Surf & Aventura

Sucesso ou castigo?

Olimpíadas prometem "enquadrar" o surfe. Colunista Alex Gutenberg debate se o sacrifício vale a pena.

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Segundo o colunista, o surfe vai entrar em um mundo novo, onde as coisas vão mudar radicalmente.

Vai ser bem difícil e complicado o debate aqui no Waves sobre o assunto, pois o fórum é casca-grossa, as pessoas possuem opiniões formadas bem fortes, e o caso é sério, pode afetar todo mundo. Surfe é um esporte para ser olímpico? Será que vamos nos enfiar em um universo diferente?

Quero lembrar que lido com o surfe desde os anos 70, quando aprendi a surfar com uma prancha emprestada, azul, biquilha, muito estranha, de dois primos meus. Eu criei e fundei a Abrasp (ao lado de Roberto Perdigão e Danny Boy), coloquei o surfe nos principais jornais, revistas e emissoras de televisão do Brasil, fiz um filme sobre uma lenda do surfe, Gerry Lopez, e escrevi o livro “A História do Surf no Brasil”. Além disso, sou envolvido com Olimpíadas desde 1984, quando fui cobrir a primeira, em Los Angeles, pela TV Bandeirantes e Jornal do Brasil. Conheço bem os 36 esportes (em média), as regras, os atletas e os treinamentos deles. Li muitos livros a respeito e me dediquei a isso.

Por isso, vou avisando todo mundo logo de cara – o surfe vai entrar num mundo novo, as coisas vão mudar radicalmente, e a atividade de descer ondas em cima de uma prancha deixará de ser um modo de vida e passará a ser apenas esporte competitivo e selvagem. O surfe nas Olimpíadas vai entrar para o time do atletismo, natação, tiro, das lutas e mais três dezenas de esportes, inclusive os coletivos.

Lembrando que de uns anos para cá, os velhinhos do Comitê Olímpico Internacional, o COI, decidiram que, para modernizar os Jogos, precisavam introduzir novos esportes. Colocaram o Mountain Bike e as travessuras do BMX na parada. Ficou legal, acho que tudo que envolver ciclismo merece lugar nas Olimpíadas.

Mas e o surfe? Combina? Será que o surfe não é mesmo uma atividade muito superior a um esporte, uma relação do homem com o mar, com a natureza, com a sua profunda solidão, com a simbiose de seu corpo com quase 70 por cento de água com o planeta Terra, curiosamente também 70 por cento de água? O surfe é o esporte de segundos numa onda, esporte silencioso, o ser humano e a água marinha (bem, agora tem as piscinas, né?) mas vamos nos manter na tradição… Enfim, o surfe por causa de todo esse envolvimento que exige dos atletas, nunca foi apenas um esporte.

O surfe, para muitos, é uma terapia, o mar é o terapeuta, as ondas são as técnicas de relaxamento psicológicas, o vento e a prancha são os apoios materiais para atingir um nirvana espiritual impensável.

Vamos entregar isso tudo para o COI, para as Olimpíadas, para as grandes corporações que mandam no mundo e prostituem relações legais com sua busca incessante pelo lucro, a fim de criar superatletas, baseados em marketing de ponta, envolvidos com corrupção, dinheiro, publicidade, ego e apenas rivalidade, pura rivalidade?

Surfistas também terão que se adaptar às exigentes regras do Comitê Olímpico Internacional.
Surfistas também terão que se adaptar às exigentes regras do Comitê Olímpico Internacional.

O princípio Vou resumir. A Olimpíada começou na Grécia Antiga, em 776 A.C. Nos primeiros anos, na verdade séculos, era uma atividade mais religiosa, pagã, claro, em homenagem aos deuses, Zeus, Apolo e outros do que um evento esportivo. A partir do século V A.C., a Olimpíada começou a bombar. O que seria isso? Bem, a Grécia era composta de diversas cidades, as polis, com suas próprias leis, quase que cada uma sendo um outro país. Muitas viviam em guerra entre si. A Olimpíada era uma espécie de reunião do povo mais da elite para confraternização e também disputas de quem era melhor em luta, corrida a pé, corrida em cavalos e pentatlo. Nessas ocasiões, era proibido guerrear.

Os atletas eram de famílias boas e não podiam competir escravos e mulheres. Aliás, as mulheres não podiam nem entrar no estádio das disputas. E na maioria das vezes, em muitos jogos, os atletas disputavam pelados as suas modalidades. No fim, os vencedores recebiam coroas de louros e outras vantagens, como alimentos para sua cidade e uma estátua na mesma. Em tempo – as Olimpíadas eram disputadas na cidade de Olímpia, uns 15 quilômetros do mar, e não contava com nenhum esporte aquático.

Lá por volta do ano 300, depois de Cristo, um imperador romano (eles haviam conquistado a Grécia) proibiu a Olimpíada alegando que era paganismo e adoração de deuses. Vai entender… Foi somente em 1896, que o Barão Pierre de Coubertin, com a ajuda dos nobres da Europa, conseguiu resgatar os Jogos Olímpicos e os organizou em Atenas, capital da Grécia.

Durante muitas décadas, nos jogos, prevaleceu o espírito olímpico – “o importante é competir, não vencer”. Os jogos eram mais inocentes, sem maldades como hoje. Mas, por motivos políticos, a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, a democracia contra o comunismo, os esportes olímpicos foram se tornando mais profissionais, a rivalidade aumentou muito, e, muitas vezes, os adversários se tornaram inimigos.

No começo dos anos 70 do século passado, a Olimpíada sofreu um novo golpe em seus princípios de esporte e saúde, inteligência, e a união dos povos, quando as grandes empresas, as corporações, descobriram o marketing esportivo e passaram a patrocinar os Jogos e o atletas. Foi aí que a casa caiu. Em busca de vitórias, de propaganda política associada a propaganda mercadológica, os comitês olímpicos nacionais começaram a pressionar atletas e treinadores. Em muitos países, por exemplo, as drogas foram liberadas para melhorar as performances. E os comitês ganhando dinheiro a rodo das empresas. Tem muita gente na cadeia por causa disso.

Exames antidoping prometem ser uma dor de cabeça.Divulgação / Rio2016.com
Exames antidoping prometem ser uma dor de cabeça.

Além disso, por causa do caminhão de grana que envolvia os Jogos Olímpicos, os dirigentes do COI entraram num mar de corrupção que era pura lama. Recebiam milhões e milhões de dólares para votar em qual cidade os próximos Jogos deveriam ser realizados.

Os atletas, que antes apenas lutavam para mostrar o seu melhor, ou seja, o slogan dos Jogos “mais alto, mais forte e mais rápido”, passaram a ser patrocinados, primeiro pelas empresas esportivas Nike, Adidas, Puma, dentre outras, e depois por companhias gigantes mesmo, sejam elas da indústria automobilística, do petróleo, da alimentação. A grana passou a rolar solta depois dos anos 80. E atletas, dirigentes, técnicos começaram a surfar ondas de notas de dólares.

Mas havia um pequeno detalhe, e o diabo está nos detalhes. Muito dinheiro apenas para os melhores. E para ser o melhor, vale tudo – drogas, suborno, corrupção, proteção das indústrias de materiais esportivos para fornecer primeiro para alguns atletas de ponta o equipamento mais moderno – tênis, camisetas, calções, arcos, flechas, revolveres, sungas e maiôs de natação, etc.

Enfim, nos últimos 40 anos, o esporte olímpico se tornou um lixo sob muitos aspectos. Existe sempre a suspeita sobre a vitória deste ou daquele. Eu já participei como jornalista de quatro Olimpíadas (já ganhei uma medalha em 1984, em Los Angeles) e posso citar alguns exemplos para vocês.

Em 1988, o canadense Ben Johnson venceu os 100 metros rasos com um tempo excepcional (vídeo abaixo). Dois dias depois, ao fazerem o exame de sangue, notaram uma carga enorme de drogas no organismo. Perdeu a medalha de ouro. Na sala de imprensa, um médico especialista em medicina esportiva disse: “Todos tomam drogas, alguns exageram e passam do tempo, por isso são flagrados nos exames. E é verdade. Até drogas hipnóticas eles tomam para vencer uma modalidade na Olimpíada. Vou repetir: todos tomam drogas. Uns param bem antes dos jogos, outros usam remédios que escondem as drogas, outras dão sorte de não serem pegos, muitos são apanhados no flagrante”.

Desde 1988, o COI tem aumentando a pressão contra as drogas e os atletas. Exames de surpresa, duas, três vezes por ano são feitos aleatoriamente em quase todos os atletas no período de quatro anos entre as Olimpíadas. Durante os Jogos, os exames são bem rigorosos. Muita gente tem sido pega por causa disso. Dezenas de brasileiros já caíram no exame por uso de drogas. Recentemente, todo o time de atletismo da Rússia foi eliminado das Olimpíadas e não pôde ir ao Rio em 2016.

Outras federações também não permitem que atletas de determinados países participem dos jogos. Maria Sharapova, do tênis, pegou um ano de suspensão. Ela disputa Olimpíada pela Rússia e foi flagrada num exame feito pelo COI. O tênis não costumava fazer exames antidrogas nos atletas. Agora a coisa mudou.

Outros atletas famosos, no ciclismo, levantamento de peso, atletismo e natação também dançaram. O maior atleta em todos os tempos com mais de 20 medalhas de ouro em Olimpíadas, o nadador americano Michael Phelps, foi pego num desses testes surpresas por uso de maconha. Pegou um gancho brabo também. Os exames são sérios e não permitem nada, nem maconha, nem remédio para urinar, os chamados diuréticos.

Outro problema sério das Olimpíadas é o dinheiro. Essa selvagem corrida para a vitória faz com que o atleta não apenas recorra a drogas, mas também a outros expedientes suspeitos como levar vantagem com as companhias de materiais esportivos. O dinheiro é que manda. Por causa dessa idolatria ao dinheiro, carreiras de atletas são impulsionadas do dia para a noite, mas também são derrubadas em minutos. Vira um saco sem fundo, sem princípios, sem valores, sem respeito. Os atletas se tornam inimigos. E perdem suas vidas, vendem suas vidas para patrocinadores. Passam dias, semanas em sessões de fotos ou viajando para participar de eventos das grandes empresas. Para um jogador de vôlei, tudo bem, em parte, ele até aguenta, mas para um surfista, ficar semanas fora do mar? Você consegue visualizar isso?

Enfim, vamos mesmo colocar o surfe nesse novo patamar, nesse mundo de capitalismo selvagem, desgraçado, onde quem manda é o dinheiro e as conquistas? O surfe vai perder sua inocência, ou pouco que ainda tem de pureza e vai perder seu amadorismo – sim eu sei que existe o surfe profissional a WSL – , mas o surfe é bem amador em comparação com os outros esportes. E esse amadorismo do surfe é benéfico, é legal, é decente até onde se limita o ser humano. É gostoso, é amigável. O surfe é o esporte das viagens, das trips com os amigos, de essencialmente fazer amigos em qualquer parte do mundo. Isso vai acabar ao longo do tempo. Escutem o que eu estou falando. Como acabou no tênis, no atletismo, na natação.

Vale a pena entrar nas Olimpíadas e mudar todo o conceito do esporte genial que é o surfe?

Não se esqueçam que, para participar de Olimpíada, o surfe será comandado em cada país pela confederação nacional do esporte, pelo Comitê Olímpico Brasileiro e pelo COI. Os atletas, juízes, organizadores, técnicos de surfe deverão, obrigatoriamente, obedecer as regras que essas organizações determinarem. E são centenas de regras. Juízes vão ter que se enquadrar nas determinações do COI. Não terão essa liberdade de hoje. E não adianta dizer que eles não entendem nada de surfe. Não, não entendem. Mas também não entendem de ginástica olímpica, ginástica rítmica e saltos ornamentais esportes que também recebem julgamento subjetivo. Todo mundo vai ter que se enquadrar no que manda o COB e o COI.

E lembrando por último, mas também importante, que os exames nos atletas para detectar drogas, qualquer drogas, vão acontecer durante todo o ano, mesmo nas férias dos mesmos. Eles aparecem na casa do atleta, no hotel, na praia, onde ele estiver. Os meninos do surfe deverão seguir padrões rigorosos de alimentação e remédios. Aliás, xaropes para tosse, remédios para gripe são proibidos.

O que você acha? Vale a pena entrar nas Olimpíadas e mudar todo o conceito do esporte genial que é o surfe?