pelos fortes ventos de oeste; e as vagas, ondas de menor energia, formadas pela ação do Anticiclone do Atlântico Sul, sistema de alta pressão que gera os constantes ventos do quadrante leste, os alísios, de atuação junto à costa. Ambos estes sistemas de ondulações geram vagas ou swells que apresentam direção leste, sudeste, sul e até mesmo sudoeste.

Entretanto, durante o inverno do Hemisfério Norte, os ventos de oeste, que se originam no Cinturão Subpolar do Atlântico Norte, formam potentes ondulações que se propagam por longas distâncias até despejarem toda energia nas praias da costa norte brasileira, principalmente entre os estados do Rio Grande do Norte, Ceará e a Ilha de Fernando de Noronha.

São swells potentes, com período elevado, devido à longa distância percorrida. Este setor litorâneo, por estar voltado para o Oceano Atlântico Norte, recebe os ventos alísios em um ângulo mais favorável, deixando as ondas lisas, acariciadas por um vento normalmente terral.

Observar as ondulações vindas do Hemisfério Norte se aproximando dos setores da costa brasileira voltados para essa direção.Reprodução / Waves
Observar as ondulações vindas do Hemisfério Norte se aproximando dos setores da costa brasileira voltados para essa direção.

Características regionais

A partir das considerações acerca dos três diferentes sistemas de ondulações que atingem o extenso litoral brasileiro, podemos realizar uma breve análise associando fatores regionais, com a dinâmica das ondulações e as diferentes características geomorfológicas da costa brasileira.

Para este tipo de abordagem podemos dividir o litoral em cinco setores: o litoral extremo sul, que vai da Barra do Chuí, no Rio Grande do Sul, até o Cabo se Santa Marta (Santa Catarina); o litoral sul, que se estende do Cabo de Santa Marta até o litoral sul de São Paulo; o litoral sudeste, que abrange o litoral centro-norte de São Paulo e vai até o Cabo Frio (Rio de Janeiro); o litoral Leste/Nordeste, que vai do Cabo Frio até o Cabo Calcanhar no Rio Grande do Norte e o Litoral Norte, que vai do Cabo Calcanhar até o Litoral do Amapá.

Podemos definir o primeiro setor costeiro como o mais contínuo, retilíneo e arenoso do Brasil – e talvez do planeta. Trata-se de quase 700 km de costa aberta e plana, com raríssimas interrupções na extensa faixa de areia, evidenciadas pelas estruturas rochosas na praia de Torres, por desembocaduras de rios com ou sem a presença de molhes, e pelas plataformas de pesca. Nesses pontos as ondas são mais definidas em função de bancos de areia mais estáveis. Onde falta um maior número de boas bancadas sobram ondas com alta energia geradas pelos swells do quadrante sul, conforme vimos anteriormente. Essas ondulações muitas vezes acabam tendo sua formação comprometida pela baixa profundidade e declividade da plataforma.

Outra questão recorrente é a presença constante de fortes ventos que geram correntezas paralelas à praia, o que é compreensível tendo em vista um litoral muito extenso, aberto e retilíneo. A variação de marés nesta parte da costa é muito pequena, apresentando pouca ou nenhuma interferência sobre as ondas.

Ação das ondas na costa plana e retilínea do Rio Grande do Sul, litoral exposto aos constantes ventos e ondulações.

A partir do Cabo de Santa Marta, no sul de Santa Catarina, as características geomorfológicas das estruturas litorâneas se alteram completamente. Em lugar de uma costa monótona e sem recortes surge um litoral com relevo bastante acidentado, com a presença de costões rochosos e praias em forma de baías, apresentando diferentes orientações de linha de costa voltadas para praticamente todos os quadrantes, oferecendo mais e melhores opções para receber variadas ondulações e ventos. É sem dúvida uma das melhores regiões do Brasil para o surfe, pois reúne, além de muitas opções de praias, uma boa constância de ondulações.

Aqui cabe um esclarecimento: os fortes ventos de oeste, que como vimos geram os potentes swells que atuam com intensidade nessa região litorânea, se apresentam tanto no litoral do Rio Grande do Sul quanto em Santa Catarina na direção sudoeste. É o chamado vento Minuano, que derruba as temperaturas e proporciona o “vento terral”, soprando da terra para o mar, dando maior qualidade as ondas para o surfe.

Entretanto, apesar de receber constantes e fortes ondulações e ter ótimas opções de praias que interagem bem com diferentes ventos, a maior parte dos picos fica devendo em termos de bancadas mais definidas, pois quando o swell entra com mais energia são poucas as praias que apresentam fundos consistentes, que traduzem as fortes ondulações em ondas de boa formação.

Deve-se considerar também que, neste setor costeiro, a plataforma continental se mantém rasa e muito extensa, o que também acaba por comprometer a qualidade das ondas de maior energia. A variação de maré começa a ser percebida à medida que avançamos em direção ao norte, impactando, ainda que sensivelmente na formação das ondas.

Em função da posição geográfica privilegiada e dos muitos recortes na costa, o litoral catarinense propicia um cenário favorável para ondas de qualidade.Pedro Machado
Em função da posição geográfica privilegiada e dos muitos recortes na costa, o litoral catarinense propicia um cenário favorável para ondas de qualidade.
Na figura, observa-se os fortes ventos de Sudoeste (seta vermelha) acompanhando o deslocamento do swell do quadrante sul, que conforme as pequenas setas indicam, tendem a atingir a costa sul do Brasil de “raspão”.Reprodução / Windy.com
Na figura, observa-se os fortes ventos de Sudoeste (seta vermelha) acompanhando o deslocamento do swell do quadrante sul, que conforme as pequenas setas indicam, tendem a atingir a costa sul do Brasil de “raspão”.

À medida que avançamos para norte, o litoral vai gradualmente alterando a orientação predominante da linha de costa, ficando mais voltado para o sul e sudeste, o que de certa forma favorece o ângulo de ação das ondas do quadrante sul. Somado a isto, a partir do litoral norte do estado de São Paulo, em direção ao Rio de Janeiro, o relevo da Serra do Mar se aproxima e recorta ainda mais a costa, compartimentando centenas de pequenas praias e reduzindo a ação dos ventos.

Resultado, temos um setor costeiro com uma paisagem exuberante em termos de belezas naturais, ondulações relativamente frequentes e uma infinidade de opções para as ondas do quadrante sul com ventos de baixa intensidade. Todavia, nesse trecho de costa, além da plataforma continental continuar extensa e rasa, os fundos de areia são a grande maioria, fato que nem sempre garante uma boa qualidade de ondas nos maiores swells.

A posição geográfica de boa parte do litoral do sudeste favorece o ângulo para as ondas do quadrante sul. Somado a isto, um relevo costeiro bastante recortado proporciona boas opções para o surfe.
Setores da costa brasileira e suas diferentes características costeiras e oceânicas.Reprodução / Google Earth
Setores da costa brasileira e suas diferentes características costeiras e oceânicas.

Quando viramos para Cabo Frio, em direção ao estado do Espírito Santo, a orientação da linha de costa se volta novamente para o leste. A partir da península de Búzios, os acidentes de relevo paulatinamente diminuem, evidenciando um ambiente costeiro mais plano, com menos recortes. Apesar disso, nesse ponto da costa a plataforma continental se reduz em termos de extensão, o que de alguma maneira favorece a propagação das ondas sem os obstáculos de um fundo mais raso, conforme presenciamos no litoral sul e sudeste até aqui.

À medida que nos afastamos das latitudes mais elevadas em direção ao Equador, as ondulações mais potentes do quadrante sul vão perdendo intensidade e frequência. Em compensação, surgem bancadas definidas por estruturas naturais rígidas (recifes e fundos de pedra), que garantem boa qualidade às ondas. Uma característica importante no amplo litoral que vai de Cabo Frio ao Cabo Calcanhar, no Rio Grande do Norte, é a constante presença dos ventos alísios que, como vimos anteriormente, deixam o mar normalmente mexido.

Entretanto, nos meses entre o final do verão e o outono, os alísios reduzem sua intensidade, principalmente na parte da manhã, propiciando condições ótimas para o surfe. A variação de marés é uma realidade cada vez mais presente em direção ao litoral nordestino, interferindo significativamente nas ondas. Não podemos esquecer que, em função dos constantes ventos e das variações de marés, esse extenso litoral sempre oferece vagas surfáveis, que mesmo pequenas, salvam o surfe do dia a dia.

Os constantes ventos alísios garantem uma boa frequência de ondas na costa do Nordeste, muitas vezes beneficiada pelos fundos de pedra e coral.

Por fim, contornando o Cabo Calcanhar em direção a oeste, chegamos ao setor costeiro voltado para o Hemisfério Norte do planeta, e consequentemente para as ondulações geradas no Atlântico Norte. Nesse pedaço do litoral, a realidade se transforma por completo: a orientação da linha de costa se volta para o norte, fazendo com que as ondulações do quadrante sul não encostem, os fortes ventos alísios já não deixam as ondas tão mexidas e as praias arenosas voltam a surgir em abundância. Apesar disso, a contínua faixa de recifes assegura bons fundos que, associados com uma elevada amplitude diária de marés, podem proporcionar ondas de boa qualidade.

Considerando essas características, que de certa forma se distinguem das outras regiões costeiras do país, não podemos esquecer que as melhores e maiores ondulações só atingem essa parte do litoral de outubro a março, período correspondente ao inverno no Hemisfério Norte. Também é importante ressaltar que as áreas de transição entre um setor e outro podem apresentar regiões com sobreposição de características costeiras e oceânicas.

Pretende-se em artigos futuros investigar as características das praias com relação à qualidade das ondas para surfe de maneira mais detalhada a partir de uma abordagem localizada.